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sexta-feira, 18 de março de 2016

Diário de Inverno - Paul Auster



Comentário:
Escrito na segunda pessoa, este livro, profundamente autobiográfico, é uma espécie de confissão do autor; mais do que um autorretrato, é uma confissão em profundidade, um relatório pessoal da alma do artista.
Em quase todos os livros que já li de Auster há um tom melancólico, qualquer coisa de cinzento, que parece provir da alma do autor. Auster é uma pessoa solidária, altruísta, desprendida e talvez essa preocupação com os outros e com o mundo o torne pessimista ou, pelo menos, algo desinteressado de si mesmo. Daí ao tom depressivo de muitas das páginas deste livro vai um pequeno passo.
É difícil entender como este Auster pode ser aquele que vende milhões de livros, aquele que já faturou uma imensa fortuna; é difícil entender como um homem com tão grande sucesso na carreira e na vida pode ser uma pessoa tão melancólica, triste mesmo. Neste livro, deparamos com um Auster profundamente desiludido com muitos dos aspetos da vida, confrontado com a velhice que se aproxima, mas acima de tudo olhando para o passado de uma forma triste. Aquilo que ocupa mais espaço neste livro não são as belas memórias dos namoricos, os momentos felizes da infância ou, muito menos, os grandes sucessos literários e as enormes alegrias que os seus melhores livros lhe valeram; a este último aspeto, Auster nem sequer uma palavra lhes dedica; prevalecem sempre as memórias mais tristes: um acidente de automóvel em que ele poderia ter sido responsável pela morte da família, a morte dos pais, os desentendimentos com as famílias, as ruturas nas relações e os incríveis ataques de pânico de que é vítima, são estes os temas mais recorrentes desta espécie de autobiografia. 
Talvez a herança judaica contribua para esta melancolia; na verdade poucos são os escritores judeus que não demonstram trazer em si a herança de séculos de perseguições e intolerância; também aqui se vê, na alma de Auster, as marcas dessa intolerância e a incontornável memória do holocausto.
Na verdade, é necessário que o leitor se afaste um pouco, em termos emocionais, para não se deixar influenciar pelo tom triste, quase deprimido, desta obra. 
Mesmo assim, é possível analisar o livro numa outra perspetiva, mais positiva: em termos de estilo, Auster é talvez o escritor atual com uma escrita mais “visual”; sem qualquer exagero na adjetivação, com frases curtas e uma prosa sem rodeios ou floreados, Auster expressa-se de forma direta, crua e nua. As suas descrições são precisas e concisas. Em termos de enredo, Auster faz de cada episódio da sua vida a página ou capítulo de um folhetim que desvendamos com interesse e que nos levam a ler o livro como se de um romance se tratasse, numa leitura sempre fluida e interessante. Ao longo do livro damos connosco a “torcer“ por Auster e um pouco tristes pela forma como o autor sofre com os males do mundo; é o preço de ser pensante, de refletir e de lutar constantemente por um mundo melhor; Auster é um homem comprometido; um homem de causas, pelo que lhe é impossível encarar o sucesso ou a riqueza como motivos de felicidade. Tal como já escrevi várias vezes, mais do que um grande escritor (para mim um dos 3 melhores do mundo atualmente, com Roth e Murakami) Auster é um Homem muito grande; um excelente ser humano. E todos sabem que um excelente ser humano dificilmente pode ser feliz…

Sinopse: (in wook.pt)

Pensas que nunca te vai acontecer, que não te pode acontecer, que és a única pessoa no mundo a quem essas coisas nunca irão acontecer, e depois, uma a uma, todas elas começam a acontecer-te, como acontecem a toda a gente.

Paul Auster, incansável criador de ficções e de personagens inesquecíveis, vira agora o olhar para si próprio e para o sentido da sua vida. As descobertas da infância e as experiências da adolescência, o compromisso com a escrita - que marcou a sua entrada para a idade adulta -, as viagens, o casamento, a paternidade, a morte dos pais... Uma vida que transborda das páginas deste Diário de Inverno, um definitivo autorretrato construído com a paixão e a transbordante criatividade literária que são as marcas distintivas da identidade deste escritor amado pelos leitores e admirado pela crítica.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Sunset Park - Paul Auster

Nova Iorque, 2008/2009. Vive-se o colapso económico da América pós-Bush. Numa casa abandonada vivem 4 jovens à procura de um futuro, mergulhados na angústia de um presente sombrio. Bing, Ellen, Miles e Alice, quatro vidas à procura de sentido.
Após cerca de 20 livros publicados, as personagens de Auster continuam a viajar pela vida à procura de uma identidade, de um sentido. Talvez a vida seja mesmo isso, uma procura incessante de algo. Não de um amor, de uma fortuna ou de um projecto. Apenas algo. Algo de indefinido a que se pode chamar um sentido, uma explicação ou uma identidade.
Neste seu mais recente romance, Auster apresenta-se perigosamente à beira da descrença. O seu cepticismo, a sua crítica mordaz à sociedade norte-americana, começam a dar lugar, nas suas últimas obras, à angústia, ao lamento profundo e ao pessimismo. Por toda a obra há um tom pessimista perante a vida; um Auster mais filosófico mas nitidamente mais triste
Mesmo as personagens mais bem sucedidas na vida, como Mary-Lee, não são felizes; há sempre uma insatisfação, uma procura frequentemente frustrante de algo. Uma fuga. Fuga que Ellen encontra no corpo e na pintura; Bing nas coisas velhas; Alice no cinema.
Bing Nathan procura consertar o presente ressuscitando o passado, no seu hospital das coisas velhas. Alan e Jake personificam um amor que conduz ao tédio no qual se dilui: o amor não dá felicidade quando não há desafios; quando não há esperança. Apenas rotina e sobrevivência. O drama da rotina, da vida gasta no trivial. É por isso que as personagens de Auster vivem inquietas. Como o autor.
Ellen é a imagem da solidão; o amor que não existe até surgir a esperança. A sexualidade reprimida. Não há futuro.
Miles é personagem principal que viveu o drama e a culpa de um trágico acidente do seu meio-irmão. É por isso que a vida dele é uma fuga. Uma fuga ao passado e ao presente, onde só Pilar representa a esperança que é a força da vida. Para trás terá de ficar essa velha e maior inimiga da vida: a culpa.
Morris, pai de Miles, proprietário de uma grande editora à beira da falência: o lamento por uma sociedade que não lê, uma sociedade que cultiva a ignorância.
Bing Nathan, personagem aparentemente feliz na sua vida “marginal”, mesmo sem nunca perder o seu peculiar bom humor e a sua força de espírito, o seu gosto pela vida, cria a sua própria insatisfação através de um sentimento perturbador: quando tudo o resto corre bem, o coração encarrega-se de procurar a infelicidade.
No entanto, a Beleza também existe em Sunset Park: a solidariedade entre os habitantes de Sunset Park; a tremenda lição de amizade que aí se vive. E a força que vem de dentro de quem nada tem: “eu tornei-me viciado na luta” (Miles).

