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1 de setembro de 2011

Nunca mais voei sob a terra porque conheci a tua mãe num domingo, em novembro, num velório de pobres, a beber martini em torno de um caixão numa vivendinha da ilha, o falecido de mãos na barriga com uma rosa nos dedos e a gente em torno, afogados em flanelas, a passar o gargalo e a conversar, olhando, pela porta aberta, os imbondeiros que nasciam da vazante e as flores que as ondas descobriam e ocultavam, pingando orvalho dos caules. Casei uma semana depois com a filha do cadáver, a qual gastava o tempo inteiro, à janela, contemplando as traineiras e os cargueiros do Índico, e a baleia transviada que dera à costa, por um erro de azimute, e se transformava numa construção de dentes e de ossos. Contemplou dia após dia as traineiras e os cargueiros sem conversar comigo, sem conversar com ninguém, sem responder a perguntas, sem se interessar por nada, esquecida de comer, de se lavar, de se pentear, de mudar de camisola, de varrer a casa, esquecida de ti que gritavas no teu berço e dos biberões que se espalhavam pelo chão, esquecida das minhas necessidades de homem, até os enfermeiros virem e a internarem num hospital de doidos na orla norte da cidade, com os loucos, de camisa de dormir amarrados a espigões como os chibos no Minho. Visitei-a por três ou quatro ocasiões, às sextas-feiras, de regresso das docas, e uma religiosa conduzia-me a uma cave onde a tua mãe olhava o mar através das fissuras das paredes, as traineiras e os cargueiros do Índico que se afastavam para Timor ou o Japão, olhava o mar numa gruta de doentes a quem aplicavam ventosas por detrás de biombos articulados. Não me perguntou por ti, não me perguntou por mim, não protestou com nada, não falou, não desviou sequer a vista quando me coloquei à sua frente, e agora que sou velho, e a morte já me rendilha a coluna e me endurece as artérias, o que me vem à ideia, se calha pensar nela, é que cada um voa como pode, rapariga, cada um voa realmente como pode, eu debaixo da terra, em Joanesburgo, a empurrar vagões de mina pelas galerias, a tua mãe no asilo dos malucos, verrumando os muros com os olhos para alcançar as traineiras, tu na nuvem de goivos da tua doença, e o palerma que mora connosco, nas traseiras do quintal, a desarrumar as couves com a biqueira e a farejar a noite com o sorriso idiota do costume.

António Lobo Antunes, A ordem natural das coisas







1 de setembro de 2008




................................ porque se alguma coisa os
anos me ensinaram foi a desconfiar das emoções grandiosas, dos sentimentos grandiosos, das palavras grandiosas, culpabilidade, generosidade, arrependimento, honra, orgulho, coragem, sacrifício, que ocultam pequeninos interesses viscosos como egoísmo, medo, inveja, estupidez, preguiça, eu para a Raquel
.................................— Tretas
a rever o Álvaro a fugir-lhe,a sacudir os beijos, a não falar com ela, a erguer as sobrancelhas ao céu, a fitar-lhe com desgosto as farripas, os bibelots, os vestidos, o Álvaro que queria o divórcio por ter arranjado uma mulher a dias mais competente e uma enfermeira melhor num apartamento sem máscaras nem litografias sem palhaços, o Álvaro que nem se devia recordar do filho porque os homens não suportam o sofrimento ou o passado, os homens, felizmente para eles, esquecem, e somos nós que não esquecemos, que conservamos tudo na memória, que nos recordamos como eu recordo a romãzeira, a estrada do Cacuaco e o quintal de Luanda, como eu recordo o meu pai no sofá de Campolide, debaixo do quadro dos cavalos, sem se queixar das dores, e a Raquel à procura dos cigarros, distraída da chuva
................................— Meteu-se-lhe na cabeça
que Carlos Gardel está vivo em Santo António dos Cavaleiros, meteu-se-lhe na cabeça despedir-se da agência e morar com ele para lhe promover a carreira (...).





