Trimmmmm
Hora de almoço. Mas mais que isso. Hora de calçar as chuteiras. Hora de alguém ir a correr marcar as balizas.
"Leva a minha camisola."
"A minha também!"
Sopa. Prato. Fruta.
Sair do refeitório e desatar a correr. Uns por aqui. Outros por ali. Cada um pelos seus atalhos. Todos com o mesmo destino - o pó da bola a rolar no pelado da nossa Quinta.
Temos balizas. Falta a bola. Quem tem bola? Temos adversários.
Chuteiras, pó, calções, pedrinhas, t-shirt, suor e sol.
"Quem vai à baliza?"
"Últimos!"
"Penúltimos!"
"Bora começar! Já perdemos 10 minutos!"
E rola a bola. Todos nós, todos crianças, todos na mesma correria, dezenas de pernas no mesmo movimente desenfreado por todo aquele pelado.
Há bolas por todo o lado. Umas invadem campos alheios. Outra foi para o galinheiro. Outra subiu a rede e caiu na mata.
Aparecem os fintinhas. Aparecem os primeiros esfolamentos. Aparecem os petardos de força. E lá vêm as mãos agarrar de dor locais onde a bola nunca deveria encostar.
Surgem as primeiras discórdias.
"Saiu!"
"Não saiu!"
"É nossa!"
"Não, é nossa!"
"A bola é minha eu é que mando."
O vento bate na cara. A bola está dominada. Em velocidade ele passa por um, tabela com o amigo, passa pelo terceiro, vai rematar, vai ser golo... e o lance é varrido.
Bola lá para o fundo. Pedras no joelho. Mãos esfoladas.
"Falta!!! É falta."
"Foi limpo! Foi na bola. Não sejas maricas, joga à bola!"
Começa a confusão. Todos correm uns para os outros.
Mas rapidamente lá aparece o do costume. Agarra a bola, chuta para o adversário. Sabe que a bola era da sua equipa mas não quer perder tempo. Ele só quer é jogar.
"Não há nada. Segue o jogo. Vamos jogar."
Está confiante que não precisa daquele falta para ganhar. A seguir corre mais para compensar a sua equipa.
É um jogo entre amigos e colegas. É um jogo entre miúdos que só se querem divertir antes de voltarem às lições sobre os Rios Europeus e as Datas dos Descobrimentos.
O importante ali é jogar, correr, passar, rematar e marcar.
A simplicidade juvenil de um Futebol onde tudo o que importa é ver a bola rolar.
Mas a infância esmorece na idade adulta. Duas equipas já não podem decidir sobre uma falta, de quem é o lançamento e nem se a bola entrou. E imaginem quando se mete o fora-de-jogo ao barulho...
É necessária ajuda. Quem decida por nós. Uma pessoa. Um árbitro. Acertada ou errada, é necessária uma decisão que permita que o jogo continue.
O Futebol é um jogo onde duas equipas disputam a bola e a tentam colocar na baliza adversária.
Duas equipas. Duas balizas. Uma bola. Golo.
O árbitro vem ajudar o jogo a fluir. O árbitro vem tomar as decisões que adversários não conseguem tomar. E a equipa de arbitragem vem ajudar o árbitro a decidir bem.
A nossa infância está tão distante que já nos esquecemos de como aqui viemos parar.
Atacamos quem nos vem ajudar. Sem razão. Com razão. Sem piedade. À bruta. Sem escrúpulos. E só porque sim.
Para quê dificultar ainda mais o que foi criado para nos permitir jogar?
Naquele pelado o jogo parava por não haver decisão. No relvado agora pára para se contestar cada decisão.
Em tempos idos, o professor de ginástica era uma benção. Era o professor e o que ele dizia era ordem. Ponto. E o jogo seguia.
Até sempre Stôr Dario. Bem haja Stôr João Pedro.
Mas agora nos estádios exigimos o mais bem preparado de todos. Exigimos que não erre. Nunca. Pelo menos não contra nós. Exigimos que siga a nossa decisão.
Na quinta o miúdo dava a bola ao adversário só para poder jogar mais um pouco.
Hoje o dirigente pede processos, exige jarras, aponta corrupção, contrata pessoas para questionar o árbitro e pede faltas de comparência.
O miudo defendia o jogo. O crescido ataca-o.
Esquecemos as raízes. As origens do jogo. O valor desta paixão. A necessidade que esta acarreta.
Com ou sem razão, criticamos cada decisão.
Nunca serei contra as contestações, as análises dos lances nem à exigência de desempenhos arbitrais cada vez melhores.
Só não posso aceitar que tão facilmente percamos noção do motivo de existir um árbitro. Não consigo assumir por regra que a equipa de arbitragem existe para prejudicar. Não entendo que percamos o discernimento de perceber que uma decisão errada não passa somente disso e que o erro apenas nasce da necessidade de o jogo continuar.
Vivemos num Futebol onde o árbitro é o vilão. Não percebemos o seu papel. Não entendemos as suas dificuldades. Não reconhecemos o seu contributo. É mais uma equipa que joga contra nós. É um individuo ali colocado para nos prejudicar. Há sempre uma intenção malévola no seu apito.
O importante já não é a bola rolar.
É o Futebol negócio cada vez mais indiferente à paixão do jogo.
É um jogo já tão distante daquele que disputámos naquele campo.
É a saudade dos tempos jogados lá naquela velha Quinta.
São as memórias que não me falham.