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14 de maio de 2015

A Av. Gago Coutinho entre ficção e realidade

 

Desconheço desde quando recebeu a avenida a designação de Almirante Gago Coutinho. Ao longo da minha infância, a família referia-se-lhe como Av. do Aeroporto. Esses tempos já distantes, afastam-se da imaginação presente no conto “A Inaudita Guerra da Av. Gago Coutinho”, de Mário de Carvalho, mas os episódios  dos meus tempos de criança não deixaram de surpreender quando, mais tarde, me foram lembrados.

No conto de Mário de Carvalho, a musa Clio, responsável pela tessitura da História, adormece, trocando os fios da tapeçaria , o que gera total confusão de épocas e de acontecimentos. A troca provocada pelo sono, confunde situações separadas por cerca de 800 anos e, como consequência, uma multidão de invasores berberes, azenegues e árabes do século XII misturam-se, na Gago Coutinho, com automobilistas dos anos 80 do século XX, gerando-se um caos tal que, após pedras e flechas lançadas, é necessária a intervenção policial. Para quem não conhece o divertido texto, termina o mesmo com o acordar da musa dorminhoca que, não conseguindo reverter na totalidade os acontecimentos, borrifa os condutores e policiais com água do rio do esquecimento, o Letes, a fim de atenuar o transtorno. Fora do conflito armado, bem como dos “borrifos amnésicos” da tal água mitológica, afirmaria,  com um sorriso, que a ficção é, muitas vezes, mais divertida do que a realidade.


 
 
Nos idos 50 do passado século, a Av. do Aeroporto não vivia a guerra entre mouros e cristãos, mas um tipo de guerrilha caseira, a transtornar quotidianos dos moradores das espaçosas vivendas, muitas delas hoje destinadas a serviços e organizações. Os meus avós viviam do lado onde hoje existe o Parque Gomes Ferreira, confinando a parte de trás das casas com um bairro degradado, de gente com vidas de miséria. Na ausência de alarmes, muitas das moradias, nos altos muros a confinar com as barracas, eram protegidas com os hostis cacos de vidro, fixados no topo, a proteger de invasões.

O meu avô materno trabalhava, grande parte do ano, na Póvoa de Varzim, tendo ainda de viajar com regularidade. Em casa ficavam, por motivos de calendário escolar e de cuidados domésticos, a minha avó, uma tia de idade avançada, a minha mãe e as suas irmãs – um espaço quase sempre habitado por um agregado exclusivamente feminino.

No terreno a confinar com a porta de serviço, existia um pomar apelativo, com frutos doces e sumarentos. Os sobreviventes do bairro degradado, percebendo que em casa só se encontravam mulheres, protegiam as pernas com câmaras de ar vazias e à prova de cacos de vidro e, de sacos de serapilheira em riste, subiam às árvores com todo o vagar para escolherem o que lhes agradava, numa calma indescritível, como se estivessem às compras na praça. A minha avó, indignada, gritava-lhes que se fossem embora, ameaçando telefonar para a esquadra mais próxima. Muitas foram as ocasiões em que, em tom de comando , lhe disseram que fosse coser meias, que era o que qualquer mulher que se preze devia fazer…

Imagem 1: a musa Clio, pintura de Pierre Mignard, século XVII

Imagem 2: Av. Almirante Gago Coutinho em Panoramio, foto de Reinhard 1000 .

10 de setembro de 2014

'Os Maias' de João Botelho : notas soltas (e muito pessoais) entre ficção e realidade