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Da mão para a boca - Paul Auster

Depois de ler quase toda a obra ficcional de Paul Auster, é curioso ler pela primeira vez um livro autobiográfico como este “Da Mão Para a Boca”. Quando escreveu este livro (1996), Auster já era a estrela que é hoje mas relata a sua juventude e as primeiras e penosas experiências literárias. Depois de sair de casa dos pais, ainda muito jovem, Auster foi marinheiro, argumentista de cinema, tradutor, dramaturgo de peças mal sucedidas, empregado de vários serviços mal pagos, etc. desesperado com a falta de dinheiro para sobreviver (ele e a família) chegou a encarar a hipótese de fazer criação de minhocas na cave de casa, tentou sem sucesso escrever folhetins pornográficos e tentou desesperadamente vender um complexo jogo de cartas em que tentava imitar um jogo de basebol. O seu primeiro livro (policial) foi um fracasso mas acabou por lhe render uma pequena quantia que lhe possibilitou lançar-se nas verdadeiras aventuras literárias. Acabou por encontrar o sucesso no momento em que se encontrava à beira do desespero total, curiosamente após a morte do pai. Foi nessa altura que escreveu o brilhante “Inventar a Solidão” e a genial “Trilogia de Nova Iorque”. Auster termina este livro neste ponto da sua vida, com a frase “Chegava de escrever livros por dinheiro. Chegava de me vender”. Tinha na altura cerca de 32 anos.
Regressando a este livro, podemos concluir que Auster foi sempre um homem à procura da sua identidade. Nesta fase da sua vida revela-se um aventureiro, mergulhado na incerteza e no limite do desespero. A literatura, como todas as artes, constrói uma reduzida elite de super-estrelas, milionários famosos como hoje é Auster em contraste com uma miríade de “proletários da escrita”, como ele próprio foi durante tantos anos. Estes limitam-se a trabalhar para sobreviver, como qualquer operário mal pago. Entre os escolhidos pela fortuna e estes trabalhadores da escrita (os que escrevem “da mão para a boca”) há um fosso enorme. Auster conhece os dois lados.
Para quem conhece a obra de Auster é fascinante descobrir neste livro que as características típicas da maioria dos seus personagens principais não são mais que as características da personalidade do próprio Auster: ambicioso mas generoso, aventureiro, crítico, desprendido, sonhador, livre mas, acima de tudo, detentor de uma sensibilidade humana peculiar, um lado humano e solidário que se sobrepõe a todas as ambições e objectivos materiais.
Este humanismo é, a meu ver, a qualidade maior de Auster como escritor e como ser humano.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Palácio da Lua - Paul Auster

