9 de setembro de 2007


Cesare Pavese (1908-1950)



PASSAREI PELA PRAÇA DE ESPANHA


O céu estará límpido.
As ruas abrir-se-ão
na colina de pinheiros e de pedra.
O tumulto das ruas
não mudará esse ar parado.
As flores das fontes
salpicadas de cores
abrirão os olhos como mulheres
divertidas. As escadas
os terraços as andorinhas
cantarão ao sol.
Abrir-se-á aquela rua,
as pedras cantarão,
o coração baterá em sobressalto
como a água nas fontes -
será esta a voz
que subirá as tuas escadas.
As janelas saberão
o odor da pedra e do ar
matinal. Abrir-se-á uma porta.
O tumulto das ruas
será o tumulto do coração
na luz extraviada.

Serás tu - quieta e clara.


Cesare Pavese


4 de setembro de 2007


José Luís Peixoto (1974)





não me arrependo das horas que perdi a esperar-te
quando ainda havia a esperança, a esperança que
havia ainda quando, a esperar-te, perdi horas de que
não me arrependo.


um instante na memória de chegares é mais valioso
do que jardins, do que montanhas, do que anos de
tempo.

arrependo-me de ficar ao sol, de sorrir, de esquecer
que devagar passam os dias. os dias passam devagar,
esquecendo-se de sorrir ao sol e de ficar onde me
arrependo.


José Luís Peixoto

1 de setembro de 2007


António Lobo Antunes (1942)

Qualquer luz é melhor que a noite escura



O frasco de verniz em cima do microondas, onde costuma deixar o bloco com os recados para a mulher a dias. Dou sem­pre com dois tipos de letra na mesma página, o recado dela em cima e a resposta da mulher a dias em baixo. Algumas moedas que sobraram das compras. E a canção americana a repetir den­tro de mim
Qualquer luz é melhor que a noite escura.
Hoje o meu filho acordou a meio da noite a chorar. Tem só três anos. Pensei que fosse febre ou os dentes ou isso de modo que lhe peguei ao colo e o trouxe a observar a rua, da cozinha. Agrada-me a cozinha à noite, com a bancada de tampo de gra­nito e aqueles aparelhos eléctricos, quadrados e grandes, que parecem tornar-se mais úteis no escuro. Agrada-me o seu aspecto competente e os intestinos misteriosos cheios de para­fusos e ventoinhas. Máquinas brancas, óculos redondos onde a roupa gira misturada com espuma. Pensei ligar uma das máqui­nas para entreter o meu filho. Para me entreter a mim. As vezes sento-me numa cadeira e fico a ver. Dão estalos, mudam de velocidade, de ruído. Como organismos vivos. O meu filho cheira a sono e a lágrimas. A rua quieta. Automóveis alinhados contra o passeio. Descubro o meu entre uma furgoneta cinzenta coberta de pó e um carro tapado com um pano. Conheço o dono. Aos domingos, em calções, tira o pano e gasta horas a limpar o carro com uma esponja. Nunca sorri. Limpar o carro é para ele o acto mais importante deste mundo. Quando acaba mete-se de novo em casa e regressa passada meia hora com a família atrás. Passeiam até ao jantar orgulhosos da sua maravilha asseada. Há uma canção dizendo que qualquer luz é melhor que a noite escura. Uma voz americana, rugosa. Qualquer luz é melhor que a noite escura.
Cansado de chorar o meu filho calou-se. Torno a deitá-lo. Fica quieto, de mãos fechadas, a dormir numa expressão de desdém. Torno à cozinha. A minha mulher deixou um frasco de verniz de unhas na bancada. Também ela dorme mas de bruços, prendendo a almofada. Acontece-lhe murmurar frases que não entendo sem sair do seu sono. O frasco de verniz em cima do microondas onde costuma deixar o bloco com os recados para a mulher a dias. Dou sempre com dois tipos de letra na mesma página, o recado dela em cima e a resposta da mulher a dias em baixo. Algumas moedas que sobraram das compras. E a canção americana a repetir dentro de mim
Qualquer luz é melhor que a noite escura.
Por que motivo continuo aqui? Há o meu filho, há a minha mulher. Será só isso? Perguntas e perguntas sem qualquer res­posta. A minha cabeça anda cheia de perguntas. Não dúvidas. Não inquietações. Perguntas. A minha mãe costumava dizer-me Quando fores mais velho hás-de compreender. Não devo ter envelhecido seja o que for dado que não compreendo nada.
Concentro-me na rua enquanto farrapos de ideias, de lem­branças, me invadem e se afastam. Por exemplo a minha avó a tapar os espelhos com lençóis quando alguém morria na famí­lia. Garantia que se a morte se encontrasse no espelho nunca mais se ia embora. Também não nos deixava deitar pão fora: guardava saquinhos e saquinhos de pão duro. Quando havia demasiados sacos e a minha mãe protestava, a minha avó desaparecia na escada com eles e voltava de mãos a abanar. Nunca ninguém soube onde escondia o pão. Faleceu com setenta e seis anos e a partir do seu falecimento a morte passou a encontrar-se à vontade nos espelhos.
Daqui a nada volto para a cama. Os lençóis mornos. Os números fosforescentes do despertador a azularem o quarto. A gra­vura com uma criança e um urso. Tudo coisas reais. Agradáveis. Verdadeiras. Fixo-me na gravura e as perguntas abandonam-me a pouco e pouco. A lembrança da minha avó também. Onde escondia o pão? Já não penso nisso. Já não penso em nada. Sinto-me resvalar devagarinho descendo, descendo, com a can­ção a repetir-me aos ouvidos que qualquer luz é melhor que a noite escura. Qualquer luz é melhor que a noite escura. Mesmo que apareça uma rapariga muito bonita não hei-de abandonar a minha vida.

António Lobo Antunes, Livro de Crónicas

26 de agosto de 2007


Julio Cortázar (1914-1984)


Instrucciones para llorar



Dejando de lado los motivos, atengámonos a la manera correcta de llorar, entendiendo por esto un llanto que no ingrese en el escándalo, ni que insulte a la sonrisa con su paralela y torpe semejanza. El llanto medio u ordinario consiste en una contracción general del rostro y un sonido espasmódico acompañado de lágrimas y mocos, estos últimos al final, pues el llanto se acaba en el momento en que uno se suena enérgicamente. Para llorar, dirija la imaginación hacia usted mismo, y si esto le resulta imposible por haber contraído el hábito de creer en el mundo exterior, piense en un pato cubierto de hormigas o en esos golfos del estrecho de Magallanes en los que no entra nadie, nunca. Llegado el llanto, se tapará con decoro el rostro usando ambas manos con la palma hacia adentro. Los niños llorarán con la manga del saco contra la cara, y de preferencia en un rincón del cuarto. Duración media del llanto, tres minutos.



