Nunca mais voei sob a terra porque conheci a tua mãe num domingo, em novembro, num velório de pobres, a beber martini em torno de um caixão numa vivendinha da ilha, o falecido de mãos na barriga com uma rosa nos dedos e a gente em torno, afogados em flanelas, a passar o gargalo e a conversar, olhando, pela porta aberta, os imbondeiros que nasciam da vazante e as flores que as ondas descobriam e ocultavam, pingando orvalho dos caules. Casei uma semana depois com a filha do cadáver, a qual gastava o tempo inteiro, à janela, contemplando as traineiras e os cargueiros do Índico, e a baleia transviada que dera à costa, por um erro de azimute, e se transformava numa construção de dentes e de ossos. Contemplou dia após dia as traineiras e os cargueiros sem conversar comigo, sem conversar com ninguém, sem responder a perguntas, sem se interessar por nada, esquecida de comer, de se lavar, de se pentear, de mudar de camisola, de varrer a casa, esquecida de ti que gritavas no teu berço e dos biberões que se espalhavam pelo chão, esquecida das minhas necessidades de homem, até os enfermeiros virem e a internarem num hospital de doidos na orla norte da cidade, com os loucos, de camisa de dormir amarrados a espigões como os chibos no Minho. Visitei-a por três ou quatro ocasiões, às sextas-feiras, de regresso das docas, e uma religiosa conduzia-me a uma cave onde a tua mãe olhava o mar através das fissuras das paredes, as traineiras e os cargueiros do Índico que se afastavam para Timor ou o Japão, olhava o mar numa gruta de doentes a quem aplicavam ventosas por detrás de biombos articulados. Não me perguntou por ti, não me perguntou por mim, não protestou com nada, não falou, não desviou sequer a vista quando me coloquei à sua frente, e agora que sou velho, e a morte já me rendilha a coluna e me endurece as artérias, o que me vem à ideia, se calha pensar nela, é que cada um voa como pode, rapariga, cada um voa realmente como pode, eu debaixo da terra, em Joanesburgo, a empurrar vagões de mina pelas galerias, a tua mãe no asilo dos malucos, verrumando os muros com os olhos para alcançar as traineiras, tu na nuvem de goivos da tua doença, e o palerma que mora connosco, nas traseiras do quintal, a desarrumar as couves com a biqueira e a farejar a noite com o sorriso idiota do costume.
António Lobo Antunes, A ordem natural das coisas