Marco Fogg é um jovem que nunca conheceu o pai e perdeu a mãe na infância. Abandonado no mundo é protegido por um tio que, também ele, desaparece bastante cedo da sua vida. Fogg partirá assim, antes dos vinte anos, numa viagem por vezes obscura e absurda, ao interior de si próprio, em confronto com um mundo não menos complexo e absurdo.
Fogg herdou do tio Victor 1492 livros; um numero que corresponde ao ano da descoberta de Colombo. Esse era também o nome da sua universidade: Columbia. Assim, a vida de Fogg transformar-se-á numa intensa procura de um novo mundo; o mundo dos seus sonhos, da sua identidade.
Confrontando-se com as imposições da vida, nomeadamente a falta de recursos materiais, Fogg vai vendendo os livros. À medida que se separa deles, perde sempre um pouco mais do tio Victor. E de si mesmo. No entanto, vendeu os últimos livros no dia em que o homem pisou a lua pela primeira vez. A mudança impunha-se; novos mundos nasceriam na vida de Marco Fogg.
Este é um dos primeiros livros de Auster. No entanto, já aqui se revelem algumas das inquietudes que povoam toda a produção ficcional deste escritor genial: a solidão humana, a procura da identidade e um intenso afecto por Nova Iorque e pela generosidade dos nova-iorquinos. Quando, na miséria absoluta, Marco vive no Central Park, como um vagabundo, é admirável a forma como os nova-iorquinos revelam generosidade e compreensão perante a miséria. No entanto, a vida de Fogg transforma-se na imagem da solidão, bem no coração da maior cidade do mundo.
Mais tarde, ao serviço de Effing (um idoso paralítico e cego), Fogg é o intermediário entre o velho e o mundo; paulatinamente, Effing vai revelando a sua função neste livro: ele é o exemplo de um homem que percorreu toda a vida à procura de uma identidade, de um sentido, uma razão para viver. Ele viveu sob dois nomes, à procura do seu lugar na vida. Uma das tarefas de Fogg é escrever o obituário de Effing, que este lhe vai ditando – nada menos que doze blocos de apontamentos. Uma vida que, afinal, cabe num obituário!
Só houve dois momentos na longa vida de Effing em que ele se sentiu realizado e em paz consigo mesmo: o primeiro momento é quando passa um ano como eremita, pintando no meio do deserto, sem a pressão dos outros, sem contas a prestar. Mas nem aí haveria futuro…
O segundo momento é como que o culminar da sua viagem de vida: quando distribui dinheiro pelas ruas de Nova Iorque. A seguir, foi a morte. A seguir foi a morte. Mais uma vez, não havia futuro… mas, dessa vez, houve redenção; o círculo fechou-se no sentido da vida…
Para lá do tom melancólico de muitas páginas de Auster, o escritor revela uma intensa simpatia para com o ser humano, de tal maneira que o leitor é levado a simpatizar com todos os personagens. Por exemplo, Charlie era um louco. Apenas por ter sido vítima da suprema maldade que um ser humano é capaz de construir: a guerra.
Na parte final do livro as personagens principais cruzam-se numa sucessão de incríveis coincidências. Tudo se passa como se, na verdade, o destino dos homens fosse determinado por misteriosas forças de atracção. Talvez a vida humana seja mesmo comandada por um qualquer Palácio da Lua. Como se a vida fosse uma imensa teia, cujos fios por vezes seguem paralelos e outras vezes se cruzam, seguindo caminhos diferentes e irreconciliáveis.
Fogg conservava na carteira uma frase de um bolinho da sorte encontrado no Palácio da Lua (restaurante): “O Sol é o passado; a Terra o presente e a Lua o futuro”. Talvez apenas a Lua seja o futuro. Porque tudo é efémero excepto a mudança. Só a mudança é permanente. As fases da vida, como as da Lua, talvez sejam apenas apeadeiros da mudança… a vida como uma enorme viagem…
Sem dúvida uma dos melhores livros do melhor escritor da actualidade.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

No País das Últimas Coisas - Paul Auster

Numa cidade desconhecida, Anna procura desesperadamente o seu irmão William. Mas não se trata de uma cidade qualquer. Numa paisagem a fazer lembrar “A Estrada”, de Cormac McCarthy, deparamos com um cenário catastrófico, onde um qualquer desastre arruinou por completo os seus habitantes. O livro dá a entender que não se tratou de um desastre natural nem de uma guerra mas de destruição humana.
Esta visão apocalíptica põe em discussão toda a condição humana, todo o processo que pode conduzir a um esvaziamento total do eu. Não é só a cidade que se esvazia na miséria; são os homens. São as almas. Almas que trocam a felicidade, o sentimento, mesmo o prazer, por um vazio onde até a alimentação do corpo se torna dispensável. Este esvaziamento radical do ser é o que mais profundamente choca o leitor.
Numa primeira parte do romance, Auster massacra autenticamente o leitor com algumas dezenas de páginas que percorremos com total angústia perante a miséria física e moral a que um ser humano pode ser sujeito. São páginas que não chegam a despertar revolta, tão irreal é o cenário descrito; como se a nossa alma e o nosso cérebro fossem incapazes de encarar tal realidade como algo minimamente plausível. Mas à medida que o enredo avança os sentimentos emergem. Com eles, a revolta, a preocupação, o medo até.
As pessoas que perderam tudo tendem a adoptar comportamentos infantis, sonhando, imaginando, acreditando… no entanto, os objectivos são diferentes: as crianças imaginam para criar um mundo fantástico; as pessoas desesperadas usam a imaginação para esconderem a realidade de si próprias; a imaginação como fuga, como negação do real.
Na cidade do desespero a morte é um objectivo. A morte torna-se uma arte, uma forma de expressão. As pessoas criam formas de morrer. A morte torna-se espectáculo e até uma manifestação de heroísmo. Mas, para a maioria, a morte não deixa de ser banal – morre-se em qualquer lado e por qualquer motivo. Os cadáveres invadiram a cidade e tornaram-se um meio de sobrevivência: sem eles não poderia ser obtido o metano, única fonte de energia disponível.
Para a maioria, a vida limita-se a uma sobrevivência no limiar da morte – um mundo onde a esperança é totalmente ausente e onde os “risonhos” (os optimistas) são uma minoria e considerados estúpidos e absurdos.
No meio de um contexto macabro de fome, miséria e desesperança (como diria Mia Couto) a morte é uma bênção, um benefício. Curiosa a associação da morte de um personagem ao prazer sexual extremo: o prazer como prelúdio da morte. No entanto, quando se trata da morte do “eu”, por mais que seja desejada, há sempre um último passo que se torna quase impossível de dar. A vida auto-preserva-se, mesmo no limiar extremo.
Um dos pormenores mais geniais desta obra é a caracterização de um personagem que sobrevive graças ao facto de estar a escrever um livro. É o livro que o mantém vivo. A sua miséria é tão grande que só se alimenta de dois em dois dias. No entanto sobrevive porque há um livro para acabar. E só uma coisa haveria de superar o livro: o amor! Mesmo nos limites do sofrimento, Anna encontra aí o período mais feliz de toda a sua vida, mesmo incluindo os anos em que viveu na riqueza.
Bóris, o comerciante, é um homem encantador. Na verdade, ele é um mentiroso. No entanto, conta histórias fantásticas que todos fingem ser verdadeiras e quando a mentira encanta passa a chamar-se fantasia; tem o dom de nos libertar da crueldade e do sofrimento. Talvez seja por isso que todos nós temos necessidade de mentir, mesmo a nós próprios. Talvez seja também essa mentira feita fantasia que nós procuramos nos livros - a construção de mundo fictício que nos encante. É neste aspecto que Auster, neste romance, foge à regra. Este livro não nos encanta. Este livro choca-nos brutalmente com uma realidade extrema e, ao mesmo tempo, tão humana.