Julio Cortázar, Historias de cronopios y de famas

24 de agosto de 2007


Jorge Luís Borges (1899-1986)



El amenazado


Es el amor. Tendré que cultarme o que huir.
Crecen los muros de su cárcel, como en un sueño atroz.
La hermosa máscara ha cambiado, pero como siempre es la única.
¿De qué me servirán mis talismanes: el ejercicio de las letras,
la vaga erudición, el aprendizaje de las palabras que usó el áspero Norte para cantar sus mares y sus espadas,
la serena amistad, las galerías de la biblioteca, las cosas comunes,
los hábitos, el joven amor de mi madre, la sombra militar de mis muertos, la noche intemporal, el sabor del sueño?
Estar contigo o no estar contigo es la medida de mi tiempo.
Ya el cántaro se quiebra sobre la fuente, ya el hombre se
levanta a la voz del ave, ya se han oscurecido los que miran por las ventanas, pero la sombra no ha traído la paz.
Es, ya lo sé, el amor: la ansiedad y el alivio de oír tu voz, la espera y la memoria, el horror de vivir en lo sucesivo.
Es el amor con sus mitologías, con sus pequeñas magias inútiles.
Hay una esquina por la que no me atrevo a pasar.
Ya los ejércitos me cercan, las hordas.
(Esta habitación es irreal; ella no la ha visto.)
El nombre de una mujer me delata.
Me duele una mujer en todo el cuerpo.


Jorge Luís Borges


23 de agosto de 2007


Edgar Lee Masters (1868-1950)

George Gray


I have studied many times
The marble which was chiseled for me--
A boat with a furled sail at rest in a harbor.
In truth it pictures not my destination
But my life.
For love was offered me and I shrank from its disillusionment;
Sorrow knocked at my door, but I was afraid;
Ambition called to me, but I dreaded the chances.
Yet all the while I hungered for meaning in my life.
And now I know that we must lift the sail
And catch the winds of destiny
Wherever they drive the boat.
To put meaning in one's life may end in madness,
But life without meaning is the torture
Of restlessness and vague desire--
It is a boat longing for the sea and yet afraid.

Edgar Lee Masters, Spoon River Anthology

Obrigada, Roberto...

18 de agosto de 2007

Carta a Mário de Sá-Carneiro


Escrevo-lhe hoje por uma necessidade sentimental - uma ânsia aflita de falar consigo. Como de aqui se depreende, eu nada tenho a dizer-lhe. Só isto - que estou hoje no fundo de uma depressão sem fundo. O absurdo da frase falará por mim.
Estou num daqueles dias em que nunca tive futuro. Há só um presente imóvel com um muro de angústia em torno. A margem de lá do rio nunca, enquanto é a de lá, é a de cá; e é esta a razão íntima de todo o meu sofrimento. Há barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer, nem há desembarque onde se esqueça. Tudo isto aconteceu há muito tempo, mas a minha mágoa é mais antiga.
Em dias da alma como hoje eu sinto bem, em toda a minha consciência do meu corpo, que sou a crianca triste em quem a vida bateu. Puseram-me a um canto de onde se ouve brincar. Sinto nas mãos o brinquedo partido que me deram por uma ironia de lata. Hoje, dia catorze de Março, às nove horas e dez da noite, a minha vida sabe a valer isto.
No jardim que entrevejo pelas janela caladas do meu sequestro, atiraram com todos os balouços para cima dos ramos de onde pendem; estão enrolados muito alto; e assim nem a ideia de mim fugido pode, na minha imaginacão, ter balouços para esquecer a hora.
Pouco mais ou menos isto, mas sem estilo, é o meu estado de alma neste momento. Como à veladora do "Marinheiro" ardem-me os olhos, de ter pensado em chorar. Dói-me a vida aos poucos, a goles, por interstícios. Tudo isto está impresso em tipo muito pequeno num livro com a brochura a descoser-se.
Se eu não estivesse escrevendo a você, teria que lhe jurar que esta carta é sincera, e que as coisas de nexo histérico que aí vão saíram espontâneas do que me sinto. Mas você sentirá bem que esta tragédia irrepresentável é de uma realidade de cabide ou de chávena - cheia de aqui e de agora, e passando-se na minha alma como o verde nas folhas.
Foi por isto que o Príncipe não reinou. Esta frase é inteiramente absurda. Mas neste momento sinto que as frases absurdas dão uma grande vontade de chorar.
Pode ser que, se não deitar hoje esta carta no correio amanhã, relendo-a, me demore a copiá-la à máquina, para inserir frases e esgares dela no "Livro do Desassossego". Mas isso nada roubará à sinceridade com que a escrevo, nem à dolorosa inevitabilidade com que a sinto.
As últimas notícias são estas. Há também o estado de guerra com a Alemanha, mas já antes disso a dor fazia sofrer. Do outro lado da Vida, isto deve ser a legenda duma caricatura casual.
Isto não é bem a loucura, mas a loucura deve dar um abandono ao com que se sofre, um gozo astucioso dos solavancos da alma, não muito diferentes destes.
De que cor será sentir?
Milhares de abraços do seu, sempre muito seu,

FERNANDO PESSOA

P.S. - Escrevi esta carta de um jacto. Relendo-a, vejo que, decididamente, a copiarei amanhã, antes de lha mandar. Poucas vezes tenho tão completamente escrito o meu psiquismo, com todas as suas atitudes sentimentais e intelectuais, com toda a sua histero-neurastenia fundamental, com todas aquelas intersecções e esquinas na consciência de si-próprio que dele são tao características...
Você acha-me razão, não é verdade?

16 de agosto de 2007


Charles Bukowski (1920-1994)



Oh Yes


there are worse things than
being alone
but it often takes decades
to realize this
and most often
when you do
it's too late
and there's nothing worse
than
too late.

Charles Bukowski

15 de agosto de 2007


Fiama Hasse Pais Brandão (1938-2007)



Do Outono II


Sem vento, a minha voz secou
aqui, neste parque de cedros quietos.

Tudo é como ontem era, mas a minha
voz, na minha face, calou-se,
porque só o vento me trazia a fala,
vinda de algures, com notícias de alguém,
indo para além, para outros ouvidos, num país.



Fiama Hasse Pais Brandão

12 de agosto de 2007


Miguel Torga (1907-1995)


VIAGEM

Aparelhei o barco da ilusão
E reforcei a fé de marinheiro.
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
O mar...
( Só nos é concedida
Esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos).


Prestes, larguei a vela
E disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida,
A revolta imensidão
Transforma dia a dia a embarcação
Numa errante e alada sepultura...
Mas corto as ondas sem desanimar.
Em qualquer aventura.
O que importa é partir, não é chegar.