Os Maias , romance a merecer, desde sempre, longa metragem, acaba por ver o desígnio cumprido. O enredo, a abranger diversas gerações, desfila ante o nosso olhar, parecendo preencher de modo satisfatório o imaginário que construímos, aquando da(s) leitura(s). O patriarca da família, Afonso da Maia, é-nos apresentado no vigor da idade, num registo, até de som, a conduzir-nos a uma distante época do cinema a preto e branco (lembrei-me das longas de Leitão de Barros), marcando, com sucesso, a técnica do flashback. A narrativa em “tempo real” dá lugar à cor, discreta, acentuando o avanço no tempo. Cenários a reproduzirem uma Lisboa de outrora, com a Casa Havaneza e a Brasileira de oitocentos, afiguram-se modo inteligente de recriar, com sucesso, os finais do século dezanove. Os interiores, esmerados, coincidem com as decorações que visualizamos, ao longo da leitura do romance. Tratando-se de uma apreciação impressionista (a escriba não tem pretensões de crítica, assumindo-se, em primeira instância, enquanto leitora), salientam-se as personagens de Afonso da Maia e de João da Ega, muito próximos do imaginário gerado pela leitura pessoal e repetida, quer na qualidade de estudante, quer na de docente que, por diversas vezes, regressou às deliciosas linhas queirosianas. As personagens femininas, de uma beleza dos nossos tempos, parecem distanciar-se do padrão da época: mulheres magras, esbeltas, ao contrário das personagens femininas descritas, na obra, como tendo formas algo arredondadas. Será ligeiro apreciar um filme com a duração de três horas em meia dúzia de linhas. A verão comercial, prestes a ser estreada, terá duração mais curta. No entanto, exige mestria a adaptação de um texto extenso de descrições detalhadas, o que nos parece ter sido alcançado. Marcou o simbolismo da queda de um varão de metal e da pesada cortina que sustenta, num dos momentos mais altos do enredo, quando o elo de parentesco a unir Carlos da Maia a Maria Eduarda é revelado ao patriarca da família. A adaptação respeitando, nos diálogos, a fina ironia queirosiana, prende-nos ao ecrã . Olhando a novidade na perspetiva da docente (sem descurar a da leitora), encara-se a nova ferramenta, a longa metragem, como sendo útil na motivação (e descodificação) à leitura dos jovens, cuja faixa etária e solicitações do presente tornam tentadora a leitura de resumos ‘estafados’ que pretendem sistematizar o romance, levando, por diversas ocasiões, à apresentação de trabalhos saturados de observações repetidas, plenas de lugares-comuns. Admiradora de A Cidade e as Serras, pensa-se : “para quando a adaptação à sétima arte?”.
Saída da ficção para a realidade (do Cinema S. Jorge para o estacionamento), olho os gatos que agora povoam um Parque Mayer quase desertificado, pensando como são distantes, em estatuto, do bem nutrido Reverendo Bonifácio, a mascote de Afonso da Maia.

11 de julho de 2014

Nuno San Payo

"É um mau hábito emprestar livros. Não são menos nossos, menos pessoais, nem devem merecer-nos menos consideração do que uns sapatos ou um fato, antes pelo contrário e no entanto ninguém deixa andar as suas roupas ou os seus objectos de uso de mão em mão"
Extracto de um conto de Maria da Graça Freire, desenho de Nuno San Payo,Revista Panorama, 1957

18 de junho de 2014

Evocando José Saramago


Saramago deixou-nos num dia 18 de junho e assim passaram quatro anos. Dos títulos lidos, foi diverso o acolhimento de leitora, embora – rejeitando apreciações à superfície – o talento sempre foi inegável (a avidez de leitura ou o seu contrário não devem conduzir a apreciações levianas). Ficará, a título ilustrativo, a genialidade de O Ano da Morte de Ricardo Reis a exigir a leitura prévia de textos de um outro grande nome da nossa Literatura (e sai o sorriso amargo, ao verificar os bestsellers, os destaques nas livrarias). Ainda a memória daquele dia em que, em frente ao televisor, soubemos da atribuição do Nobel. "Lembra-se de ali se ter sentado em outros tempos, tão distantes que pode duvidar se os viveu ele mesmo, Ou alguém por mim, talvez com igual rosto e nome, mas outro." – José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis

foto: Eduardo Gageiro in Lisboa no Cais da Memória

19 de outubro de 2013

Manuel António Pina : «Chamo-lhes crónicas porque não sei o nome disto»