sábado, 13 de março de 2010

Invisível - Paul Auster

Ao 13º romance, Paul Auster presenteia-nos com um livro surpreendente. Este grande escritor, verdadeiro génio da literatura mundial, demonstra-nos como é possível inovar, mesmo quando as fórmulas tradicionais garantem o sucesso.
Começando pelo fim: pela primeira vez na carreira literária, Auster escolhe um final pouco surpreendente; digamos que surpreende pela falta de surpresa; um final previsível mas, incrivelmente belo!
No entanto, não deixam de estar presentes os temas mais recorrentes na obra de Auster: a angústia do escritor, a solidão e a luta interior pela procura da identidade; sempre a identidade, a eterna procura de um destino que dê sentido à existência, a demanda de objectivos que expliquem a existência; a necessidade de correr riscos; a procura dos limites onde a vida começa a ganhar sentido: “É o medo que nos leva a correr riscos e a ultrapassar os nossos limites normais”.
A história de Adam Walker é uma saga incrível. Ele é o homem comum, como qualquer de nós, a quem tudo pode acontecer. A sua vida é marcada pelo confronto com Born, o anti-herói, o fantasma real, o inimigo visível e invisível. Walker flagela-se por ter sido pouco corajoso perante a maldade de Born. Toda a sua vida foi destroçada quando, na verdade, ele teria sido, apenas, a vítima. A culpa! A culpa, esse conceito tão subjectivo, essa condenação tantas vezes imposta por nós próprios, muitas vezes apenas uma construção mental com a qual, sadicamente, nos auto-destruímos.
E, pairando sobre vidas à procura de sentido, o mortos. Sempre os mortos, invisíveis, por vezes mais vivos que os próprios vivos, na solidão de quem não consegue nunca escapar às garras da memória e da culpa. Memória e culpa que se confundem, como se uma lembrança pudesse transportar o peso insustentável do remorso. A vida e os seus paradoxos: por vezes não conseguimos escapar ao invisível; ele esmaga-nos. Outras vezes queremos tornar invisível o real e não há fuga possível. O ser humano será sempre atormentado pela sua própria mente, pela eterna necessidade de pensar e sentir.
Em suma, um livro diferente de todos os que Auster escreveu até hoje. O melhor, como alguma crítica afirmou? Impossível responder. Diferente.
Genial, como sempre! Apenas!

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Homem na Escuridão - Paul Auster

Trata-se de uma das obras mais interventivas de Auster. O pano de fundo é fornecido pela América de Bush e dos atentados de 2001. O brilhante escritor norte-americano reeinventa aqui uma América onde as torres não caíram e onde as eleições de 2008 conduziram a uma nova guerra da secessão.
August Brill, 72 anos, critico literário reformado, angustiado e deprimido, conta histórias a si mesmo; histórias que são de Auster e de uma América doente. E as histórias, aos poucos, impõe-se a Brill e não podem deixar de ser contadas. Nesse momento, a ficção e a realidade misturam-se como na vida. A vontade de Brill deixa de ter importância. Os facto tornam-se incontornáveis e a história tem medo de ser contada porque ganhou a vida que lhe é dada pela História.
Homem na Escuridão é um livro sobre a vida dominada pela angústia mas também sobre a alegria das pequenas coisas que, se nós deixarmos, nos podem salvar da tragédia humana eminente.
É mais um livro em que Auster une, com mestria, autor, história e leitor, numa cadeia indestrutível. Esta união leva-nos mais longe do que a óbvia identificação entre o leitor e a história, conduz-nos a um universo onde predomina a mente do escritor, como se este nos guiasse através das suas próprias ideias.
Como em todos os seus livros, prevalece o humanismo do escritor, que encara as suas personagens do ponto de vista das suas emoções e sentimentos, mais do que o seus pensamentos e opiniões. O final do livro, ao contrário do que é habitual em Auster não prima pelo elemento surpresa mas pela profunda humanidade.
Nesta obra descobrimos um Auster mais interventivo, mas também cada vez mais voltado para as emoções, para os sentimentos, para a angustia da existência.