Miguel Torga
.
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11 de agosto de 2007


Carlos de Oliveira (1921-1981)

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EDGAR ALLAN POE



O inverno em Boston foi breve. Ele bebia. Sílabas abriam-se uma a uma pelos cantos do quarto. Gotas de álcool. Quem se lembra da chuva caída no seu nome?
Folheou toda a noite os livros ancestrais e encontrou qualquer coisa, ninguém sabe o quê, talvez o retrato de Annabel Lee. Esboçou-o na vidraça carregada de sombra e o quarto amanheceu.
«Mas isso pouco vale (diz a magia negra), o filtro apenas decompôs mais cedo o horror em luz, não alterou a solidão dos dias, que a noite separa uns dos outros para sempre».



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Carlos de Oliveira, Trabalho Poético






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9 de agosto de 2007


Mário Cesariny (1923-2006)



de profundis amamus


Ontem
às onze
fumaste
um cigarro
encontrei-te
sentado
ficámos para perder
todos os teus eléctricos
os meus
estavam perdidos
por natureza própria
Andámos
dez quilómetros
a pé
ninguém nos viu passar
excepto
claro
os porteiros
é da natureza das coisas
ser-se visto
pelos porteiros
Olha
como só tu sabes olhar
a rua os costumes
O Público
o vinco das tuas calças
está cheio de frio
e há quatro mil pessoas interessadas
nisso
Não faz mal abracem-me
os teus olhos
de extremo a extremo azuis
vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós
mas não te importes
não te importes
muito
nós só temos a ver
com o presente
perfeito
corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem
o estranho verbo nosso



Mário Cesariny






30 de julho de 2007


Mário Quintana (1906-1994)




Poema da gare de Astapovo


O velho Leon Tolstoi fugiu de casa aos oitenta anos
E foi morrer na gare de Astapovo!
Com certeza sentou-se a um velho banco,
Um desses velhos bancos lustrosos pelo uso
Que existem em todas as estaçõezinhas pobres do mundo,
Contra uma parede nua...
Sentou-se... e sorriu amargamente
Pensando que
Em toda a sua vida
Apenas restava de seu a Glória,
Esse irrisório chocalho cheio de guizos e fitinhas
Coloridas
Nas mãos esclerosadas de um caduco!
E então a Morte,
Ao vê-lo sozinho àquela hora
Na estação deserta,
Julgou que ele estivesse ali à sua espera,
Quando apenas sentara para descansar um pouco!
A Morte chegou na sua antiga locomotiva
(Ela sempre chega pontualmente na hora incerta...)
Mas talvez não pensou em nada disso, o grande Velho,
E quem sabe se até não morreu feliz: ele fugiu...
Ele fugiu de casa...
Ele fugiu de casa aos oitenta anos de idade...
Não são todos os que realizam os velhos sonhos da infância!

Mário Quintana

7 de julho de 2007

Marc Chagall, «O Violinista Azul»
Marc Chagall (1887-1985)

29 de junho de 2007


Vasko Popa (1922-1991)


Give me back my rags #8

So you want us to love each other
You can make me out of ashes
The trash of my belly laughs
Out of what’s left of my boredom
You can doll-face
You can grab me by the hair of my short memory
Hug my night in its empty shirt
Kiss and kiss my echo
And you don’t even know how to love
.
Vasko Popa (tradução inglesa de Charles Simic)

9 de junho de 2007


José Gomes Ferreira (1900-1985)

Acendi o fogão
mas continuo gelado
no dia mais frio do tempo
ou, se quiserem, do ano.
Outra pá de carvão
e sento-me ao piano
para aquecer os dedos
nas pequeninas chamas que saem das teclas
e desenham com sons de outro lume
o perfume a da solidão.

A música tem os seus segredos,
como o de trazer do centro da terra
o fogo misterioso
do frio em combustão.

José Gomes Ferreira, Poesia VI

j

1 de junho de 2007


Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band (1967)

12 de maio de 2007

Eco

Vagas são as promessas e ao longe,
muito longe, uma estrela.

Cruel foi sempre o seu fulgor:
sonâmbulas cidades, ruas íngremes,
passos que dei sem onde.

Era esse o meu reino, e era talvez essa
a voz da própria lua.
Aí ficou gravada a minha sede.
Aí deixei que o fogo me beijasse
pela primeira vez.

Agora tenho as mãos vazias,
regresso e sei que nada me pertence
- nenhum gesto do céu ou da terra.
Apenas o rumor de breves sombras
e um nome já incerto que por mágoa
não consigo esquecer.

Fernando Pinto do Amaral

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29 de abril de 2007


Nuno Júdice (1949)


ALEGORIA

Faço um castelo na areia do futuro. Torres
de névoa, ameias de fumo, pontes levadiças
de indecisão. Vejo a areia escoar-se
na ampulheta dos séculos; e um exército
de ondas rompe as linhas do infinito,
derrubando os muros da manhã.

Nuno Júdice, Pedro Lembrando Inês

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18 de abril de 2007


Antero de Quental (1842-1891)


SEPULTURA ROMÂNTICA

Ali, onde o mar quebra, num cachão
Rugidor e monótono, e os ventos
Erguem pelo areal os seus lamentos,
Ali se há-de enterrar meu coração.

Queimem-no os sóis da adusta solidão
Na fornalha do estio, em dias lentos;
Depois, no inverno, os sopros violentos
Lhe revolvam em torno o árido chão...

Até que se desfaça e, já tornado
Em impalpável pó, seja levado
Nos turbilhões que o vento levantar...

Com suas lutas, seu cansado anseio,
Seu louco amor, dissolva-se no seio
Desse infecundo, desse amargo mar!

Antero de Quental, Sonetos



15 de abril de 2007

Name of a tree


Some days I am Ana's teacher, some days she is mine.
This morning, we look through her kitchen window,
the one she can't get clean, cobwebs massed
between sash and pane. The sky is blue-gold, almost
the color of home.
Ana, I say, each winter
I get more lonely. Both of us would like the sun
to linger as that fruit in June, but Ana says
it's better to forget what you used to know...

Catherine Anderson

7 de abril de 2007

Almada Negreiros, «Auto-Retrato»
Almada Negreiros (1893-1970)

A minha sombra sou eu,
ela não me segue,
eu estou na minha sombra
e não vou em mim.
Sombra de mim que recebo a luz,
sombra atrelada ao que eu nasci,
distância imutável de minha sombra a mim,
toco-me e não me atinjo,
só sei do que seria
se de minha sombra chegasse a mim.
Passa-se tudo em seguir-me
e finjo que sou eu que sigo,
finjo que sou eu que vou
e não que me persigo.
Faço por confundir a minha sombra comigo:
estou sempre às portas da vida,
sempre lá, sempre às portas de mim!

Almada Negreiros
.

11 de março de 2007


Sebastião Alba (1940-2000)



N
inguém meu amor

Ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obrigá-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos


Sebastião Alba
.

