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domingo, 12 de abril de 2015

CEREJEIRA EM FLOR




Acordar, ser na manhã de Abril
a brancura desta cerejeira;
arder das folhas à raiz,
dar versos ou florir desta maneira.

Abrir os braços, acolher nos ramos
o vento, a luz, ou o quer que seja;
sentir o tempo, fibra a fibra,
a tecer o coração de uma cereja.

Eugénio de Andrade

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O PEQUENO PERSA




É um pequeno persa
azul o gato deste poema.
Como qualquer outro, o meu
amor por esta alminha é materno:
uma carícia minha lambe-lhe o pêlo,
outra põe-lhe o sol entre as patas
ou uma flor à janela.
Com garras e dentes e obstinação
transforma em festa a minha vida.
Quer-se dizer, o que me resta dela.

Eugênio de Andrade


segunda-feira, 21 de julho de 2014

OS AMIGOS



Os amigos amei
despido de ternura
fatigada;
uns iam, outros vinham,
a nenhum perguntava
porque partia,
porque ficava;
era pouco o que tinha,
pouco o que dava,
mas também só queria
partilhar
a sede de alegria —
por mais amarga.


Eugénio de Andrade.
in "Coração do Dia"


sexta-feira, 16 de maio de 2014

EM LOUVOR AO FOGO



Um dia chega
de uma extrema doçura:
tudo arde.

Arde a luz
nos vidros da ternura.

As aves,
no branco
labirinto da cal.

As palavras ardem
e a púrpura das naves.

O vento,

onde tenho casa
à beira do outono.

O limoeiro, as colinas.

Tudo arde

Na extrema e lenta
doçura da tarde.


Eugenio de Andrade
in Obscuro Domínio

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

FRUTOS



Pêssegos, peras, laranjas,
morangos, cerejas, figos,
maçãs, melão, melancia,
ó música de meus sentidos,
pura delícia da língua;
deixai-me agora falar
do fruto que me fascina,
pelo sabor, pela cor,
pelo aroma das sílabas:
tangerina, tangerina.

Eugénio de Andrade,
in Poemas

domingo, 19 de janeiro de 2014

VEM DE UM CÉU



Vêm de um céu talvez de ficção.
Vejo-as chegar, vejo-as partir.
São aves de passagem, não lhes sei o nome.
Têm como eu pouca realidade.
Seguem a direcção do vento, rumo a sul,
chamadas pela cal ardendo sobre o mar.
É difícil a nostalgia;
naturalmente mais difícil quando o tempo fere
o nosso olhar e o priva do que fora mais seu:
a nudez musical da luz primeira.
Mas de que falo eu, se não forem aves

Eugénio de Andrade,
in O Sal da Língua

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

AS PALMEIRAS



Também o deserto vem
do mar. Não sei em que navio,
mas foi desses lugares
que chegaram ao meu jardim
as palmeiras.
Com o sol das areias
em cada folha,
na coroa o sopro
ainda húmido das estrelas.


EUGéNIO DE ANDRADE
In Ofício de Paciência




segunda-feira, 21 de outubro de 2013

OS ANIMAIS



Vejo ao longe os meus dóceis animais. 
São altos e as suas crinas ardem. 
Correm à procura duma fonte, 
a púrpura farejam entre juncos quebrados. 

A própria sombra bebem devagar. 
De vez em quando erguem a cabeça. 
Olham de perfil, quase felizes 
de ser tão leve o ar. 

Encostam o focinho perto dos teus flancos, 
onde a erva do corpo é mais confusa, 
e como quem se aquece ao sol 
respiram lentamente, apaziguados. 

Eugénio de Andrade




HÁ DIAS



Há dias em que julgamos 
que todo o lixo do mundo 
nos cai em cima 
depois ao chegarmos à varanda avistamos 
as crianças correndo no molhe 
enquanto cantam 
não lhes sei o nome 
uma ou outra parece-se comigo 
quero eu dizer : 
com o que fui 
quando cheguei a ser luminosa 
presença da graça 
ou da alegria 
um sorriso abre-se então 
num verão antigo 
e dura 
dura ainda. 