António Lobo Antunes, A Morte de Carlos Gardel



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1 de setembro de 2007


António Lobo Antunes (1942)

Qualquer luz é melhor que a noite escura



O frasco de verniz em cima do microondas, onde costuma deixar o bloco com os recados para a mulher a dias. Dou sem­pre com dois tipos de letra na mesma página, o recado dela em cima e a resposta da mulher a dias em baixo. Algumas moedas que sobraram das compras. E a canção americana a repetir den­tro de mim
Qualquer luz é melhor que a noite escura.
Hoje o meu filho acordou a meio da noite a chorar. Tem só três anos. Pensei que fosse febre ou os dentes ou isso de modo que lhe peguei ao colo e o trouxe a observar a rua, da cozinha. Agrada-me a cozinha à noite, com a bancada de tampo de gra­nito e aqueles aparelhos eléctricos, quadrados e grandes, que parecem tornar-se mais úteis no escuro. Agrada-me o seu aspecto competente e os intestinos misteriosos cheios de para­fusos e ventoinhas. Máquinas brancas, óculos redondos onde a roupa gira misturada com espuma. Pensei ligar uma das máqui­nas para entreter o meu filho. Para me entreter a mim. As vezes sento-me numa cadeira e fico a ver. Dão estalos, mudam de velocidade, de ruído. Como organismos vivos. O meu filho cheira a sono e a lágrimas. A rua quieta. Automóveis alinhados contra o passeio. Descubro o meu entre uma furgoneta cinzenta coberta de pó e um carro tapado com um pano. Conheço o dono. Aos domingos, em calções, tira o pano e gasta horas a limpar o carro com uma esponja. Nunca sorri. Limpar o carro é para ele o acto mais importante deste mundo. Quando acaba mete-se de novo em casa e regressa passada meia hora com a família atrás. Passeiam até ao jantar orgulhosos da sua maravilha asseada. Há uma canção dizendo que qualquer luz é melhor que a noite escura. Uma voz americana, rugosa. Qualquer luz é melhor que a noite escura.
Cansado de chorar o meu filho calou-se. Torno a deitá-lo. Fica quieto, de mãos fechadas, a dormir numa expressão de desdém. Torno à cozinha. A minha mulher deixou um frasco de verniz de unhas na bancada. Também ela dorme mas de bruços, prendendo a almofada. Acontece-lhe murmurar frases que não entendo sem sair do seu sono. O frasco de verniz em cima do microondas onde costuma deixar o bloco com os recados para a mulher a dias. Dou sempre com dois tipos de letra na mesma página, o recado dela em cima e a resposta da mulher a dias em baixo. Algumas moedas que sobraram das compras. E a canção americana a repetir dentro de mim
Qualquer luz é melhor que a noite escura.
Por que motivo continuo aqui? Há o meu filho, há a minha mulher. Será só isso? Perguntas e perguntas sem qualquer res­posta. A minha cabeça anda cheia de perguntas. Não dúvidas. Não inquietações. Perguntas. A minha mãe costumava dizer-me Quando fores mais velho hás-de compreender. Não devo ter envelhecido seja o que for dado que não compreendo nada.
Concentro-me na rua enquanto farrapos de ideias, de lem­branças, me invadem e se afastam. Por exemplo a minha avó a tapar os espelhos com lençóis quando alguém morria na famí­lia. Garantia que se a morte se encontrasse no espelho nunca mais se ia embora. Também não nos deixava deitar pão fora: guardava saquinhos e saquinhos de pão duro. Quando havia demasiados sacos e a minha mãe protestava, a minha avó desaparecia na escada com eles e voltava de mãos a abanar. Nunca ninguém soube onde escondia o pão. Faleceu com setenta e seis anos e a partir do seu falecimento a morte passou a encontrar-se à vontade nos espelhos.
Daqui a nada volto para a cama. Os lençóis mornos. Os números fosforescentes do despertador a azularem o quarto. A gra­vura com uma criança e um urso. Tudo coisas reais. Agradáveis. Verdadeiras. Fixo-me na gravura e as perguntas abandonam-me a pouco e pouco. A lembrança da minha avó também. Onde escondia o pão? Já não penso nisso. Já não penso em nada. Sinto-me resvalar devagarinho descendo, descendo, com a can­ção a repetir-me aos ouvidos que qualquer luz é melhor que a noite escura. Qualquer luz é melhor que a noite escura. Mesmo que apareça uma rapariga muito bonita não hei-de abandonar a minha vida.