10 de março de 2007

Sonnet CXXX

My mistress' eyes are nothing like the sun;
Coral is far more red than her lips' red;
If snow be white, why then her breasts are dun;
If hairs be wires, black wires grow on her head.
I have seen roses damask'd, red and white,
But no such roses see I in her cheeks;
And in some perfumes is there more delight
Than in the breath that from my mistress reeks.
I love to hear her speak, yet well I know
That music hath a far more pleasing sound.
I grant I never saw a goddess go;
My mistress, when she walks, treads on the ground.
And yet, by heaven, I think my love as rare
As any she belied with false compare.

William Shakespeare



Sonnet CXLI

In faith, I do not love thee with mine eyes,
For they in thee a thousand errors note;
But 'tis my heart that loves what they despise,
Who in despite of view is pleased to dote;
Nor are mine ears with thy tongue's tune delighted,
Nor tender feeling, to base touches prone,
Nor taste, nor smell, desire to be invited
To any sensual feast with thee alone:
But my five wits nor my five senses can
Dissuade one foolish heart from serving thee,
Who leaves unsway'd the likeness of a man,
Thy proud hearts slave and vassal wretch to be:
Only my plague thus far I count my gain,
That she that makes me sin awards me pain.

William Shakespeare

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21 de fevereiro de 2007


W. H. Auden (1907-1973)



Miranda


My Dear One is mine as mirrors are lonely,
And the poor and sad are real to the good king,
And the high green hill sits always by the sea.

Up jumped the Black Man behind the elder tree,
Turned a somersault and ran away waving;
My Dear One is mine as mirrors are lonely.

The Witch gave a squawk; her venomous body
Melted into light as water leaves a spring,
And the high green hill sits always by the sea.

At his crossroads, too, the Ancient prayed for me,
Down his wasted cheek tears of joy were running:
My Dear One is mine as mirrors are lonely.

He kissed me awake and no one was sorry;
The sun shone on sails, eyes, pebbles, anything,
And the high green hill sits always by the sea.

So to remember our changing garden, we
Are linked as children in a circle dancing:
My Dear One is mine as mirrors are lonely,
And the high green hill sits always by the sea.

W. H. Auden




11 de fevereiro de 2007


Else Lasker-Schüler (1869-1945)



Parting

But you never came with the evening —
I sat waiting in a shawl of stars...
Whenever there was a knocking at my door,
It was my own heart.
It now hangs on every doorpost,
Even on yours;
Between the ferns the fireroses expireI
n the withering garland.
I dyed the heaven blackberry
With my heartblood.
But you never came with the evening —
... I stood waiting in golden shoes.

Else Lasker-Schüler

versão inglesa de A. Durchschlag e J. Litman-Demeestere

4 de fevereiro de 2007


João de Melo (1949)

Eu sou talvez de todos o mais sóbrio. Bebo só até ao limite do meu próprio desejo do vinho. Porque o vinho alegra, aviva e expõe os estados feridos da minha alma; ele gira e corre no meu sangue como a máquina dos sonhos que se movem ocultos no meu conheci­mento de mim; e alivia e liberta o meu coração dos verbos proibidos e dos pensamentos frios. O vinho sou eu e os meus inofensivos delitos. Sabe-o bem a minha mulher; sabe-o no momento em que meto a chave à porta e entro em casa. Nunca me viu cambalear, nem decerto me ouviu dizer grandes disparates. Mas basta-lhe pousar os olhos nos meus olhos e os lábios nos meus lábios: ninguém como ela conhece a razão de ser do vinho no meu hálito e no meu olhar; ninguém como ela sabe que a tragédia de certos homens con­siste precisamente em nunca terem estado à altura de tragédia nenhuma; ninguém como a minha mulher compreende quão importante é para mim mudar de vez em quando o meu mundo, soltar o pássaro que em mim deixou de cantar, abrir-me em quilha, rasgar a vela do meu barco e erguer ao vento do mar impossí­vel os destinos da alma; ninguém como ela até hoje percebeu o que sofre um homem que não sofre, um homem que se despediu de todos e de cada um dos seus sonhos de homem, no tempo do seu país — por­que só ela, minha mulher, me acompanha à cama; só ela vê como me deixo cair não ao comprido, mas de atravessado na nossa cama de casal, à maneira de um desesperado que tivesse naufragado à vista da praia. Só ela me despe, me enfia o pijama e põe a direito na cama; só ela me tapa com um lençol e dois cobertores para que eu possa dormir sem correr o risco de gelar de madrugada; e só ela volta — então mais só do que nunca — para o silêncio da noite e da cozinha, a fim de se sentar à mesa, olhar as horas paradas no relógio da parede e (comigo ausente da sua vida) comer pão com lágrimas, beber leite frio com cevada e ficar para ali, hora após hora, a tentar desistir da vida, de mim, da minha mágoa de homem nascido para nada, ainda que sem o conseguir — e a chorar por ela e por mim, mas também para nada.

João de Melo, As Coisas da Alma

16 de janeiro de 2007


Carlos Pellicer(1899-1977)

HOY QUE HAS VUELTO

Hoy que has vuelto, los dos hemos callado,
y sólo nuestros viejos pensamientos
alumbraron la dulce oscuridad
de estar juntos y no decirse nada.

Sólo las manos se estrecharon tanto
como rompiendo el hierro de la ausencia.
¡Si una nube eclipsara nuestras vidas!

Deja en mi corazón las voces nuevas,
el asalto clarísimo, presente,
de tu persona sobre los paisajes
que hay en mí para el aire de tu vida.

Carlos Pellicer

HOJE, QUE REGRESSASTE

Hoje, que regressaste, calámo-nos os dois,
e só os nossos velhos pensamentos
iluminaram a doce obscuridade
de estar juntos e não se dizer nada

Só as mãos se estreitaram tanto
como rasgando o ferro da ausência.
Se uma nuvem eclipsasse as nossas vidas!

Deixa em meu coração as vozes novas,
o assalto claríssimo, presente,
da tua pessoa sobre as paisagens
que há em mim para o ar da tua vida.

Carlos Pellicer (tradução de Mito )

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11 de janeiro de 2007


Al Berto (1948-1997)



ENCOMENDA POSTAL

destino-te a tarefa de me sepultares
no segredo mineral da noite
com um lápis e uma máquina fotográfica

depois
fica atento ao correio
do secular laboratório nocturno enviar-te-ei
devidamente autografado
o retrato da solidão que te pertenceu

e numa encomenda à parte receberás
a revelação desta arte
onde a vida cinzelou o precário corpo
na luz afiada de um vestígio de tinta


Al Berto
.