Eugénio de Andrade


domingo, 20 de outubro de 2013

COMO SE A PEDRA



Escuto como se a pedra
cantasse. Como
se cantasse nas mãos do homem.
Um rumor de sangue ou ave
sobe no ar, canta com a pedra.
A pedra nas suas mãos
obscuras. Aquecida
com o seu calor de homem.
O seu ardor
de homem. Escuto
como se fora a minúscula
luz mortal que das entranhas
lhes subisse à garganta.
A sua mortalidade
de homem. Canta com a pedra.


Eugénio de Andrade








sábado, 19 de outubro de 2013

ONDE ME LEVAS, RIO QUE CANTEI



Onde me levas, rio que cantei,
esperança destes olhos que molhei
de pura solidão e desencanto?
Onde me leva?, que me custa tanto.
Não quero que conduzas ao silêncio
duma noite maior e mais completa.
com anjos tristes a medir os gestos
da hora mais contrária e mais secreta.
Deixa-me na terra de sabor amargo
como o coração dos frutos bravos.
pátria minha de fundos desenganos,
mas com sonhos, com prantos, com espasmos.
Canção, vai para além de quanto escrevo
e rasga esta sombra que me cerca.
Há outra fase na vida transbordante:
que seja nessa face que me perca. 


Eugénio de Andrade






sábado, 21 de setembro de 2013

EUGÉNIO DE ANDRADE


"Gosto das palavras que sabem a terra, a água,
aos frutos de fogo do verão, aos barcos no vento;
gosto das palavras lisas como seixos, rugosas 
como pão de centeio. Palavras que cheiram a feno 
e a poeira, a barro e a limão, a resina e a sol."

Eugénio de Andrade, 
in "Rosto Precário"




quarta-feira, 10 de julho de 2013

AGORA AS AVES VOLTAM



Agora as aves voltam,
são nos ramos altos a matéria 
mais próxima dos anjos 
– ousarei eu tocar-lhes, 
fazer delas o poema? 

Eugénio de Andrade,
In O Peso da Sombra

sexta-feira, 7 de junho de 2013

VINDAS DO MAR



São coisas vindas do mar.
Ou doutra estrela.
Seixos, ouriços, astros
pequenos e vagabundos, sem bússola,
sem norte, os passos incertos. Pouco
se demoram. Como a felicidade.
Seguem outra canção, outra bandeira.
Tudo isso os olhos traziam.
Do mar. Ou doutra idade.
 
 
EUGéNIO DE ANDRADE
In Os Sulcos da Sede

domingo, 2 de junho de 2013

APENAS UM RUMOR




E no teu rosto aberto sobre o mar
cada palavra era apenas o rumor
de um bando de gaivotas a passar.


EUGéNIO DE ANDRADE
In Os Amantes sem Dinheiro

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

MÚSICA NO AR



"É a música.
De algum lado virá, é impossível que
não venha do avesso da morte;
com esse cheiro a resina deve ter
atravessado os lúcidos bosques do
verão, acolhido, nas suas pausas,
o ardor das colinas nevadas.
É a música.
Procura-me. Terna, violenta,
leva-me nas suas águas.
Fundas. Frescas."


Eugénio de Andrade,
in As Colinas Nevadas

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

O SILÊNCIO



Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,

e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,

quando azuis irrompem
os teus olhos

e procuram
nos meus navegação segura,

é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,

pelo silêncio fascinadas.


Eugénio de Andrade,
in Obscuro Domínio

sábado, 30 de junho de 2012

EPITAFIO



Barcos ou não
ardem na tarde.

No ardor do verão
todo o rumor é ave.

Voa coração.
Ou então arde.

Eugénio de Andrade

sexta-feira, 4 de maio de 2012

EUGÉNIO DE ANDRADE


...
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos.
Era no tempo em que o teu corpo era um aquário.
Era no tempo em que os meus olhos
eram os tais peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade:
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus


Eugénio de Andrade


terça-feira, 1 de maio de 2012

FOLHAS BREVES



Somos folhas breves onde dormem
aves de sombra e solidão.
Somos só folhas e o seu rumor.
Inseguros, incapazes de ser flor,
até a brisa nos perturba e faz tremer.
Por isso a cada gesto que fazemos
cada ave se transforma noutro ser.

Eugénio de Andrade