António Lobo Antunes, Livro de Crónicas

1 de setembro de 2006


António Lobo Antunes (1942)


É da tua mão que eu preciso agora

É da tua mão que eu preciso agora. Há momentos, sabes, que me sinto tão cansado, todos estes dias cheios de palavras que me fogem. Então penso em ti: Joana. Penso: vou contar-te uma coisa. Há pouco tempo morreu a filha de um amigo meu, homem generoso e bom, melhor do que alguma vez fui. Um cemitério é um lugar horrível e a dor dele doía-me. Depois de tudo acabar voltei para o automóvel. Eram muitos passos nas veredas a voltarem para os automóveis. O caixãozinho branco. Aquelas árvores que tu conheces de quando a gente há dois anos. Despedi-me das pessoas um pouco ao acaso, sem sentir os dedos que apertava: têm tantos dedos as pessoas. Nem me lembro já porquê abri a mala do carro. Estavam lá dentro coisas tuas de Espanha: batas, papéis, as inutilidades confusas que estás sempre a juntar. Peguei numa das tuas batas, abracei-a. E desatei num choro de menino, de cabeça inclinada para a mala do carro na esperança de que não me vissem. Depois lá enxuguei o nariz à manga
nunca perdi o hábito de enxugar o nariz à manga
engoli-me a mim mesmo e vim-me embora. Sempre que me sento no teu carro lembro-me de ti. Também me lembro quando não me sento no carro mas sempre que me sento no carro lembro-me de ti. De ti e de Malanje onde começaste a ser, e as mangueiras tremem-me no interior do sangue.
Mas é da tua mão que eu preciso agora. Há momentos em que me farto de ser homem: tudo tão pesado, tão estranho, tão difícil. Eu vou tendo paciência e no entanto, às vezes as coi­sas magoam, há ideias que entram na gente como espinhos. Não se podem tirar com uma pinça: ficam lá. É então que a cara prin­cipia a estragar-se e a gente
dizem
envelhece. Necessito de muito pouca coisa hoje em dia: uns livros, o meu trabalho de escrever, amigos que se estreitam com o tempo, alguns deixados para trás, não sei onde. A minha avó dizia que fui a pessoa por quem chorava mais. Nunca acre­ditei. Era autoritária, mimada, sedutora: tratava-me tão bem! Jogávamos a ver qual de nós dois conquistava o outro: andáva­mos mais ou menos empatados
(sabes como detesto perder)
e nisto ela morreu. Recordo-me de sair de sua casa e vir à cervejaria comer. Ainda não tinha tempo de sentir-lhe a ausên­cia. Pedi o jornal desportivo ao empregado. Ao voltar para cima achei-a vestida sobre a cama.
Agora é novembro, tenho frio, ando às voltas com um romance de que não estou a gostar. Nunca estou a gostar do que escrevo, acho aquele em que trabalho o mais difícil, acho que as palavras me derrotam. Frases puxadas como pedras de um poço que não vejo. Banalidades que me indignam por estarem tão longe do que quero. Capítulos que me fogem, o plano da his­tória dinamitado pelos caprichos da minha mão, que não faz o que pretendo: escapa-se sempre, inventa, tenho de apanhá-la a meio de um período inverosímil. Talvez seja por isso que preciso da tua. Ou não por isso: não bebo e no entanto há alturas em que me sinto tão só que é quase o mesmo. E sem essa solidão não me é possível escrever. O meu amigo a quem morreu a filha chama-se José Francisco. Quando sorri os cantos da boca parecem levantar voo. Faz-me bem. Gostava de sorrir assim. Experimentei ao espelho e não é igual. Quer dizer, a boca curvou-se mas os olhos ficaram fixos, duros. Deixei de sorrir e enchi a cara de espuma da barba, até ser apenas nariz e olhos. Então sorri outra vez e os olhos acharam graça e mudaram. Os meus olhos sérios olhavam para os meus olhos divertidos. Pisquei o esquerdo e o espelho piscou o direito. Lavei a cara, apaguei a luz, saí. Por um segundo veio-me a sensação de caminhar em Malanje. Aquele cheiro da terra, demorado, opaco, violento. E pronto, é tarde. Em chegando ao fim da página aca­bou-se. Ponho a tampa na caneta, os cotovelos na mesa e fico a observar a parede. Nem vou reler isto, mando tal e qual. Prefiro observar a parede, deixar-me impregnar devagarinho pela essên­cia das coisas. Esta cadeira, aquele móvel, uma manchinha de cinza no chão, as minhas mãos geladas de frio a acabarem esta crónica. Se calhar amanhã telefono-te. Ou regresso ao romance na teimosia dos cães. Penso: nem que deixe a pele nele hei-de conseguir acabá-lo. Comecei-o no princípio de outubro, falta muito. Alinho os papéis, ponho tudo em ordem para a escrita. Nem que deixe a pele nele hei-de conseguir acabá-lo. Leio a última frase, continuo. Só por um bocadinho de nada, antes que continue, importas-te de tirar as batas do carro? Importas-te de me dar a mão?
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António Lobo Antunes, Segundo Livro de Crónicas
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1 de setembro de 2005


