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sábado, 4 de novembro de 2017

Aqueles Jogos na Nossa Quintinha

Trimmmmm

Hora de almoço. Mas mais que isso. Hora de calçar as chuteiras. Hora de alguém ir a correr marcar as balizas.

"Leva a minha camisola."
"A minha também!"

Sopa. Prato. Fruta.

Sair do refeitório e desatar a correr. Uns por aqui. Outros por ali. Cada um pelos seus atalhos. Todos com o mesmo destino - o pó da bola a rolar no pelado da nossa Quinta.

Temos balizas. Falta a bola. Quem tem bola? Temos adversários.

Chuteiras, pó, calções, pedrinhas, t-shirt, suor e sol.

"Quem vai à baliza?"
"Últimos!"
"Penúltimos!"
"Bora começar! Já perdemos 10 minutos!"

E rola a bola. Todos nós, todos crianças, todos na mesma correria, dezenas de pernas no mesmo movimente desenfreado por todo aquele pelado.

Há bolas por todo o lado. Umas invadem campos alheios. Outra foi para o galinheiro. Outra subiu a rede e caiu na mata.

Aparecem os fintinhas. Aparecem os primeiros esfolamentos. Aparecem os petardos de força. E lá vêm as mãos agarrar de dor locais onde a bola nunca deveria encostar.

Surgem as primeiras discórdias.

"Saiu!"
"Não saiu!"
"É nossa!"
"Não, é nossa!"
"A bola é minha eu é que mando."

O vento bate na cara. A bola está dominada. Em velocidade ele passa por um, tabela com o amigo, passa pelo terceiro, vai rematar, vai ser golo... e o lance é varrido.

Bola lá para o fundo. Pedras no joelho. Mãos esfoladas.

"Falta!!! É falta."
"Foi limpo! Foi na bola. Não sejas maricas, joga à bola!"

Começa a confusão. Todos correm uns para os outros.

Mas rapidamente lá aparece o do costume. Agarra a bola, chuta para o adversário. Sabe que a bola era da sua equipa mas não quer perder tempo. Ele só quer é jogar.

"Não há nada. Segue o jogo. Vamos jogar."

Está confiante que não precisa daquele falta para ganhar. A seguir corre mais para compensar a sua equipa.

É um jogo entre amigos e colegas. É um jogo entre miúdos que só se querem divertir antes de voltarem às lições sobre os Rios Europeus e as Datas dos Descobrimentos.

O importante ali é jogar, correr, passar, rematar e marcar.

A simplicidade juvenil de um Futebol onde tudo o que importa é ver a bola rolar.

Mas a infância esmorece na idade adulta. Duas equipas já não podem decidir sobre uma falta, de quem é o lançamento e nem se a bola entrou. E imaginem quando se mete o fora-de-jogo ao barulho...

É necessária ajuda. Quem decida por nós. Uma pessoa. Um árbitro. Acertada ou errada, é necessária uma decisão que permita que o jogo continue.

O Futebol é um jogo onde duas equipas disputam a bola e a tentam colocar na baliza adversária.

Duas equipas. Duas balizas. Uma bola. Golo.

O árbitro vem ajudar o jogo a fluir. O árbitro vem tomar as decisões que adversários não conseguem tomar. E a equipa de arbitragem vem ajudar o árbitro a decidir bem.

A nossa infância está tão distante que já nos esquecemos de como aqui viemos parar.

Atacamos quem nos vem ajudar. Sem razão. Com razão. Sem piedade. À bruta. Sem escrúpulos. E só porque sim. 

Para quê dificultar ainda mais o que foi criado para nos permitir jogar?

Naquele pelado o jogo parava por não haver decisão. No relvado agora pára para se contestar cada decisão.

Em tempos idos, o professor de ginástica era uma benção.  Era o professor e o que ele dizia era ordem. Ponto. E o jogo seguia.
Até sempre Stôr Dario. Bem haja Stôr João Pedro.

Mas agora nos estádios exigimos o mais bem preparado de todos. Exigimos que não erre. Nunca. Pelo menos não contra nós. Exigimos que siga a nossa decisão.

Na quinta o miúdo dava a bola ao adversário só para poder jogar mais um pouco.
Hoje o dirigente pede processos, exige jarras, aponta corrupção, contrata pessoas para questionar o árbitro e pede faltas de comparência.

O miudo defendia o jogo. O crescido ataca-o.

Esquecemos as raízes. As origens do jogo. O valor desta paixão. A necessidade que esta acarreta. 
Com ou sem razão, criticamos cada decisão.

Nunca serei contra as contestações, as análises dos lances nem à exigência de desempenhos arbitrais cada vez melhores.
Só não posso aceitar que tão facilmente percamos noção do motivo de existir um árbitro. Não consigo assumir por regra que a equipa de arbitragem existe para prejudicar. Não entendo que percamos o discernimento de perceber que uma decisão errada não passa somente disso e que o erro apenas nasce da necessidade de o jogo continuar. 

Vivemos num Futebol onde o árbitro é o vilão. Não percebemos o seu papel. Não entendemos as suas dificuldades. Não reconhecemos o seu contributo. É mais uma equipa que joga contra nós. É um individuo ali colocado para nos prejudicar. Há sempre uma intenção malévola no seu apito.

O importante já não é a bola rolar. 

É o Futebol negócio cada vez mais indiferente à paixão do jogo.

É um jogo já tão distante daquele que disputámos naquele campo.

É a saudade dos tempos jogados lá naquela velha Quinta.

São as memórias que não me falham.