domingo, 23 de novembro de 2008

Paul Auster - Viagens ao Scriptorium

Cada livro de Auster deixa, no final, a questão que se eterniza: o que vai o génio de Nova Iorque inventar de seguida? Grande contador de histórias, Paul Auster é o escritor que mais caminha para dentro de si, à medida que escreve. Nesta obra lê-se e vê-se o autor, os seus sentimentos, angústias e memórias. Cada novo livro parece caminhar mais um pouco na interiorização. A caminhada começou algures por volta da “Triologia de Nova Iorque”, uma caminhada do mundo para dentro de si. “Viagens no Scriptorium” parece ser, mais uma vez, o fim da caminhada. É Auster em 115 páginas.
As histórias rocambolescas como em “As loucuras de Brooklin”; as coincidências incríveis de que a vida é feita, como em “A noite do oráculo”; os enredos cinematográficos, cheios de imagens escritas quase com magia, como em “Mr. Vertigo” parecem já não fazer parte do universo de Auster. Mais ou menos a partir de “Leviathan” o autor parece ter-se voltado para si próprio, em definitivo. Alguém escreveu que este livro marca o confronto de Auster com a sua própria velhice. Não me parece. Mr. Blank é Auster à procura da sua própria identidade, não a explicar ou a questionar o final da existência. O diálogo interior, a introspecção, a procura do âmago mais profundo da alma humana em confronto com o mundo são temas que, afinal de contas, sempre fizeram parte da obra de Auster mas que apenas germinavam nos seus primeiros livros, para agora aparecer em pleno.
Mr. Blank está sozinho, num quarto-prisão sem saber onde nem quando, nem sequer porquê. É a solidão na sua máxima expressão. Porque estar totalmente só é não saber sequer quem é. Algo no seu passado o levou até aquele quarto. Alguém, algum dos seres fantasmagóricos que o rodeiam, o levou até ali. De entre esses seres alguém o ama, muitos o odeiam. Ele sabe que odeia alguém. Mas não sabe quem nem porquê. Mr. Blank tenta reconstituir a sua identidade. Nunca o conseguirá. Mas a maior angústia não é estar só. É depender de todos os outros: os que o amam e os que o odeiam. É o drama maior do ser humano: os outros são o inferno mas só eles podem dar sentido à sua existência, só eles lhe poderão devolver a identidade.
Por mais introspectivo que este livro possa ser (e é), nem assim Auster prescinde de uma das suas características mais interessantes como escritor: o enorme talento de surpreender o leitor com um final inesperado e belíssimo. Auster no seu melhor. Até ao próximo livro.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

A Música do Acaso - Paul Auster

A par de Mr. Vertigo, esta Música do Acaso é uma das raras obras de Paul Auster que segue uma linha bem definida; sem recorrer à sua técnica recorrente de histórias dentro da história, Auster desenvolve um enredo simples e linear. É talvez um dos seus livros mais singelos e menos “trabalhado”.
Escrito em 1990, na primeira fase do percurso literário do autor, aborda a história de um bombeiro nova-iorquino de nome Jim Nashe. Aliás a semelhança do nome talvez denote alguma referência ao músico americano Graham Nash que, além da brilhante carreira militar, foi um activista político nos anos 60.
Jim Nashe tal como o seu quase homónimo, não consegue viver sem a música; é uma mescla de bombeiro, cavaleiro andante, libertino e vagabundo. Nashe, o vagabundo culto que lê Rousseau e ouve Verdi, é a liberdade em pessoa. Mas será que alguma vez foi livre? Esta é a questão central do livro. A liberdade existirá?
Jim deixa-se conduzir pelo acaso mas é precisamente esse acaso, uma força aparentemente aleatória, que acaba por conduzir com rédea curta toda a sua vida. Escravo do acaso pode ser uma expressão definidora de Jim e da sua vida. É nesse sentido que o acaso se confunde com o destino. Serão uma e a mesma coisa?
É por acaso que encontra Pozzi, um amigo de ocasião que num ápice se torna o filho, outras vezes irmão, que Jim nunca teve. Perdido no acaso, facilmente Jim encarna uma outra ideia central que perpassa toda a obra literária de Auster: a perda e a busca da identidade. Nash percorrer o livro à procura de si próprio e de um sentido para o seu percurso errante. Essa procura da identidade faz surgir a obsessão; a vontade furiosa de encontrar um caminho. Na parte final do livro, após ter gasto toda a fortuna herdada, Nashe e Pozzi encarregam-se de construir um imenso muro para pagar a dívida do jogo. Auster a lembrar Kafka: o muro como metáfora da perda da liberdade pelo trabalho; como em A Grande Muralha da China, trata-se da perda da individualidade, esmagada pelo peso de algo superior, seja uma autoridade ou, simplesmente um destino ou acaso. E a solidão. A imensa solidão que só termina com a morte. Mas, ao mesmo tempo, o reencontro com uma certa ordem cosmológica, estabelecida pela racionalidade do transporte e alinhamento das pedras. Mas essa racionalidade é provisória; tanto como a liberdade. No final prevalecerá sempre a solidão. A solidão e a incerteza; como Nashe reconhece, nós não sabemos nada. Somos um imenso zero. No entanto, um zero também pode ser um círculo que contenha o mundo inteiro.
Mesmo numa estrutura linear e aparentemente simples, Auster não escapa da sua própria angústia perante o destino e a natureza tristemente irracional do ser humano. Até ao momento em que. De repente, a música se interrompe.