António Lobo Antunes (1942)


E PRONTO

Agora não. Talvez daqui a uma hora, amanhã, depois de amanhã, mais tarde, mas agora não. Agora aguen­ta-te, finge que és forte, sorri ou, pelo menos, puxa os cantos da boca para cima: se mantiveres os olhos se­cos vão pensar que é um sorriso. Então basta pedir
- Com licença
e saíres. Quantos metros até à porta? Seis? Sete? Continua com os cantos da boca puxados para cima, caminha de lado se não tens espaço, vai pedindo
- Com licença
toca ao de leve costas, ombros
- Com licença
contorna esse homem gordo que te não ouviu
os homens gordos nunca ouvem
quatro metros, três metros, mais costas, mais ombros, a música mais intensa porque um amplificador mesmo em ci­ma de ti, já nem vês o bar, já nem vês a pista, vês cabeças, ca­ras, nenhum braço que te acene, te chame, cabeças que não tor­narás a ver, caras que nunca viste, o homem gordo ainda, a fi­car lá para trás, distante, duas costas, dois ombros e a porta, uma costas, uns ombros e a porta, nenhumas costas, nenhum ombros, a porta, ou seja a primeira porta, o bengaleiro a seguir, entrega a senha à empregada, recebe o casaco, agradece o ca­saco aumentando o sorriso
não soltes os cantos da boca
devias ter entregue uma moeda com a senha
entregaste?
a segunda porta, a rua, as pessoas que esperam para entrar e te olham com inveja, o segurança de braços afastados a impedir uma rapariga
- Um momento
pisca um olho ao segurança
pisca-se sempre um olho amigo ao segurança
cumprimenta-o
- Até amanhã
ou assim, tanto faz, não se entende com a música, aceita a palmadinha do segurança que afinal te conhece
- Tão cedo?
e as pessoas que esperam para entrar não somente com inveja, com respeito, hesitando quem serás, quem não se­rás, uma delas
a esperta
para o segurança, a apontar-te
- Sou prima desta tipa
o segurança a aumentar no interior da camisa
- Disse um momento não disse?
já quase ninguém, já ninguém, tu sozinha na esquina, procura as chaves do carro na mala entre os lenços de papel e os óculos escuros, deixaste o automóvel ali em baixo, na praceta, não esta travessa, a seguinte, a seguinte também não, havia um chafariz por aqui, depois da padaria fechada talvez
é uma padaria
que estes bairros antigos parecem-se todos, acanha­dos, estreitos, os caixotes do lixo a atravancarem o passeio pa­ra além do que os moradores deitam fora, uma cadeira, um fo­gão, um armário amolgado, aí está o chafariz no fim de contas não à esquerda, à direita, com uma luz municipal em cima, a coroa da monarquia, uma data na pedra
1845
nenhuma bica a deitar água, a praceta e o seu qua­drado de relva, o banco de madeira a que faltam duas ripas, um jipe e passando o jipe o teu carro, quando chegaste en­tre um jipe e uma furgoneta e agora entre um jipe e outro ji­pe, os dois tão unidos ao automóvel que vais gastar um sé­culo a torcer o volante, a avançar, a recuar, a tirá-lo de mo­do que bates devagarinho neste, bates devagarinho naquele, talvez desta vez
não, um avanço e um recuo ainda
um drogado fraternal a auxiliar a manobra, vasculhar na carteira
lenços de papel, óculos escuros, a agenda com a pá­gina do telefone do dentista solta
em busca de uma moeda para o drogado
a moeda que devias ter dado no bengaleiro
e o drogado a olhar-te sem olhar a moeda de forma que tranca o carro depressa, o estalido das portas e o drogado a troçar-te mas com os olhos sérios, a espalmar o nariz no vi­dro, a diminuir, inofensivo, à medida que avanças, becos, traves­sas, sentidos proibidos, onde se apanha a avenida, onde raio se apanhará a avenida, novos sentidos proibidos, uma camioneta de lavar a rua a impedir-te um caminho que pensas conhecer, uma seta a obrigar-te a contornar uma estátua que não é bem uma estátua, é metade de um homem a emergir de um calhau e nisto, sem que dês conta, o rio, armazéns, contentores, uma espécie de guarita e perto da guarita os pescadores da noite jo­gando linhas ao Tejo, o cheiro do gasóleo, o cheiro da vazante, percebes a água por reflexos, escamas, não necessitas de sorrir nem de puxar os cantos da boca, inclina um bocadinho o ban­co, acomoda-te melhor, liga o rádio, experimenta um cigarro e a página do telefone do dentista a surgir da carteira juntamen­te com o maço
não apenas o dentista, Diná, David, Duarte
um papelinho amarelo colado por baixo do telefone a lembrar-te
quarta-feira onze
a consulta, guarda a página, se não achas o isqueiro tens o isqueiro do carro, empurra-se e daqui a nada salta com a ponta vermelha, não gostas do isqueiro do carro porque o ta­baco queimado fica preso aos aneizinhos em brasa, um dos pes­cadores procura isco na alcofa, os morros de Almada, uma paz tão grande não é, um sossego lento não é, uma calma não é, a tristeza a dissolver-se, fecha os olhos, descansa, e vais ver que daqui a nada já não te lembras que acabámos, daqui a nada já nem te lembras de mim.

