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quinta-feira, 21 de novembro de 2013

"Este fresco jardim", de Mário Cesariny

(Depois de alguns meses em que as leituras poéticas escassearam, será que o poema voltará a ser possível?)

Este fresco jardim era teu
Com suas terraças para o mundo.
Eram tuas as cores deste céu
E o pequeno pastor, ao fundo.

(in Pena Capital; ed. Assírio & Alvim)

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

"Poema", de Mário Cesariny

Os pássaros de Londres
cantam todo o inverno
como se o frio fosse
o maior aconchego
nos parques arrancados
ao trânsito automóvel
nas ruas da neve negra
sob um céu sempre duro
os pássaros de Londres
falam de esplendor
com que se ergue o estio
e a lua se derrama
por praças tão sem cor
que parecem de pano
em jardins germinando
sob mantos de gelo
como se gelo fora
o linho mais bordado
ou em casas como aquela
onde Rimbaud comeu
e dormiu e estendeu
a vida desesperada
estreita faixa amarela
espécie de paralela
entre o tudo e o nada
os pássaros de Londres
quando termina o dia
e o sol consegue um pouco
abraçar a cidade
à luz razante e forte
que dura dois minutos
nas árvores que surgem
subitamente imensas
no ouro verde e negro
que é sua densidade
ou nos muros sem fim
dos bairros deserdados
onde não sabes não
se vida rogo amor
algum dia erguerão
do pavimento cínzeo
algum claro limite
os pássaros de Londres
cumprem o seu dever
de cidadãos britânicos
que nunca nunca viram
os céus mediterrânicos

(in Pena Capital; ed. Assírio & Alvim)

terça-feira, 17 de setembro de 2013

"shafftsbury avenue", de Mário Cesariny

Vi um anão inglês e fiquei perturbado
desceu-me a chávena ao peito como quem sofre
julgava ter olhos para tudo e não os tive para isto
um anão inglês a atravessar uma rua inglesa
com um fato à inglesa muito curto
e a mãozinha inglesa a dar a dar

Eu que ainda ontem escrevi um poema
sobre os tamanhos fantasmas dos ingleses
as pernas de oceano dos ingleses
os braços florestais dos ingleses
dei um salto para o chão e entornei a bebida sobre o pedinte
que afinal também há nas casas de chá barato

«Dwarf! Dwarf! burning bright»
«In the forest of the night»

Que nome lhe darão na intimidade?
Vic? Jimmy? Christian Dwarf Road?
Deixá-lo-ão sair para o estrangeiro sem ser de circo?
Quem já viu um anão inglês em Sintra?
Mérida?
Ferrara?
Quem apertou o sexo aos ingleses
e lhes pôs estas caras de infinito langor
apertou também a ti?

«Did He smile His worke to see?»
«Did He who made the Lamb make thee?»


Claro que isto são maneiras

Não vivo como o outro, preso pela espinha
aos caudais da verdade.
De um lado Buckingham Palace
do outro o caso do
profundamente humano.
E seria inglês, este anão?

Não seria italiano?

(in Pena Capital; ed. Assírio & Alvim)

terça-feira, 10 de setembro de 2013

"you are welcome to elsinore", de Mário Cesariny



Poema dito por Adolfo Luxúria Canibal, com música de António Rafael


Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte    violar-nos    tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas    portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar

(in Pena Capital; ed. Assírio & Alvim)

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

"urgente", de Mário Cesariny

As bombas matam porque sofrem duma espécie de doença incurável
que as faz ganhar saúde quando as largam no ar
uma vez expostas à lei da gravidade
e por ela arrastadas para o mundo humano
as bombas precisam de explodir tal como uma criança precisa de urinar
até fazerem um lugar onde fiquem
que se não mova    que seja
como um direito a isso
ao pé do deus adulto que lhes deu comida

(in Pena Capital; ed. Assírio & Alvim)

sábado, 17 de agosto de 2013

"Poema", de Mário Cesariny

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto        tão perto        tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco

(in Pena Capital; ed. Assírio & Alvim)

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

"Estação", de Mário Cesariny

Esperar ou vir esperar querer ou vir querer-te
vou perdendo a noção desta subtileza.
Aqui chegado até eu venho ver se me apareço
e o fato com que virei preocupa-me, pois chove miudinho

Muita vez vim esperar-te e não houve chegada
De outras, esperei-me eu e não apareci
embora bem procurado entre os mais que passavam.
Se algum de nós vier hoje é já bastante
como comboio e como subtileza
Que dê o nome e espere. Talvez apareça

(in Pena Capital; ed. Assírio & Alvim)

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

"Pastelaria", de Mário Cesariny

Isaque Ferreira declama "Pastelaria", no programa televisivo Um Poema por Semana (RTP, 2011)

Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante!