Desde o início do verão a saborear Crónica, Saudade da Literatura, textos de imprensa do presente século, da autoria de Manuel António Pina, editados há 5 meses pela Assírio e Alvim. Saborear será, decerto, o verbo acertado para os pedaços de prosa legados pelo poeta-cronista , consciente opção no intuito de o sentir mais presente em cada dia que, com maior ou menor vagar, se sucede. Palavras que surpreendem pela atualidade lúcida: um sentido de humor único, mesmo na abordagem a temas muito sérios (humor, sobretudo em tempos mais árduos, equivale a inteligência). Atrai a leveza da escrita. Do conjunto de textos, destaca-se a ênfase dada aos tempos de crise, a denúncia da (in)cultura de muitas figuras com responsabilidades nacionais, as considerações sobre o cinema com maiúscula (arte e não mero fogo de artifício), as ideias sobre a beleza (ou sua ausência), sobre o sentimento de felicidade, passando ainda pela música, pela BD, por poetas próximos ou mais distantes, o apontar do dedo a preconceitos, a denúncia a ideias feitas, a formatar uma realidade chata. Pina situa-se nos antípodas do chavão, do lugar-comum. Fica a gratidão por quem nos torna mais interessante a existência.
A preparar uma recensão sobre este conjunto de crónicas, ficam algumas linhas soltas quando, por coincidência, se completa um ano da sua morte.

«Tintin e os outros […] chegaram à minha vida na infância como o Cavaleiro Andante e, como na canção de Maria Bethânia, instalaram-se para sempre feitos posseiros dentro do meu coração. Com eles fui à Lua e viajei  por todos os mares do mundo, subi aos Himalaias e desci aos negros porões da alma humana […] defendi os fracos e enfrentei opressores e ricaços sem escrúpulos […] convivi com guerrilheiros, com tiranos, com comerciantes, com sábios, com iluminados… Se algo de essencial aprendi […] das minhas aventuras com Tintin foi o desprezo da infâmia e a “linha clara” da coragem e da justiça.» - Manuel António Pina, JN, 24/5/2007

9 de agosto de 2013

Urbano Tavares Rodrigues (1923-2013)


Recordo-o dos corredores da Faculdade de Letras nos idos 70. Um dia, comprou-nos um bilhete para assistir à peça do então recente grupo de teatro da FLUL e ficámos orgulhosos com a atenção demonstrada. Nunca foi meu professor, mas aparentava uma afabilidade no sorriso com que nos brindava, sempre que nos cruzávamos nos corredores. Numa bela tarde de sol,  decidi faltar a uma aula, coisa penosa. Sentei-me cá fora, nos degraus, a ler um livro que então me fazia estabelecer como prioridade aquela mesma leitura. Vi que, ao transpor a porta do grande edifício,  me observava com o mesmo sorriso de sempre, surpreendendo-me por ali, a devorar páginas. Pensei que, mesmo não sendo sua aluna, me tinha apanhado em falta. No entanto, o ar suave matou de imediato o remorso de ‘gazeteira’.
"– E que sentido tem a nossa vida?, que responsabilidade não será amanhã a nossa se ficarmos quietinhos a assistir ao descalabro, nesta grande prisão de gente bem comportada, que é, ao mesmo tempo, o palco de uma peça de Ionesco, onde se tomam a sério as maiores imbecilidades e o bem se confunde a todo o momento com a injustiça, com a hipocrisia?!" – Urbano Tavares Rodrigues, Terra Ocupada