domingo, 29 de junho de 2008

Timbuktu - Paul Auster

Esta interessante fábula de Paul Auster, escrito já na era Bush, em 1999, conta-nos a história de um cão de raça indefinida, um daqueles cães vulgares, Mr. Bones e do seu dono, Willy, um sem abrigo, ou melhor, um poeta, que talvez fosse apelidado de esquizofrénico por qualquer intelectual de pacotilha. Na verdade, nem Mr Bones é um cão vulgar, antes um génio canino, nem Willy é esquizofrénico, antes um poeta incompreendido e rejeitado pela sociedade. Willy, ao rejeitar a herança da mãe, é o homem que recusa o materialismo, logo, o mundo dos outros homens.Willy devia ter sido um grande poeta, mas a doença alterou-lhe os planos e fez com que andasse em de terra em terra, pela costa leste dos EUA. Adoptou Mr. Bones, que passou a ser o seu companheiro, protector e confidente. Mais do que isso: Bones é o amigo; o único amigo, a antítese do ser humano: solidário e disponível. A elevação do cão a amigo perfeito é o reflexo da mágoa de Auster perante a natureza egoísta e materialista do ser humano. O ser humano “normal” recusa a liberdade; Willy rejeita o mundo em nome da liberdade.O cão, dotado de extrema inteligência é o único ser que conhece realmente Willy e nos dá a conhecer todo o enredo. Mr. Bones é cão, por isso não está corrompido pela humanidade. É paciente, fiel, inteligente, autónomo, com personalidade, meigo, altruísta e amigo dedicado – tudo o que um ser humano não é. Mais importante do que ser omnisciente, Bones sabe sonhar. Por exemplo, com Timbuktu, a terra para onde todos nós vamos, depois de morrer, e onde, muito provavelmente, cães e homens falam a mesma língua. Timbuktu é “o oásis dos espíritos”, onde o Universo encontra sintonia e único lugar de paz e felicidade.A escrita refinada, deliciosa, de Auster dá ao livro o tom de uma maravilhosa fábula sobre a amizade, a solidariedade e o sonho. O cão e o vagabundo estão unidos contra o desprezo humano. A loucura de Willy não é mais do que a estranheza de alguém que sonha num mundo de homens vegetais voltados apenas para si mesmo. Com um notável sentido de humor e a sua habitual clareza de linguagem, Auster não deixa de emprestar a determinados aspectos da obra uma carga de simbolismo notável e até algum sentido filosófico. Por exemplo, quando Willy decide compor uma sinfonia de cheiros, o autor delicia-nos com uma série de raciocínios sobre as implicações da arte como fuga ao real, mesmo utilizando os sentidos, como o próprio olfacto, como via para essa libertação. Quando Mr. Bones tem acesso a todos os confortos e riquezas, continua a sonhar com Willy. Ou melhor, com a liberdade, única via para a realização completa do ser humano.Em suma, mais uma obra brilhante de Auster, o nova-iorquino que não quer ser norte-americano.

terça-feira, 10 de junho de 2008

Mr. Vertigo - Paul Auster

Mr. Vertigo é uma das obras mais peculiares de Auster; trata-se de uma espécie de fábula moderna onde o impossível se realiza e os sonhos ganham forma; aqui o humano mistura-se com o misterioso e a vida saltita entre o mesquinho e o irreal. Nunca em toda a bibliografia de Auster se chegou tão alto no domínio da fantasia e da imaginação. Trata-se da história, contada pelo próprio, de um ancião que faz o feed-back de toda a sua vida, desde os tempos em que usava voar até ao momento em que, já idoso, recorda todos os altos e baixos da sua vida, da vida da América. Walt é o rapaz Prodígio que, conduzido pelo seu Mestre, Yehudi, aprende a voar e mostra que, afinal, isso é até coisa pouca para um ser humano. Após uma experiencia dura de aprendizagem, ele torna-se o ídolo da América. Até à queda; e daí ao renascimento; até nova desgraça; e de novo o ressurgimento; até ao fim…Walt sonha e isso fá-lo voar. Mas só após o sofrimento; um imenso sofrimento que mestre Yehudi lhe apresenta como o preço da felicidade. Walt, um indigente, pobre e renegado, vive e realiza o seu sonho com a ajuda de uma índia velha, um negro e um judeu húngaro (o mestre); os heróis são aqueles que surgem das minorias mais reprimidas, mais espezinhadas sobre quem tombou toda a gloriosa história da América. O desejo de voar é o desejo de redenção por parte dessa América assombrada pela história de violência e injustiça. A chacina dos Índios, a perseguição aos judeus e o ódio aos judeus são as manchas que ensombram a Liberdade. Aliás, é a própria Ku Klux Klan quem dá um dos maiores passos para a desgraça do Prodígio. O Mestre, o homem que só lê Epinosa (judeu de origem portuguesa), representa a fusão entre o espírito materialista americano, o homem que quer ganhar rios de dinheiro, e o espiritual, o homem que sabe que o querer faz-nos voar. Quantas desgraças sofreu o Mestre; mas a ambição é maior e Yehudi mostra-nos como a maior e mais nobre das ambições é, afinal, aquela que não se transforma em dinheiro. Walt passou a vida a subir e a descer. Mas descer é muito mais fácil do que subir ou manter a altitude. Na vida como na magia. Na América como em nós. Em rodapé comum a todo o livro, o hino à amizade que Auster nos entoa. Com firmeza e sentimento; com a sua peculiar frieza narrativa mas sempre com aquele toque de humanidade que faz de Auster um dos expoentes máximos da literatura contemporânea.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Leviathan - Paul Auster

Peter Aaron, o narrador, lê a notícia de que um homem não identificado explodiu numa estrada do Wisconsin. Só ele sabe tratar-se de Benjamin Sachs, o seu melhor amigo e um promissor romancista. A partir desse momento, Aaron impõe a si mesmo a árdua missão de desvendar o mistério que envolve a vida e morte de Sachs, empreendendo uma jornada que é, simultaneamente, uma autodescoberta. Com o objectivo único de repor a verdade, revive a amizade que o ligara durante quinze anos a Sachs.
Não se trata de uma das mais bem conseguidas obras de Auster, longe da genialidade de “A Triologia de Nova Iorque” ou da profundidade de sentimentos de “Inventar a Solidão”, até porque se trata de uma das suas primeiras obras. Mas é um livro que revela já aqueles que viriam a ser os traços mais marcantes da obra deste genial escritor nova-iorquino. Desde logo, todo o enredo é marcado por esse tema central do Universo de Auster: a procura da identidade: Peter procura conhecer Sachs procurando por si próprio; a irresistível tentação de conhecer o outro, aliada à quase impossibilidade de compreender a alma humana. O “outro”, neste caso, Sachs é o eu-sombra, aquele que funciona como imagem projectada do narrador. Por outro lado, como em toda a obra literárias de Auster, a crítica mordaz à mentalidade, aos costumes, ao pensamento político e às estruturas sociais da América conservadora.
O tema “terrorismo” e a procura das suas causas profundas surge como consequência de uma sociedade ultra-conservadora e ao mesmo tempo injusta, que despreza valores como a solidariedade e a preocupação pelo outro. Muitos anos antes do 11 de Setembro, Auster anuncia, pela acção de Sachs, um bom homem, as consequências dessa degenerescência social. No domínio dos sentimentos, é um livro sobre amizade, amor e a traição: a complexidade dos sentimentos humanos e o limite ténue entre o amor e a traição, com o desejo a funcional como fiel da balança. Uma escrita predominantemente narrativa mas profunda e complexa. Finalmente, realce, como sempre, para a enorme habilidade de Auster como contador de histórias. O imprevisto do quotidiano que transforma a vida numa sucessão de contradições e mistérios. A bizarria das coincidências revela essa mesma complexidade. Como é próprio de Auster, a incerteza e o mistério do enredo levam o leitor a folhear até à exaustão, levando ao expoente máximo o prazer de ler.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

