Não será muito comum, ao lermos um texto simples em prosa, na nossa própria língua, não o entendermos. Mas já me aconteceu a mim, excepcionalmente, uma vez: em Mafra, a 19 de Janeiro de 1968. Após cinco dias de reclusão obrigatória e absoluta no Convento (recruta da tropa) e o início gradual do "massacre e lavagem ao cérebro" desses tempos militarizados, quando saí, na sexta-feira, ao fim da tarde, comprei sofregamente o DL ("Diário de Lisboa") e comecei a lê-lo, num Café mafrense. Apercebi-me, então, que não conseguia entender o sentido do que lia. Reconhecia as palavras, mas elas não se me organizavam em realidade, nem traduziam sentidos.
De uma forma já normal, isto mesmo pode acontecer, a outro nível, ao lermos poesia, na nossa própria língua. Conhecemos os vocábulos, mas escapa-nos o sentido do poema. Mais frequentemente, quando lemos poesia numa língua estranha à nossa, é possível ocorrerem equívocos de interpretação. Ou através duma compreensão errada, criarmos outra realidade para que se ordene, em nós, um sentido (outro?) que não estava no poema, ou no verso original, quando foi escrito. Aqui, no entanto, poderá ocorrer o feliz acaso de se ir ao encontro de uma nova realidade virtual, subjectivamente, objectiva.
Tudo isto se aproxima, perigosamente, da simbologia de Babel e das línguas de fogo do Pentecostes. Ou, simplesmente, daquilo que se denomina a ambiguidade da Poesia, para sermos mais claros.