10 de dezembro de 2006


Clarice Lispector (1920-1977)


UMA ESPERANÇA

Aqui em casa pousou uma esperança. Não a clássica, que tantas vezes verifica-se ser ilusória, embora mesmo assim nos sustente sempre. Mas a outra, bem concreta e verde: o insecto.
Houve um grito abafado de um de meus filhos:
- Uma esperança! e na parede, bem em cima de sua cadeira! Emoção dele também que unia em uma só as duas esperanças, já tem idade para isso. Antes surpresa minha: esperança é coisa secreta e costuma pousar directamente em mim, sem ninguém saber, e não acima de minha cabeça numa parede. Pequeno rebuliço: mas era indubitável, lá estava ela, e mais magra e verde não poderia ser.
- Ela quase não tem corpo, queixei-me.
- Ela só tem alma, explicou meu filho e, como filhos são uma surpresa para nós, descobri com surpresa que ele falava das duas esperanças.
Ela caminhava devagar sobre os fiapos das longas pernas, por entre os quadros da parede. Três vezes tentou renitente uma saída entre dois quadros, três vezes teve que retroceder caminho. Custava a aprender.
- Ela é burrinha, comentou o menino.
- Sei disso, respondi um pouco trágica.
- Está agora procurando outro caminho, olhe, coitada, como ela hesita.
- Sei, é assim mesmo.
- Parece que esperança não tem olhos, mamãe, é guiada pelas antenas.
- Sei, continuei mais infeliz ainda.
Ali ficamos, não sei quanto tempo olhando. Vigiando-a como se vigiava na Grécia ou em Roma o começo de fogo do lar para que não se apagasse.
- Ela se esqueceu de que pode voar, mamãe, e pensa que só pode andar devagar assim.
Andava mesmo devagar - estaria por acaso ferida? Ah não, senão de um modo ou de outro escorreria sangue, tem sido sempre assim comigo.
Foi então que farejando o mundo que é comível, saiu de trás de um quadro uma aranha. Não uma aranha, mas me parecia "a" aranha. Andando pela sua teia invisível, parecia transladar-se maciamente no ar. Ela queria a esperança. Mas nós também queríamos e, oh! Deus, queríamos menos que comê-la. Meu filho foi buscar a vassoura. Eu disse fracamente, confusa, sem saber se chegara infelizmente a hora certa de perder a esperança:
- É que não se mata aranha, me disseram que traz sorte...
- Mas ela vai esmigalhar a esperança! respondeu o menino com ferocidade.
- Preciso falar com a empregada para limpar atrás dos quadros - falei sentindo a frase deslocada e ouvindo o certo cansaço que havia na minha voz. Depois devaneei um pouco de como eu seria sucinta e misteriosa com a empregada: eu lhe diria apenas: você faz o favor de facilitar o caminho da esperança.
O menino, morta a aranha, fez um trocadilho, com o insecto e a nossa esperança. Meu outro filho, que estava vendo televisão, ouviu e riu de prazer. Não havia dúvida: a esperança pousara em casa, alma e corpo.
Mas como é bonito o insecto: mais pousa que vive, é um esqueletinho verde, e tem uma forma tão delicada que isso explica por que eu, que gosto de pegar nas coisas, nunca tentei pegá-la.
Uma vez, aliás, agora é que me lembro, uma esperança bem menor que esta, pousara no meu braço. Não senti nada, de tão leve que era, foi só visualmente que tomei consciência de sua presença. Encabulei com a delicadeza. Eu não mexia o braço e pensei: "e essa agora? que devo fazer?" Em verdade nada fiz. Fiquei extremamente quieta como se uma flor tivesse nascido em mim. Depois não me lembro mais o que aconteceu. E, acho que não aconteceu nada.
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Clarice Lispector, Felicidade Clandestina
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4 de dezembro de 2006


Rainer Maria Rilke (1875-1926)



Antecipa-te a toda a despedida, como se ela te ficasse
já para trás, como o inverno que está a partir.
Pois entre invernos há um tão sem-fim inverno
que, sobre-hibernando-o, o teu coração sobreviverá.

Sê sempre morto em Eurídice - , mais cantante sobe,
Mais celebrante sobe e volta à pura relação.
Sê aqui, entre os efémeros, no reino do declínio,
Sê cristal tininte que já no tinido se quebrou.

Sê – e sabe ao mesmo tempo a condição do não-ser,
A infinda razão do teu íntimo vibrar
Pra a cumprires totalmente esta única vez.

Às reservas usadas, como às surdas e mudas,
Da natureza plena, às somas incontáveis
Soma-te a ti com júbilo e destrói o número.


Rainer Maria Rilke, Sonetos a Orfeu (tradução de Paulo Quintela)

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1 de dezembro de 2006


Pedro Tamen (1934)


Escrito de memória

Formado em direito e solidão,
às escuras te busco enquanto a chuva brilha.
É verdade que olhas, é verdade que dizes.
Que todos temos medo e água pura.

A que deuses te devo, se te devo,
que espanto é este, se há razão pra ele?
Como te busco, então, se estás aqui,
ou, se não estás, porque te quero tida?
Quais olhos e qual noite?
Aquela
em que estiveste por me dizeres o nome.


Pedro Tamen



28 de novembro de 2006


María Victoria Atencia (1931)


PUERTO



Para Biruté Ciplijauskaité

Escucho las campanas del puente de los barcos:
septiembre es mes de tránsito y una goleta viene
a llamarme a las islas, o el cuarto se desplaza
lentamente. ¿Quién parte
junto a los marineros o quién roza mis muebles?
Oh puerto mío, acógeme esta tarde,
envuélveme un pañuelo de lana por los hombros
o llévame en un cuarto de roble mar adentro.

María Victoria Atencia

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26 de novembro de 2006

Haverá uma idade para nomes que não estes
haverá uma idade para nomes
puros
nomes que magnetizem
constelações
puras
que façam irromper nos nervos e nos ossos
dos amantes
inexplicáveis construções radiosas
prontas a circular entre a fuligem
de duas bocas
puras

Ah não será o esperma torrencial diuturno
nem a loucura dos sábios nem a razão de ninguém
Não será mesmo quem sabe ó único mestre vivo
o fim da pavorosa dança dos corpos
onde pontificaste de martelo na mão

Mas haverá uma idade em que serão esquecidos por completo
os grandes nomes opacos que hoje damos às coisas

Haverá
um acordar

Mário Cesariny

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23 de novembro de 2006


Herberto Helder (1930)

Muitas canções começam no fim, em cidades
estranhas. Sei
que a felicidade dos meses é ao meio e a força
de um homem é ao meio
da vida pura. Mas são muitas
as canções que começam no fim.
É no fim que secamente falam do ardor
ao meio
da cidade e da existência que se volta
para si, de rosto — tremente
e verde de sua ilusão. Canções cada vez
mais no seu fim, tão secas voltadas
imenso para trás. Para onde
é todo o poder. Conheço
horríveis canções cor de coisas transtornadas.
Canções ainda repletas de peixes, flechas, dedos
agudos abertos em torno do sexo.
Começam no fim do seu pensamento.
São para morrer na véspera, com um lento
pavor no coração e o povo
atónito por todos os lados. Porque o povo
não sabe que um homem morre antes da sua
última canção.


