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sexta-feira, 1 de agosto de 2014

"Talho", de Jorge Luis Borges

Mais vil do que um bordel,
o talho rubrica a rua como uma afronta.
Sobre o dintel
uma cega cabeça de vaca
preside ao conciliábulo
de carne berrante e mármores finais
com a majestade remota de um ídolo.

(in Obra Poética - Vol. 1; ed. Quetzal, 2012; trad. Fernando Pinto do Amaral)

terça-feira, 6 de maio de 2014

"O Sul", de Jorge Luis Borges

De um de teus pátios ter olhado
as antigas estrelas,
e do banco da sombra ter olhado
essas luzes dispersas
que minha ignorância não aprendeu a nomear
nem a ordenar em constelações,
ter sentido o círculo da água
na secreta cisterna,
o cheiro do jasmim, da madressilva,
o silêncio do pássaro a dormir,
o arco do saguão, a humidade
- essas coisas talvez sejam o poema.

(in Obra Poética - Vol. 1; ed. Quetzal, 2012; trad. Fernando Pinto do Amaral)

terça-feira, 22 de abril de 2014

"A Recoleta", de Jorge Luis Borges

Convencidos da caducidade
por tantas nobres certezas do pó,
demoramo-nos e baixamos a voz
entre as lentas filas de panteões
cuja retórica de mármore e de sombra
promete ou antecipa a desejável
dignidade de ter morrido.
Belos são os sepulcros,
o despido latim e as firmes datas fatais,
a conjunção do mármore e da flor
e as pracetas com frescura de pátios
e os muitos ontens da história
hoje parada e única.
Enganamos essa paz com a morte,
cremos ansiar pelo nosso fim
e ansiamos pelo sonho, a indiferença.
Vibrante nas espadas, na paixão,
adormecida na hera,
somente a vida existe.
O espaço e o tempo são as suas formas,
são instrumentos mágicos da alma,
e quando ela se apagar,
vão consigo apagar-se o espaço, o tempo e a morte,
como ao cessar a luz
caduca o simulacro dos espelhos
que a tarde já foi apagando.
Sombra benigna das árvores,
vento com aves, que nos ramos ondeia,
alma que se dispersa noutras almas,
seria um milagre se deixassem de ser,
milagre incompreensível,
mesmo que a sua imaginária repetição
avilte com horror os nossos dias.
Tudo isto pensei na Recoleta,
lugar das minhas cinzas.

(in Obra Poética - Vol. 1; ed. Quetzal, 2012; trad. Fernando Pinto do Amaral)