22 de março de 2013

Óscar Lopes ou quando o silêncio grita



Morreu Óscar Lopes. Guarda-se, dos tempos de juventude, a obra de autoria conjunta com António José Saraiva,  História da Literatura Portuguesa, sempre rigorosa e um título de referência para professores e alunos de Língua e Literatura. Seria exaustiva a listagem do grande legado que ficou, correndo-se o risco de diversos lapsos. Ficará  a menção ao contributo dado às publicações Seara Nova, Vértice e Mundo Literário. Sem tempo para ler o jornal, acabo de me deter, sem entusiasmo,  no noticiário televisivo… Nem uma palavra sobre o seu desaparecimento, quase após uma hora de emissão pouco profícua (desiste-se da espera...). Ao invés, desfilam, nos destaques, a referência ao comentador da RTP prestes a entrar em funções (e petições pró e contra...), aos candidatos às eleições num clube de futebol, a um cantor que comemora 50 anos de carreira (e cujo nome também terá a ver com a dita), às discussões acesas em torno de uma moção de censura ao governo, a par de dois nomes sonantes de Holywood, hoje na invicta… Estranhos tempos, os que vivemos. Há dias, comentava-se o facto de uma nota de imprensa divulgada a órgãos de comunicação que, por vezes, batem à porta pedindo opiniões técnicas,  ter ficado na gaveta (houve quem telefonasse no dia do evento, a demonstrar confusão de datas, embora a mensagem tivesse sido clara e enviada com a devida antecedência)… Nela se apresentava um evento cultural com interesse para… professores. Um dos participantes, de inquestionável currículo, ao ouvir o desabafo, afirmou «se os professores, ao invés de discutirem questões técnicas e científicas, estivessem a experimentar, em abundância, todos os vinhos, à hora do almoço, aí, sim,  teriam visibilidade». Fica-se em silêncio, ouvindo silêncios que gritam mais do que as manchetes.

P.S: pensamentos que deveriam ficar só com a própria : será que a escolha de notícias se prende com quem tem a responsabilidade de as tornar destaque,  ou com o que se interpreta como sendo o gosto dos destinatários?

Imagem: blogue «A inocência descompensada»

23 de fevereiro de 2013

«Se por acaso me olhas, tenho vergonha da vida»*

Não muito dada a doces (nem aos que atraem a maioria), existe um, irresistível, as orangettes, cascas de laranja cristalizada, envoltas em chocolate amargo. Trabalho deste sábado terminado descobre-se, por acaso, um local onde as vendem, de fabrico artesanal. Pequeno capricho de fim de semana : trazer, para casa, um pacotinho, com o confessado «péché mignon»... Tendo acabado de espreitar o The Guardian, ressalta a imagem captada num país africano no qual, através de um programa internacional de combate à fome, se procede, com regularidade, à distribuição de porquinhos da índia para sobrevivência das populações. Preenchem, de modo súbito, o pensamento,  os versos finais de um despretensioso poema de Matilde Rosa Araújo por aqui deixado, em tempos: «diz que perdoas meu fato/junto de teu abandono/moço de fato macaco/que varres folhas de Outono». Nenhuma imagem para o apontamento presente (a das orangettes, por surgir como ostensivo despropósito, a do jornal britânico, por motivos pessoais que não vêm ao caso).

*versos do poema de Matilde Rosa Araújo citado no texto

17 de novembro de 2012

Saramago revisitado

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Nada melhor para comemorar o dia em que, há 90 anos, nasceu o escritor, do que assistir à representação de Memorial do Convento, no Olga Cadaval. A peça foi representada (se a memória não falha) ao longo de dois anos, no convento de Mafra, tendo ficado a simples intenção de a visitar. Numa adaptação e encenação irrepreensíveis, a tónica para a  vontade humana, a possibilitar que o homem se supere (com o humor inteligente sobre a forma como recolher, dentro de um frasco com âmbar, as vontades individuais para poder, através de coletivas determinações, pôr em prática a ousadia de voar). Saramago mostra-nos, com a mestria habitual (e um humor peculiar) a natureza humana, imune ao correr do calendário. Por isso existem criadores intemporais, arrancando sorrisos afirmações como «Gil Vicente foi único, pois continua atual»… Quem consegue «ler por dentro» com a clarividência de uma Blimunda Sete Luas, encontrar-se-á apto a trazer para a literatura tudo o que  desperta e convida à reflexão. É grato observar uma assistência que, em grande parte, estuda os textos do nosso Nobel da Literatura.

