Nos últimos dias, uma das notícias que dominou os meios de comunicação social foi a redução do número de funcionários da Administração Central, uma redução de quase 17 mil trabalhadores nos últimos 14 meses. A notícia desta extraordinária diminuição do número dos trabalhadores do Estado foi saudada como sendo demonstrativa do enorme esforço de contenção de despesas que tem sido levado a cabo nos últimos meses, sendo ainda mais uma prova dos efeitos dessa impressionante reforma estrutural que tem por nome de PRACE. A notícia desse notável feito veio do próprio Ministério das Finanças, que proclamou num tom triunfante: "No período entre 1 de Janeiro de 2010 e 31 de Março de 2011, registou-se a diminuição do universo de trabalhadores em funções públicas na Administração Central do Estado em 16.941 trabalhadores. Prossegue, assim, a inédita redução do universo de trabalhadores em funções públicas que tem vindo a ocorrer, sistematicamente, em todos os anos desde 2005, em contraponto, por sua vez, ao aumento desse mesmo universo de trabalhadores, todos os anos, nas décadas antecedentes."
Uma notícia que foi assim reportada pelos principais meios de comunicação social sem que alguém tenha tido cuidado de verificar com mais precisão os dados do Ministério, e sem que alguém se tivesse dado ao trabalho de interpretar o resto do comunicado ministerial, que nos informa que:
"Sem prejuízo da informação que regularmente tem vindo a ser detalhada através dos Boletins do Observatório do Emprego Público (BOEP) ... constata-se, assim, que actualmente, face aos dados disponíveis, existem cerca de 505 mil trabalhadores em funções públicas na Administração Central do Estado, incluindo os trabalhadores que mantiveram o vínculo público ao Estado apesar de integrados em estabelecimentos de saúde de natureza pública empresarial, bem como o pessoal não docente em exercício de funções nos estabelecimentos de educação e ensino básico e secundário ao abrigo de protocolos com autarquias locais."
E aqui é que está o cerne da questão. Os trabalhadores da Administração Central não incluem nem os trabalhadores do Sector Empresarial do Estado (SEE), nem aqueles(as) trabalhadores(as) que transitaram para as autarquias locais ao abrigo de protocolos com o próprio Estado.
Este é um pormenor importante, porque quando, por exemplo, um hospital do Estado é transformado em hospital empresa (i.e. transita para o SEE), os trabalhadores desse hospital deixam de ser classificados como funcionários públicos. Os trabalhadores que transitam da alçada da Administração Central para as autarquias nem sequer figuram na contabilidade oficial do Estado.
Ora, sabendo que o Ministério das Finanças se vangloria por esta diminuição "inédita" do número de funcionários públicos, interessa perguntar: quantos destes funcionários transitaram para as empresas públicas do Estado e deixaram de aparecer como funcionários públicos?
Entre 2005 e 2009, mais de 53 mil. Assim, e como podemos ver no gráfico abaixo, a transformação dos hospitais públicos em hospitais-empresas levou a que o número de trabalhadores do SEE aumentasse de cerca de 96 mil em 2005 para mais de 150 mil em 2009. Obviamente, esta subida do número de trabalhadores do SEE foi compensada por uma redução equivalente (eu diria até "inédita") do número de funcionários públicos.
Número de trabalhadores no Sector Empresarial do Estado, 2005-2009
Fonte: DGTF
Mas, as "boas" notícias não ficam por aqui. Esta impressionante "redução" do número de funcionários públicos deu azo uma extraordinária (eu atreveria-me mesmo a dizer "inédita") redução das despesas com o pessoal do Estado em percentagem do PIB, de 13,9% do PIB em 2004 para 12,2% do PIB em 2010. Tudo, obviamente, por causa do PRACE e do esforço de consolidação orçamental... Esta redução das despesas com o pessoal é significativa, pois era sabido que uma das imagens mais gritantes do nosso Estado despesista era exactamente o facto de Portugal ser um dos países da União Europeia cujo Estado mais gastava com os seus funcionários.
Despesas com pessoal do Estado em % do PIB, 1995-2010
Fonte: Ministério das Finanças
Por outras palavras, mais uma vez, a contabilidade criativa no seu melhor. Infelizmente para o governo e felizmente para nós, ainda existem entidades independentes que têm denunciado o que tem sido feito nos últimos anos. Assim, aconselho vivamente a leitura dos relatórios do Tribunal de Contas sobre a Conta Geral do Estado e os relatórios da UTAO. O Banco de Portugal também já analisou o assunto e concluiu que mais de dois terços da extraodinária redução das despesas com o pessoal de 1,9% do PIB entre 2004 e 2008 se ficou a dever à transformação dos hospitais públicos em entidades do SEE. Uma redução verdadeiramente inédita, sem dúvida.
Para 2010 ainda não temos números definitivos, mas já temos alguns dados que nos dão uma ideia que a redução dos 17 mil trabalhadores propagados pelo governo é, em parte, uma mera continuação deste processo.
Assim, segundo o último relatório trimestral da DGTF, só entre o terceiro trimestre de 2009 e o trimestre homólogo em 2010, o SEE absorveu 5000 novos trabalhadores devido à transformações em empresas públicas do Centro Hospitalar do Barreiro e do Montijo, do Hospital do Litoral Alentejano e da ULS Castelo Branco. Restam assim 12000 trabalhadores. Muitos(as) certamente aposentaram-se, mas outros poderão ter simplesmente ter feito a transição para a alçada das outras administrações do Estado. Enfim, o habitual. A verdade é que, no meio disto tudo, a propaganda e a contabilidade continuam a ser das indústrias mais bem sucedidas dos últimos anos. Para mal dos nossos pecados.