António Lobo Antunes, Visão, 23 /05/02
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13 de fevereiro de 2005

Não sei o que seria da minha vida se não fosse a colecção de borboletas. Sobretudo no inverno, percebem, os dias peque­nos, a chuva, a tristeza das árvores, o papel da parede a destingir para dentro da minha mãe, para dentro de mim, o aparta­mento de súbito acanhado, uma vontade de qualquer coisa que não há, sobretudo nos domingos de inverno quando às quatro da tarde acendemos a luz e me apetece morrer. Não morrer, é claro, de uma morte por doença ou assim, simplesmente dei­xar de existir
trucla
como uma lâmpada se funde, desaparecer por completo, sem rastro, nunca ter nascido, não morar num corpo incómodo com braços a mais e pernas a mais e dentes a mais que doem
(a propósito tenho de marcar uma consulta sem falta para a semana que vem)
um corpo ainda por cima com frio, duas camisolas e os joe­lhos encostados ao calorífero, o cabelo que principia a rarear na moleirinha apesar dos tratamentos que leio no jornal e vou comprar à farmácia, umas ampolas caríssimas que não resolvem nada, deixar de existir
trucla
como uma lâmpada se funde sem a minha mãe dar por isso coitada, a minha mãe que a seguir ao falecimento do meu padri­nho voltou para casa com a colecção de borboletas
— O teu tio Fernando deixou-te isto
cinco caixas de vidro com os bichos, de asas abertas, prega­dos em cartões, e o nome a latim por baixo, cinco caixas de insectos coloridos, azuis, amarelos, encarnados, verdes, com pintas e listras e círculos e manchinhas simétricas que à minha mãe faziam pena e eu achava lindos. De forma que no inverno, quando me apetece morrer, vou buscar a colecção de borbole­tas ao armário do meu quarto, ponho-as ao lado umas das outras na mesa do jantar e fico durante horas debruçado para os bichos indiferente à chuva e à tristeza das árvores. A minha mãe ainda protesta do crochet a contar as malhas com a unha
— Sempre gostava de entender a graça que achas a isso
mas como detesta que eu saia por causa das más companhias e das doenças das mulheres, resolve calar-se não vá eu guardar as caixas e descer as escadas
(moramos num terceiro andar)
para a academia de bilhar da avenida, cheia de homens com a unha do mindinho comprida e de senhoras que fumam
(na opinião da minha mãe uma senhora que fuma não pode ser honesta)
e entrar-lhe na sala com uma noiva que lhe fique com as jóias, passe a decidir das refeições e a meta num lar. As jóias não são muitas: o meu pai não era rico, ninguém na nossa famí­lia era rico, e o que ela tem, para somar à aliança, é um anel com uma pedrinha que além de minúscula me parece falsa e um colar de pérolas que se vê logo que o é, demasiado perfeito como as dentaduras postiças. A colecção de borboletas tem a vantagem de nos manter no apartamento aos dois, a mim por­que não tenho tempo de arranjar uma namorada e casar-me e a minha mãe porque, na ideia dela eu, por minha vontade, nunca a meterei numa cave para velhos