 grupo de teatro Éter

24 de outubro de 2012

A LÍNGUA DAS VARINAS



"Os pudibundos dizem que a linguagem das varinas da Madragoa, faz corar qualquer um, mas, felizmente, há quem encontre naquele vocabulário as delícias dos dicionaristas. Varinas (que quase não há) e Madragoa (que vai subsistindo) têm apenas um ocasional ponto de encontro geográfico naquele bairro lisboeta. As varinas (ou as suas bisavós ovarinas, mais ou menos recentes) vieram nos bandos dos pescadores de Ovar que procuravam melhores condições de vida e foram criar a Caparica, as «palafitas» dos saveiros do Tejo e se alongaram mesmo até ao Algarve num percurso ainda hoje sinalizável. A Madragoa, hoje um bairro com características dos século XVIII e XIX, é de origem árabe. Madragoa, era a mulher ordinária, desarranjada ou excentricamente vestida. Ainda não há muito tempo, escrevia Aquilino Ribeiro na Estrada de Santiago: «Apanhasses-te tu em Britiande e que vá arrancar-se com quanta bófia tem (...) assim mesmo a grandessíssima madragoa"
Roby Amorim  "Elucidário de Conhecimentos quase Inúteis", Edições Salamandra, 1985.


Fotografia: Joshua Benoliel 1912 

19 de outubro de 2012

Manuel António Pina: A poesia vai acabar...

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Deixou-nos o poeta, o cronista, a voz inequívoca num universo tantas vezes marcado pelo marasmo . Fazem falta vozes como a do poeta, a lembrar que não teremos de ser assim … indiferenciados. Há notícias que nos apanham de surpresa, nem sempre pelos melhores motivos. Esperava que Manuel António Pina ainda tivesse tanto a dar-nos, sobretudo (egoísmo pessoal) em tempos de desencanto.

 A poesia vai acabar,
 os poetas vão ser colocados em lugares mais úteis.
 Por exemplo, observadores de pássaros
 (enquanto os pássaros não
 acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao
 entrar numa repartição pública.
 Um senhor míope atendia devagar
 ao balcão; eu perguntei: «Que fez algum
 poeta por este senhor?» E a pergunta
 afligiu-me tanto por dentro e por fora
 da cabeça que tive que voltar a ler
 toda a poesia desde o princípio do mundo.
 Uma pergunta numa cabeça.
 — Como uma coroa de espinhos:
 estão todos a ver onde o autor quer chegar? 

 Manuel António Pina

16 de outubro de 2012

A cidade, o rio e uma grande mulher





"Saído de Cacilhas ainda com luz de dia o barco vem singrando, lentamente, para a outra margem do rio. Gritam gaivotas no céu nublado, passam majestosas as fragatas de velas brancas, de velas vermelhas e as pequenas embarcações empenachadas de fumo deslizam rápidas, fugidias, até se perderem na bruma leve dos longes crepusculares. Cerra-se a noite quando o navio se aproxima da lombada alvacenta da cidade. As águas tingem-se de tons metálicos. As luzes acendem-se às fileiras, ao longo dos cais ou no «corte alto das colinas, como uma guarnição de arraial. Esmeralda, encolhida no banco da camioneta, olha para o clarão das luzes da cidade, olha para as estrelinhas amareladas que cintilam aqui e além, e diz consigo: "Será festa..." De quando em quando um movimento do barco ou o vulto negro de um navio barram o seu campo visual, mal aberto entre os carros que se aglomeram no ferry-boat. Então só lobriga a mancha do casario, a esfumar-se, nas alturas, entre o clarão do crepúsculo. Um balanço largo, monótono, de embalo, agita o navio. Ela tem medo. Sente a insegurança do piso, sente o perigo, e olha em redor, instintivamente, à procura de apoio. Vê caras tranquilas, uns que dormitam, outros que admiram o panorama."

Leio de rajada, esquecendo tudo o resto. Escrito nos anos 40, o livro continua a captar com os seus retratos de mulheres portuguesas, vivendo entre as contingências que a sociedade da época determinava e o retrato duma Lisboa sofrida e amada. Uma grande escritora, quietamente esquecida nos nossos dias. Um dia hei-de mostrá-la às minhas sobrinhas netas e assim terei o prazer de a transmitir ao futuro. Porque dela, não apontam leituras para qualquer ciclo do ensino português. Sabeis quem é esta estupenda escritora?

Maria Archer, "Ela é apenas mulher".

E quem a terá desenhado?