As Loucuras de Brooklyn - Paul Auster

Antes de mais, uma chamada de atenção para o facto de o título original ser muito mais sugestivo: The Brooklyn Follies. No entanto, a palavra "Follies" é, como se compreende, de difícil tradução, pelo que se compreende a solução adoptada ("Ilusões"). Aliás a tradução do habitual tradutor de Auster para a ASA (Pires de Lima) parece-me muito boa. Pelo menos muito atenta, com notas de rodapé muito úteis. As Loucuras de Brooklyn confirma a fixação de Auster num estilo preponderantemente lúdico e narrativo. Atingindo a maturidade como escritor, parece ter neste romance atingido aquele ponto em que já não precisa de inovar. É, por isso, talvez, o romance mais bem conseguido deste nova-iorquino que não norte americano (palavras suas). É, seguramente, o seu livro politicamente mais interventivo e comprometido desde a Triologia de Nova Iorque. Todo o pano de fundo é preenchido pela Nova Iorque dos anos 2000 e 2001: desde a reeleição de Bush à tragédia do 11 de Setembro. Fica mais uma vez clara a revolta do autor perante os caminhos sórdidos e absurdos da política norte-americana, não hesitando em deixar clara a fraude eleitoral cometida pelo partido republicano. Mesmo assim fica a ideia de que Nova Iorque pré-11 de Setembro é um sítio feliz. Magnifica a descrição da gente simples da grande maçã, que Auster admira profundamente. Aí reside grande parte da genialidade deste livro: a maneira eficaz como se conta histórias simples, de gente simples. Neste romance, ao contrário do habitual nos livros de Auster, o protagonista não é escritor. Nathan Glass é um apaixonado pelos livros que, na fase final da sua vida, vítima de uma doença grave decide mudar-se para Nova Iorque a aí procurar um final de vida tranquilo. Mas não é tranquilidadde que ele encontra; encontra os problemas e as peripécias de gente simples a quem acontece um pouco de tudo. Envolve-se com personagens estranhas mas autenticas, quase diria estranhamente reais: homosexuais, assassinos, pobres desgraçados de minorias étnicas, ricaços desprovidos de ética e inteligência e um sobrinho vítima da vida que lhe reabre a porta da família e o enreda em novos laços de ternura que Glass julgava já impossíveis de recuperar. É o ranascer para a vida, é a redenção sempre presente nos livros de Auster: a solidão como caminho para a felicidade, mas sempre uma felicidade difícil, só conseguida por árduas lutas interiores e perante os outros. A afirmação do ser humano como único, só é possível perante uma sociedade que, à partida, o despreza. Mas, neste livro, parece haver um pouco mais de luz do que nas obras anteriores, mais sombrias e pessimistas. Um final feliz na medida do possível, compensam a tragédia que persiste, a espaços, na vida.

O Livro das Ilusões - Paul Auster

Nesta obra, o melhor escritor norte-americano da actualidade põe em cena todo seu conhecimento e sensibilidade cinematográfica, herdadas da sua vasta experiência no género, como realizador e argumentista. Aliás, não deixa de ser curioso que o filme baseado neste livro, a estrear em breve, tenha sido rodado em Portugal, o que prova mais uma vez a predilecção de Auster pelo nosso país. Neste livro, narra-se a vida de um homem que, depois de passar pela dolorosa experiência da morte dos filhos e esposa, se dedica por inteiro à escrita, nomeadamente à reconstituição da vida de um génio do cinema mudo, Hector Mann, misteriosamente desaparecido. Na primeira fase do livro, é tocante a forma como Auster sente e exprime a crueza do sofrimento humano e da solidão. A revolta invade o próprio leitor, perante a crueldade do destino do personagem principal. A partir daí, toda a escrita de Auster embeleza de forma genial a passagem gradual da tragédia à procura da motivação pela vida. A solidão dá lugar à esperança. A tristeza dá lugar ao frémito que impede de pensar, esse "stress" que dá à vida aquela velocidade que nos aliena mas que, ao mesmo tempo, nos anestesia perante a tragédia. Tal como noutras obras de Auster, também aqui perpassa a ideia de que não pode haver felicidade sem sofrimento. Assim, David Zimmer procura uma espécie de redenção perante o passado e fá-lo através da escrita. Mais uma vez, um tema querido a Paul Auster: o próprio acto de criação literária; a envolvência do escritor na obra criada e a amálgama entre o criador e a criação. No final fica o optimismo mau grado o tom trágico que percorre toda a obra. Há qualquer coisa de mágico em Auster: a vida é dolorosa mas preciosa. As alegrias são efémeras mas singulares. Estas ideias, tão caras a grandes escritores que, sem dúvida influenciaram Auster (Dostoievski, Kafka…) são envolvidas numa das maiores qualidades do autor: a sua magnifica vocação de contador de histórias; a sua capacidade de expressão narrativa faz dos seus livros magnificas fontes de entretenimento, retirando a literatura daquele aspecto enfadonho e pseudo-intelectual em que, infelizmente, muitos autores actuais se sepultam.