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao
        precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade, rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora - ah, lá fora! - rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

(in Nobilíssima Visão; ed. Assírio & Alvim)

quinta-feira, 25 de julho de 2013

"Rua da Bica Duarte Belo", de Mário Cesariny

ESTES PRÉDIOS SÃO QUASE DE GRAÇA
diz a tabuleta encarnada
à gente que passa

E é que às vezes passa uma gente engraçada:
um estudante sem livros e ao lado
um operário desempregado

(in Nobilíssima Visão; ed. Assírio & Alvim)

terça-feira, 23 de julho de 2013

"O poeta chorava...", de Mário Cesariny

O poeta chorava
o poeta buscava-se todo
o poeta andava de pensão em pensão
comia mal tinha diarreias extenuantes
mas buscava uma estrela  (talvez a salvação?)
O poeta era sinceríssimo honesto total
raras vezes tomava o eléctrico
em podendo
voltava
não podendo
ver-se-ia
tudo mais ou menos
a cair de vergonha
mais ou menos
como os ladrões

E agora o poeta começou por rir
rir de vós ó manutensores
da afanosa ordem capitalista
depois comprou jornais foi para casa leu tudo
quando chegou à página dos anúncios
o poeta teve um vómito que lhe estragou
as únicas que ainda tinha
e pôs-se a rir do logro, é um tanto sinistro,
mas é inevitável, é um bem, é uma dádiva.

Tirai-lhe agora os versos que ele próprio despreza,
negai-lhe o amor que ele mesmo abandona,
caçai-o entre a multidão.
Subsistirá. É pior do que isso.
Prendei-o. Viverá de tal forma
que as próprias grades farão causa com ele.
E matá-lo não é solução.
O poeta
O Poeta
O POETA
destroi-vos

(in Nobilíssima Visão; ed. Assírio & Alvim)

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

"História de cão", de Mário Cesariny

(Tropeçando na cultura. Ontem à noite, por motivo que não explano, passei pela Fundação Cupertino de Miranda, em Famalicão, e reparei que lá dentro circulavam várias pessoas; espreitei e constatei que estava prestes a iniciar-se um concerto e um recital de poesia; como tinha uma hora livre, entrei e sentei-me, o que me valeu este poema do Mário Cesariny).

eu tinha um velho tormento
eu tinha um sorriso triste
eu tinha um pressentimento

tu tinhas os olhos puros
os teus olhos rasos de água
como dois mundos futuros

entre parada e parada
havia um cão de permeio
no meio ficava a estrada

depois tudo se abarcou
fomos iguais um momento
esse momento parou

ainda existe a extensa praia
e a grande casa amarela
aonde a rua desmaia

então ainda a noite e o ar
da mesma maneira aquela
com que te viam passar

e os carreiros sem fundo
azul e branca janela
onde pusemos o mundo

o cão atesta esta história
sentado no meio da estrada
mas de nós não há memória

dos lados não ficou nada

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

"Poema podendo servir de posfácio", de Mário Cesariny



ruas onde o perigo é evidente
braços verdes de práticas ocultas
cadáveres à tona da água
girassóis
e um corpo
um corpo para cortar as lâmpadas do dia
um corpo para descer uma paisagem de aves
para ir de manhã cedo e voltar muito tarde
rodeado de anões e de campos de lilases
um corpo para cobrir a tua ausência
como uma colcha
um talher
um perfume

isto ou o seu contrário, mas de certa maneira hiante
e com muita gente à volta a ver o que é
isto ou uma população de sessenta mil almas
devorando almofadas escarlates a caminho
do mar
e que chegam
ao crepúsculo
encostados aos submarinos
isto ou um torso desalojado de um verso
e cuja morte é o orgulho de todos
ó pálida cidade construída
como uma febre entre dois patamares!
vamos distribuir ao domicílio
terra para encher candelabros
leitos de fumo para amantes erectos
tabuinhas com palavras interditas
- uma mulher para este que está quase a perder
o gosto à vida - tome lá -
dois netos para essa velha aí no fim da fila -
não temos mais -
saquear o museu dar um diadema ao mundo e depois
obrigar a repor no mesmo sítio
e para ti e para mim, assentes num espaço útil,
veneno para entornar nos olhos do gigante

isto ou um rosto um rosto solitário como barco em
demanda d eventos calmo para a noite
se nós somos areia que se filtre
a um vento débil entre arbustos pintados
se um propósito deve atingir a sua margem como
as correntes da terra náufragos e tempestade
se o homem das pensões e das hospedarias levanta
a sua fronte de cratera molhada
se na rua o sol brilha como nunca
se por um minuto
vale a pena
esperar
isto ou a alegria igual à simples forma de um pulso
aceso entre a folhagem das mais altas lâmpadas
isto ou a alegria dita o avião de cartas
entrada pela janela saída pelo telhado

ah mas então a pirâmide existe?
ah mas então a pirâmide diz coisas?
então a pirâmide é o segredo de cada um com
o mundo?

sim meu amor a pirâmide existe
a pirâmide diz muitíssimas coisas
a pirâmide é a arte de bailar em silêncio

e em todo o caso

há praças onde esculpir um lírio
zonas subtis de propagação do azul
gestos sem dono barcos sob as flores
uma canção para ouvir-te chegar

(in Manual de Prestidigitação)