12 de setembro de 2012

Mãe, não aturo mais isto!

Era uma vez um rapaz chamado João que vivia em Chora-Que-Logo-Bebes, estranha aldeia aninhada perto duma espécie de Parque de Reserva de Entes Fantásticos ( a Floresta-De-Todos-Os-Espantos ) que, ali a quinhentos metros, ninguém contudo se atrevia a devassar, não só por se encontrar protegida por um muro de altura descomunal, mas principalmente porque os habitantes dessa povoação — infelizes chorincas que se lastimavam de manhã até à noite — mal tinham coragem para arrastar a sombra quanto mais para irem combater bichas de sete cabeças, gigantes de cinco braços ou dragões de duas goelas ! Preferiam choramingar, os maricas, agachados em casebres sombrios, enquanto lá por fora chovia com persistência implacável (como se as nuvens estivessem forradas de olhos) e milhares e milhares de chorões - as árvores predilectas,dessa gente — pingavam folhas tristes. Tudo isto incitava os choraquelogobebenses a andarem de monco caído, sempre constipados por causa da humidade e a ouvirem com delícia canções de cemitério ganidas por cantores trajados de luto ao som de instrumentos plangentes e monótonos. O único que, talvez por capricho de contradizer o ambiente e instinto de refilar, resistia a esta choradeira era o nosso João que, em virtude duma contínua ostentação de 'bravata alegre e teimosia na luta, todos conheciam por João Sem Medo. Ora um dia, farto de tanta chorinquice e de tanta miséria que gelava as casas e cobria os homens de bolor, disse à mãe que, conforme a tradição local, lacrime-java no seu canto de viúva : Mãe : não aturo mais isto ! Vou saltar o Muro."

Aventuras Maravilhosas de João Sem, Medo de José Gomes Ferreira, Portugália, 1963
Capa de João da Câmara Leme.


28 de julho de 2012

No Martinho da Arcada

Em Dezembro de 1928 estes amigos proseavam e bebiam umas canecas no Martinho da Arcada. Ainda um deles não tinha a fama e o profundo impacto que tem nos nossos dias. Encontrei esta foto numa reportagem sobre Lisboa e o seus cafés no Notícias Ilustrado de Dezembro de 1928. Gostei de ver o pézinho esticado e a caneca vazia. Talvez o chapéu pendurado fosse dele. Quem sabe...

4 de junho de 2012

O retorno

Ofereceu-mo o Pedro Curto no meu aniversário. Disse, já te falei nele e sei que vais adorar lê-lo. Pelo seu formato portátil aliado à recomendação de uma das pessoas que mais me deu boas pistas de novas leituras, seleccionei-o para ler no autocarro. Felizmente, no caso, a Carris fez-se esperar e eu avancei com a leitura, esquecendo o calor e a demora e tudo o mais.Mergulhei a pique nesta ficção minha contemporânea, que me ajudou a perceber o meu passado, que também mudou com a chegada dos retornados a uma sociedade fechada e conservadora. A Dulce Cardoso vai passar a ser uma das minhas escritoras obrigatórias. Escrita poderosa, cheia de vitalidade e de ritmo. Envolveu-me. Um livro que me está a alegrar o dia. Obrigada Pedro e obrigada Dulce.

6 de maio de 2012

Os misquinhos


"Chegámos a Lisboa na manhã tépida, de céu ambarizado por um sol que há cinquenta anos a esta parte era raro faltar à cidade, que deixou de ser de mármore e granito para ser, no seu maior dimensional, de tijolo mal cozido e cimento roubado. E, conduzidos por Costa Nunes, forno-nos hospedar no Hotel Portugal, que fazia esquina para o Largo do Pelourinho. O meu quarto era no terceiro andar. Eu via com olhos, não pasmados, que nunca soube o que era pasmo, mas abertos à compreensão, as grandes e amarelas tartarugas dos carros eléctricos vir rolando dos lados do Terreiro do Paço, tilintantes e pletóricas de gente. Logo após vinha o carro do Chora, com o automedonte de longos bigodes retorcidos a reger de chicote vivaz o tiro de três machos pimpões, o condutor de boné de pala, e atropeladamente naquela arca de Noé peixeiras, vendedeiras de hortaliça e de coelhos mansos, operários com suas ferramentas, em suma, segundo o termo das Ordenações Manuelinas, os misquinhos duma capital"