domingo, 3 de setembro de 2006

A Noite do Oráculo - Paul Auster

“A Noite do Oráculo” é, antes de mais, um extraordinário e genial exercício literário de Auster. Ele exprime com eloquência todo o génio deste escritor, um dos mais brilhantes da actualidade. Trata-se de um romance complexo mas de leitura muito agradável sobre a maior quimera da existência humana: a descoberta do sentido da vida. Histórias dentro de histórias, “A Noite do Oráculo” é uma obra literária que se insere no enredo de uma outra, sobre a vida de Nick, escritor, que por sua vez é uma criação Sydney Orr, o protagonista de Auster. Em primeira instância, trata-se de uma reflexão sobre o poder da literatura e sobre a interacção entre o escritor e o livro. As histórias, à medida que vão sendo criadas interpenetram-se e influenciam-se, confundindo o real e misturando-o com a ficção que verte da imaginação do escritor. As personagens vão sendo assim condicionadas pelos três planos em que a acção se desenrola, como se fossem três mundos diferentes mas que dependem uns dos outros. Assim, o tempo e lógica causa-consequência tornam-se relativos, perante a multiplicidade de tempos e de dimensões que Auster nos oferece. Na vida de Nick os acontecimentos inesperados sucedem-se, deixando sempre uma misteriosa ligação com o enredo do livro que vai escrevendo. Na sua mente a ficção parece determinar a realidade e não apenas o inverso, misturando assim de forma dramática a verdade e a imaginação. Por outro lado, esses acontecimentos surgem por acaso. Na obra de Auster parece ser determinante esta preocupação com o acaso. Como no filme “Magnólia” o autor parece querer dizer que os acasos, os acontecimentos aparentemente fortuitos são aqueles que, de facto, determinam o sentido da nossa vida. Mas trata-se também de uma obra sobre os sentimentos humanos: perdido no mundo imaginado do seu livro, Nick depara com o maior drama da sua vida: o amor duplo da sua esposa: por ele mas também pelo seu melhor amigo. O maior desafio de Nick é agora o perdão. A questão surge, dramática e real: até onde pode um ser humano perdoar?

terça-feira, 14 de setembro de 2004

Trilogia de Nova Iorque - Paul Auster

Quinn é Max e William Wilson. Mas é também... Paul Auster. O problema da identidade. Sempre. Uma fixação. Todas as três partes que compõem o livro são histórias de alienação e do seu sucedâneo, de ténues fronteiras, a loucura. Na grande cidade, toda ela alienada, Quinn perde a identidade, refugia-se como uma criança abandonada no "caso Stillman", como se ele passasse a preencher toda a sua vida, até ao ponto em que o real e o onírico se cruzam, onde o absurdo de Kafka se cruza com a loucura de Dostoievsky, passando pela solidão de Faulkener. A função do detective privado é uma metáfora da vida na grande cidade: alienação total, ao ponto da perda quase completa da noção de si mesmo, do auto-conhecimento, sempre perseguido e sempre inatingível. Os próprios laços de parentesco são muito mais frágeis do que os nós criados pela imprevisibilidade do espírito e pelo aleatório da vida. Esses sim são laços fortes, capazes de conduzir à alienação. Na terceira parte é quase chocante a forma como Auster dessacraliza a relação filial e conjugal, subjugadas cruelmente às obcessões construídas pela mente do narrador. Toda esta neutralização do sujeito conduz também ao egoísmo: o sujeito acaba por se transformar numa espécie de autómato, incapaz de sentir os problemas daqueles que o rodeiam. Neste sentido, a obra é profundamente pessimista.

quinta-feira, 29 de julho de 2004

Inventar a Solidão - Paul Auster

O próprio Auster é confrontado com a morte do pai. Este acontecimento surge de forma inesperada, abrupta e leva o autor a tentar compreender os seus sentimentos (ou a ausência deles), a confrontar a figura do pai com as suas memórias.
Ao longo do livro divaga sobre a paternidade, confrontando a sua condição de filho com a de pai. Toda a obra parece ser um longo e profundo exercício de auto-análise, quase psicanalítico. Auster, como fizeram outros grandes mestres, divaga, sobretudo, sobre a solidão. Porque a vida é, essencialmente, um percurso solitário. Por mais que se viva com os outros, a vida em sociedade parece nunca deixar de ser um imenso somatório de solidões. Porque todo o homem é um mundo único, ímpar e só.
O homem é uma realidade complexa e indefinível, que nem o próprio sujeito conhece. A relação com o resto do mundo é uma teia tão complicada que só contribui para aumentar a angústia da solidão.
É um livro corajoso.
Auster encara de frente a personalidade esquiva do pai. Esmiúça e tenta desesperadamente compreender todos os motivos da sua menos boa relação com ele, fugindo ao sentimentalismo fácil mas também sem cair na frieza da objectividade crua. Procura, acima de tudo racionalizar os sentimentos, compreender a alma humana e, principalmente a sua própria alma. “Todo o livro é uma imagem da solidão” (pág. 153).
Mais do que a morte, o verdadeiro monstro é a solidão.
A morte é apenas um dos momentos em que o monstro se revela.
Excelente tradução.