Herberto Helder

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18 de novembro de 2006


Manuel António Pina (1943)


(ESCRITO DE MEMÓRIA)


1. Um pequeno depósito de incredulidade
no fundo dos teus olhos.
2. Um breve estremecimento no movimento
do coração (do meu coração).
3. A impressão de alguém olhando-
-te atrás de ti.
4. Uma voz familiar
num sítio cheio de gente
(que só tu ouves dentro de ti).
5. Um súbito silêncio entre as
sílabas de certas palavras
que fica depois a pairar perto dos lábios.
6. A ignorância de alguma coisa
que ainda não sabes que não sabes.
7. Uma palavra só, aguardando,
uma palavra que basta dizer ou não dizer,
abrindo caminho entre ser e possibilidade.
8. O que não sou capaz de dizer dizendo-me.
9. Eu (um lugar vazio) para sempre; tu para sempre.
10. Outras duas pessoas
de que outras duas pessoas se lembram.
11. Esse país estrangeiro, o tempo.

Manuel António Pina, Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança

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14 de novembro de 2006

Monet,«Le Bassin aux Nymphéas»
Claude Monet (1840-1926)

12 de novembro de 2006

Aprendi a viver com simplicidade, com juízo,
a olhar o céu, a fazer minhas orações,
a passear sozinha até à noite,
até ter esgotado esta angústia inútil.
Enquanto no penhasco murmuram as bardanas
e declina o alaranjado cacho da sorveira,
componho versos bem alegres
sobre a vida caduca, caduca e belíssima.

Volto para casa. Vem lamber a minha mão
o gato peludo, que ronrona docemente,
e um fogo resplandecente brilha
no topo da serraria, à beira do lago.

Só de vez em quando o silêncio é interrompido
pelo grito da cegonha pousando no telhado.
Se vieres bater à minha porta,
é bem possível que eu sequer te ouça.

Ana Akhmatova
Tradução de Lauro Machado Coelho

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30 de outubro de 2006


EURÍDICE

Lançaste-me então para trás,
eu que poderia ter caminhado com as almas vivas sobre a terra,
eu que poderia ter dormido entre flores vivas
por fim;

então pela tua arrogância
pela tua truculência
fui lançada para trás
para onde o líquen morto escorre
escórias mortas sobre musgo de cinza;

então pela tua arrogância
estou por fim despedaçada,
eu que vivi inconsciente,
que fui quase esquecida;

se me tivesses deixado esperar
teria crescido da indiferença
para a paz,
se me tivesses deixado repousar com os mortos,
ter-me-ia esquecido de ti
e do passado.

Hilda Doolittle (tradução de Filipe Jarro)
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25 de outubro de 2006


John Berryman (1914-1972)


Dream Song 14

Life, friends, is boring. We must not say so.
After all, the sky flashes, the great sea yearns,
we ourselves flash and yearn,
and moreover my mother told me as a boy
(repeatingly) "Ever to confess you're bored
means you have no

Inner Resources." I conclude now I have no
inner resources, because I am heavy bored.
Peoples bore me,
literature bores me, especially great literature,
Henry bores me, with his plights & gripes
as bad as Achilles,

who loves people and valiant art, which bores me.
And the tranquil hills, & gin, look like a drag
and somehow a dog
has taken itself & its tail considerably away
into the mountains or sea or sky, leaving
behind: me, wag.

John Berryman

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22 de outubro de 2006

Sem Título
Robert Rauschenberg (1925)

20 de outubro de 2006


Mario Luzi (1914-2005)

Ano

Benéficas agora, ainda tranquilas
As cepas, as uvas
A vinha do enforcado. O Outro
É ainda o desconhecido, o Outro estava, está sempre
Fechado neste céu opaco
Onde a luz avinhada
É cada vez mais frouxa
- e o grito do tentilhão já é só gelo.

Aqui, nestes trabalhos calmos,
Claros, aqui prossegue e arde
O todo que não tenho
Mas tenho que perder.
Os tempos que se foram,
O tempo que aí vem
Arremetem –
Sem saber como, cheguei aqui,
Espero, ardo, avanço por
Dias e dias inacessíveis
E torno-me sem fim o que já sou,
A repousar nesta luz vazia.

Mario Luzi

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14 de outubro de 2006


e. e. cummings (1894-1962)

toda a ignorância escorrega para o saber
e de novo se arrasta para a ignorância:
mas o inverno não é para sempre,mesmo a neve
derrete;e se a primavera estragar o jogo, que fazer?

toda a história é um desporto de inverno ou três:
que fossem cinco, eu seguiria insistindo que toda
a história é demasiado pequena até mesmo para mim;
para mim e para ti, excessivamente demasiado pequena.

Mergulha (estridente mito colectivo) na tua tumba tão-só para trabalhar a escala até à hiperestridência por cada magda e marta diogo e david
-amanhã é o nosso endereço permanente

e aí mal nos hão-de achar(se acharem,
mudaremos ainda mais para diante:para agora

e.e.cummings

(tradução de Jorge Fazenda Lourenço)

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9 de outubro de 2006


Jan Voss (1936)

3 de outubro de 2006


Pierre Bonnard (1867-1947)
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28 de setembro de 2006

Caravaggio, «Narciso»
Michelangelo Merisi “Caravaggio” (1571-1610)
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26 de setembro de 2006

Nascido a 26 de Setembro


George Gershwin (1898-1937)

20 de setembro de 2006


Luis Cernuda (1902-1963)


Desdita

Um dia compreendeu como seus braços eram
Somente feitos de nuvens;
Impossível com nuvens abraçar até ao fundo
Um corpo, uma sorte.

A sorte é redonda e conta lentamente
As estrelas do estio.
Fazem falta uns braços seguros como o vento,
E como o mar um beijo.

Mas ele como seus lábios,
Com seus lábios não sabe dizer senão palavras;
Palavras até ao tecto,
Palavras até ao solo,
E seus braços são nuvens que transformam a vida
Em ar navegável.