Aquilino Ribeiro, Um escritor Confessa-se; Livraria Bertrand

27 de abril de 2012

Associações inevitáveis

Ficar presa numa imagem na qual, um meio de transporte quase extinto se destaca na neblina. As associações são inevitáveis. Uma fotografia a preto e branco a evocar a época de quem a observa, a dos passageiros em conversa de circunstância e, em plano recuado, a estátua a realçar tempos ainda mais distantes. Não se consegue escapar à queirosiana fórmula de encerramento de Os Maias: A lanterna vermelha do «americano», ao longe, no escuro, parara. E foi em Carlos e em João da Ega uma esperança, outro esforço: - Ainda o apanhamos! - Ainda o apanhamos! […] Então, para apanhar o «americano», os dois amigos romperam a correr desesperadamente, pela rampa de Santos e pelo Aterro, sob a primeira claridade da lua que subia. (Pergunto ainda se identificam o local onde foi captada a imagem) Fotografia: Platão Mendes

15 de março de 2012

Uma adivinha literária

"O Amante
Iam a Bucelas, perfeitamente, pela serra!
Uma era do sitio e a outra de Lisboa . Não tinham o que se pode chamar intimidade, mas faziam-se boa companhia. 0 campo dava à lisboeta aquele gosto, aquele regalo que costuma geralmente dar aos citadinos : surpresas, uma certa beatitude, o despertar da imaginação...
No campo há sempre patentes as coisas naturais e nao de fabrico : o chão verde, o sol, a chuva, a água corrente e as nuvens. Até a gente que passa ou que trabalha nos parece mais espontânea e mais simples! Com isto e pouco mais se amanha uma paisagem de recreio, se passam umas boas férias rurais. Esta aldeia era de lavadeiras, construída em socalcos entre dois ribeiros. No verão dispensavam-se as suas melhores casas a gente de Lisboa. Mas os forasteiros, quer chegassem cedo quer chegassem tarde, de tão costumeiros que eram não produziam a minima impressão no indígena. E assim esta lisboeta temporã, arribada na Páscoa, corria os campos à sua vontade. A ela é que as novidades da terra, toda aquela rebentação primaveril enchiam de exaltação"

Adivinham quem escreveu?
Postal ilustrado do início do século XX, editado pela Bertrand.

25 de fevereiro de 2012

De Cesário a Cesariny

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(tela: David Hockney)

Lembrar Cesário na data do seu nascimento, é igualmente lembrar os que lhe prestaram homenagem. Poeta das cidades movimentadas foi ainda , na esteira de jograis e trovadores perdida nas origens, observador da beleza humana realçada por cenário campestre. Na fuga à tentação de não repetir por aqui o seu poema «De tarde» deixa-se um outro, mais recente, o olhar de outro sujeito poético de nome algo parecido com o do homenageado. Até na vida prática, Cesário viu «mais além», tendo sido um precursor na apresentação das peças de fruta que seu pai comercializava: o poeta lembrou-se de as limpar e polir com óleo , peça a peça, a fim de as tornar mais apelativas aos compradores, colocando a estética ao serviço do pragmatismo.

homenagem a cesário verde

Aos pés do burro que olhava para o mar
depois do bolo-rei comeram-se sardinhas
com as sardinhas um pouco de goiabada
e depois do pudim, para um último cigarro
um feijão branco em sangue e rolas cozidas

Pouco depois cada qual procurou
com cada um o poente que convinha.
Chegou a noite e foram todos para casa ler Cesário Verde
que ainda há passeios ainda há poetas cá no país!

Mário Cesariny

2 de fevereiro de 2012

Claúdia Campos

Uma mulher escritora portuguesa, mostrada pelo Almanaque Bertrand de 1900. Cláudia Campos, natural de Sines. Terei que a ler, fiquei curiosa sobre a sua prosa.