(a minha mãe imagina que os velhos são sempre metidos em caves a passarem fome e cheios de percevejos)
no que aliás tem razão visto que gosto dela e nos damos bem. É raro zangarmo-nos, é raro discutirmos, não me queixo da co­mida nem há pó pelos cantos, e se não me apetecesse tanto mor­rer no inverno era uma pessoa feliz. De resto não posso dizer que seja especialmente infeliz: graças a Deus tenho tido saúde
(à parte a queda do cabelo, que seca)
não ganho muito no emprego mas para a vida que levamos e junto com a pensão do meu pai chega perfeitamente se pouparmos um bocadinho na luz, o apartamento é nosso, na pró­xima primavera fechamos a varanda da cozinha e fica uma mar­quise óptima para passar a ferro
(gosto do cheiro da roupa, daquele cheiro de humidade quente de quando se passa a ferro)
e mal o papel da parede começa a destingir para dentro de mim vou num pulo ao meu quarto e trago a colecção de bor­boletas do meu tio Fernando, o irmão da minha mãe que mor­reu de um aneurisma faz em janeiro três anos. Era solteiro como eu mas morava sozinho e de tempos a tempos aos sábados, como nós moramos perto do campo da bola, vinha almoçar connosco antes dos jogos. No fim do almoço enquanto a minha mãe lhe servia o café perguntava-me com um sorriso que nunca percebi
— Ensinas-me a voar?
eu com cara de parvo a achá-lo maluco, a minha mãe des­confiada
(a minha mãe desconfia de tudo)
— Que história é essa Fernando?
o meu tio Fernando, muito compenetrado, com os beici­nhos em bico para não se queimar e mão espalmada no peito para não sujar a gravata
(a minha mãe diz que as nódoas de café são um tormento)
— Todas as crianças sabem voar Madalena
e eu, agarrado aos móveis com medo de voar sem querer pelo corredor fora. Acho que foi por ter vontade de voar que o meu tio Fernando
(o meu tio Fernando trabalhava num banco a trocar dinheiro às pessoas)
começou sem dizer a ninguém a colecção de borboletas. Se calhar também o inverno era difícil para ele
(os dias pequenos, a chuva, uma vontade de qualquer coisa que não há)
se calhar também aos domingos, como não havia jogos, lhe apetecia morrer. Morava em duas assoalhadas escuríssimas com móveis parecidos com urnas e comia sozinho diante do jornal, ou seja com o jornal entalado entre o prato e o jarro da água (o médico proibiu-lhe o vinho derivado às artérias) e não me admira que lhe apetecesse morrer. Há alturas em que penso que toda a gente
(mesmo as que coleccionam borboletas)
tem vontade de morrer, e que se nos ensinassem a voar nos íamos logo embora para outro país qualquer, esses países sem domingos de inverno
(deve haver com certeza países sem domingos de inverno)
onde não é preciso fazer crochet toda a tarde nem olhar cai­xas com bichos porque se é feliz.
António Lobo Antunes, Livro de Crónicas
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