Luis Cernuda (tradução de João Emanuel Diogo)


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18 de setembro de 2006


Maria Judite de Carvalho (1921-1998)


O MAL

Era um rapazinho estranho, pensavam os colegas e a família, pouco à vontade, caminhando de mansinho, cerimonioso, na vida, e às vezes como que esquecido dela. Não entrava no esquema, e as pessoas que o rodeavam sentiam-se frustradas e até impotentes, irritadas às vezes, perante a sua inércia e o seu desinteresse, mais ainda perante o seu leve, quase inexistente interesse por coisas que eram decerto erradas porque as ignoravam. Dir-se-ia que ele se ia perdendo aos poucos, ao longo dos dias. O seu olhar redondo parecia às vezes ficar pegado, ali e além, mas sempre num ali e num além desinteressantes para os outros, perigosos, e quando um grito ou uma repreensão obrigava o olhar a soltar-se, a criança parecia de repente magoada, perplexa e só, num mundo desconhecido.
Na escola aprendia com dificuldade e o computador que dava mensal­mente as notas, com a sua gelada isenção de máquina, queixava-se sempre dele em cartão perfurado. Não gostava de números, o que afligia os pais, porque os números eram a única solução para os homens e ninguém podia ganhar a vida sem conviver com eles intimamente. Também não se inte­ressava muito pelos jogos nem mesmo pela televisão que tinha no quarto, e passavam-se dias em que nem sequer tocava nos botões do aparelho maravilhoso. O «écran» era programado para a sua idade e para os gos­tos que alguém muito sabedor, sem a menor hesitação lhe atribuía. Cada pessoa tinha a sua televisão, programada de um modo especial, assim eram feitas as casas. O «écran» acendia-se numa espécie de altar, porque se tratava de um só deus omnipresente embora tivesse um rosto e uma voz para cada um dos seus adoradores. Como, de resto, todos os deuses de todos os tempos.
O rapazinho deambulava pois pela escola ou pela casa, como um corpo sem alma. À noite, enquanto o pai e a mãe olhavam em êxtase para os «écrans» respectivos, não se punha outra hipótese, o rapazinho metia-se no elevador e ia até ao terraço que ficava no quinquagésimo andar. Ali acabara o reino das moscas e o único f í era luminoso e parecia suspenso no tecto côncavo da abóbada celeste, porque era poeira de estrelas. E então escrevia no ar e apagava o que escrevia e escrevia de novo.
Um dia a mãe seguiu-o, Se queria adoecer, disse-lhe. Já que gostava de ver o céu, por que não ligava para o programa das nove horas? Era a mesma coisa, era mesmo muito melhor e a casa estava aquecida.
Corou, envergonhado ou até assustado, sem saber porquê mas com a consciência intranquila de estar a cometer uma interdição, e essa intran­quilidade vinha-lhe do facto de não conhecer ninguém que perdesse tempo a olhar para o céu. A mãe tinha razão. Os rapazes da escola e as raparigas, claro, falavam desse programa. E havia também os planetários e os grandes telescópios públicos. Mas aí está, nada, disso o interessava. Era multo cien­tífico e sem mistério. Ele gostava era daquele pozinho de luz, suspenso sobre a sua cabeça. Mas nessa noite a mãe acusa-o de a tomar infeliz,
e o rapazinho, que gostava muito dela, prometeu emendar-se e ficar atento às coisas da vida.
Cumpriu na medida do possível. Aprendeu a lidar com os números, tão áridos, e soube mexer com relativo à-vontade nos mil botões das muitas máquinas indispensáveis ao dia-a-dla das criaturas. Os pais, tranquilizados, respiraram fundo. O filho estava finalmente a preparar-se para a vida.
Um dia, porém, ele fez um poema. Não sabia que era um poema porque coisas dessas, inúteis ao bem-estar e ao progresso, já não se aprendiam nas escolas. Mas o rapazinho estava sentado à sua máquina electrónica para traçar o esboço de um relatório e em vez disso fez um poema em que se tratava de uma prisão invisível, da proibição de viver a de morrer, da obrigatoriedade de esperar uma vida inteira, se necessário fosse, por coisa nenhuma. Era um poemazinho ingénuo, mas ele sentiu-se tão assus­tado como quando a mãe o surpreendera a olhar para as estrelas. E escondeu-o, bem escondido, no fundo de uma gaveta,
Um dia alguém bem pensante da família achou o poema e foi mostrá-lo à mãe, que o leu, angustiada. Ela sabia daquele mal antigo e persistente cuja cura só fora descoberta havia umas dezenas de anos. A cura, quando a doença estava no princípio. Estaria no princípio a doença do filho? Não teria já nascido doente sem ela o saber?
A noite falou com o marido e no dia seguinte levaram o rapazinho à clínica dos casos urgentes. O médico fez multas perguntas, leu o texto muitas vezes para o perceber bem, quis saber o que a criança sentira ao escrevê-lo, porque o escrevera, para quê, tomou notas, forneceu-as ao computador-ajudante. Aquilo de ter ido ao último andar olhar o céu — quantas vezes? Quando fora a primeira? — era um sintoma aborrecido. O exame durou uma hora. Depois o médico sentou-se à sua mesa de tra­balho, leu a resposta, fechou os olhos, abriu-os, declarou aos pais em pânico: «O que ele tem chama-se poesia.»
«Era o que eu receava», disse o pai. «Era o que eu receava», repetiu.
«Houve alguém na família...» ia perguntar o médico.
A mãe precipitou-se: «Não, não, ninguém. Somos todos absolutamente normais.»
«Então há esperança. Se fizer o tratamento com regularidade, há espe­rança.»
Fez o tratamento e curou-se. Uma pílula azul e outra verde pela manhã, um comprimido à tarde, uma injecção semanal. Durante três meses. Quando voltou ao médico estava curado.
Dai em diante deu-se todo às máquinas e ergueu muros que impediam toda e qualquer fuga para além do quotidiano. Sentiu-se, de resto, muito bem no esquema que passou a considerar certo. E entre outras coisas converteu-se ao deus caseiro. Foi um homem como os outros homens, portanto feliz, que mais se podia desejar?


Maria Judite de Carvalho
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17 de setembro de 2006


William Carlos Williams (1883-1963)


This Is Just to Say

I have eaten
the plums
that were in
the icebox

and which
you were probably
saving
for breakfast

Forgive me
they were delicious
so sweet
and so cold

William Carlos Williams

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16 de setembro de 2006


Vladimir Holan (1905-1980)


Human Voice

Stone and star do not force their music on us,
flowers are silent, things hold something back,
because of us, animals deny
their own harmony of innocence and stealth,
the wind has always its chastity of simple gesture
and what song is only the mute birds know,
to whom you tossed an unthreshed sheaf on Christmas Eve.

To be is enough for them and that is beyond words. But we,
we are afraid not only in the dark,
even in the abundant light
we do not see our neighbour
and desperate for exorcism
cry out in terror: 'Are you there? Speak!'

Vladimir Holan

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13 de setembro de 2006


Natália Correia (1923-1993)


De amor nada mais resta que um Outubro
e quanto mais amada mais desisto
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.

E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.

Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.

Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem.

Natália Correia

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9 de setembro de 2006


Cesare Pavese (1908-1950)



VIRÁ A MORTE E TERÁ OS TEUS OLHOS

Virá a morte e terá os teus olhos
esta morte que nos acompanha
da manhã à noite, insone,
surda, como um velho remorso
ou um vício absurdo. Os teus olhos
serão uma palavra vã,
um grito emudecido, um silêncio.
Assim os vejo todas as manhãs
quando sobre ti te inclinas
ao espelho. Ó cara esperança,
nesse dia saberemos também nós,
que és a vida e és o nada.

Para todos a morte tem um olhar.
Virá a morte e terá os teus olhos.
Será como deixar um vício,
como ver no espelho
re-emergir um rosto morto,
como ouvir lábios cerrados.
Desceremos ao vórtice mudo.

Cesare Pavese (tradução de Jorge de Sena)


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4 de setembro de 2006


Raul de Carvalho (1920-1984)

Serpente morta, por instantes


Sinto que me afeiçoo
a ti.
Por motivos ignorados, ia a escrever.
Arrependi-me. Os motivos são outros, residem lá no fundo da minha consciência, e dela saltam! livres! e livres, são claros — impõem se,
circunscrevem-se, precisam-se; entristecem-me.
Eu nunca soube nunca o que era a companhia.
Começo a habituar-me. A viver a teu lado.
Não é que se desfaça a bruma; há poços cheios de inverno, calafetados. Tenho dificuldade é compreender por que ris, porque és ágil e firme,
quando o és.
Reprimo, muitas vezes, as lágrimas. Falo-te docemente. Não respondes. E o teu silêncio é cúmplice do meu, formam, sem querer, uma rosa que
brota da mesma haste. Floresce em casa que já não é alheia.
A voluptuosidade nascente do teu corpo é um vaso que eu encho com
carinho. Beijo-te, apenas. E as recordações são capitosas.
Mas o astro que reflectiu meu nome,
empalideceu, puxou por mim para o outro lado.
E eis-me deitado ao pé de ti, desperto, lembrando como é triste ter a morte na frente, ter a vida na frente...
Soluços, soluços são os que se não ouvem.
Contagiam.
E, dentro da cabeça, zumbem abelhas de desconforto e mágoa. A noite
iniciada não tem fim.

Raul de Carvalho

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1 de setembro de 2006


António Lobo Antunes (1942)


É da tua mão que eu preciso agora

É da tua mão que eu preciso agora. Há momentos, sabes, que me sinto tão cansado, todos estes dias cheios de palavras que me fogem. Então penso em ti: Joana. Penso: vou contar-te uma coisa. Há pouco tempo morreu a filha de um amigo meu, homem generoso e bom, melhor do que alguma vez fui. Um cemitério é um lugar horrível e a dor dele doía-me. Depois de tudo acabar voltei para o automóvel. Eram muitos passos nas veredas a voltarem para os automóveis. O caixãozinho branco. Aquelas árvores que tu conheces de quando a gente há dois anos. Despedi-me das pessoas um pouco ao acaso, sem sentir os dedos que apertava: têm tantos dedos as pessoas. Nem me lembro já porquê abri a mala do carro. Estavam lá dentro coisas tuas de Espanha: batas, papéis, as inutilidades confusas que estás sempre a juntar. Peguei numa das tuas batas, abracei-a. E desatei num choro de menino, de cabeça inclinada para a mala do carro na esperança de que não me vissem. Depois lá enxuguei o nariz à manga
nunca perdi o hábito de enxugar o nariz à manga
engoli-me a mim mesmo e vim-me embora. Sempre que me sento no teu carro lembro-me de ti. Também me lembro quando não me sento no carro mas sempre que me sento no carro lembro-me de ti. De ti e de Malanje onde começaste a ser, e as mangueiras tremem-me no interior do sangue.
Mas é da tua mão que eu preciso agora. Há momentos em que me farto de ser homem: tudo tão pesado, tão estranho, tão difícil. Eu vou tendo paciência e no entanto, às vezes as coi­sas magoam, há ideias que entram na gente como espinhos. Não se podem tirar com uma pinça: ficam lá. É então que a cara prin­cipia a estragar-se e a gente
dizem
envelhece. Necessito de muito pouca coisa hoje em dia: uns livros, o meu trabalho de escrever, amigos que se estreitam com o tempo, alguns deixados para trás, não sei onde. A minha avó dizia que fui a pessoa por quem chorava mais. Nunca acre­ditei. Era autoritária, mimada, sedutora: tratava-me tão bem! Jogávamos a ver qual de nós dois conquistava o outro: andáva­mos mais ou menos empatados
(sabes como detesto perder)
e nisto ela morreu. Recordo-me de sair de sua casa e vir à cervejaria comer. Ainda não tinha tempo de sentir-lhe a ausên­cia. Pedi o jornal desportivo ao empregado. Ao voltar para cima achei-a vestida sobre a cama.
Agora é novembro, tenho frio, ando às voltas com um romance de que não estou a gostar. Nunca estou a gostar do que escrevo, acho aquele em que trabalho o mais difícil, acho que as palavras me derrotam. Frases puxadas como pedras de um poço que não vejo. Banalidades que me indignam por estarem tão longe do que quero. Capítulos que me fogem, o plano da his­tória dinamitado pelos caprichos da minha mão, que não faz o que pretendo: escapa-se sempre, inventa, tenho de apanhá-la a meio de um período inverosímil. Talvez seja por isso que preciso da tua. Ou não por isso: não bebo e no entanto há alturas em que me sinto tão só que é quase o mesmo. E sem essa solidão não me é possível escrever. O meu amigo a quem morreu a filha chama-se José Francisco. Quando sorri os cantos da boca parecem levantar voo. Faz-me bem. Gostava de sorrir assim. Experimentei ao espelho e não é igual. Quer dizer, a boca curvou-se mas os olhos ficaram fixos, duros. Deixei de sorrir e enchi a cara de espuma da barba, até ser apenas nariz e olhos. Então sorri outra vez e os olhos acharam graça e mudaram. Os meus olhos sérios olhavam para os meus olhos divertidos. Pisquei o esquerdo e o espelho piscou o direito. Lavei a cara, apaguei a luz, saí. Por um segundo veio-me a sensação de caminhar em Malanje. Aquele cheiro da terra, demorado, opaco, violento. E pronto, é tarde. Em chegando ao fim da página aca­bou-se. Ponho a tampa na caneta, os cotovelos na mesa e fico a observar a parede. Nem vou reler isto, mando tal e qual. Prefiro observar a parede, deixar-me impregnar devagarinho pela essên­cia das coisas. Esta cadeira, aquele móvel, uma manchinha de cinza no chão, as minhas mãos geladas de frio a acabarem esta crónica. Se calhar amanhã telefono-te. Ou regresso ao romance na teimosia dos cães. Penso: nem que deixe a pele nele hei-de conseguir acabá-lo. Comecei-o no princípio de outubro, falta muito. Alinho os papéis, ponho tudo em ordem para a escrita. Nem que deixe a pele nele hei-de conseguir acabá-lo. Leio a última frase, continuo. Só por um bocadinho de nada, antes que continue, importas-te de tirar as batas do carro? Importas-te de me dar a mão?
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António Lobo Antunes, Segundo Livro de Crónicas
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