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domingo, 18 de outubro de 2015

Excerto do poema "A viagem", de Charles Baudelaire

Saber amargo, o que extraímos da viagem!
O mundo, tão monótono e pequeno, sempre,
Ontem, hoje, amanhã, reflecte a nossa imagem:
Um oásis de horror num deserto de tédio!

É bom partir? ficar? Se podes ficar, fica;
Parte, se for preciso. Um corre, o outro esconde-se
Pra iludir o zeloso e funesto inimigo,
O Tempo!

(excerto de poema "A viagem", VII, in As Flores do Mal; trad. Fernando Pinto do Amaral, ed. Assírio & Alvim, 1996)

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

"O cachimbo", de Charles Baudelaire

Sou o cachimbo de um autor;
Vê-se, ao olhar prà minha cara,
Como a de um abissínio ou cafre,
Que o meu dono é bom fumador.

Quando está repleto de dor
Fumego como uma choupana
Onde alguém cozinha e vai esperando
O regresso do lavrador.

Enlaço e embalo a sua alma
Na movediça rede azul
Que me sobe da boca em fogo

E vou espalhando um forte bálsamo
Que agrada ao coração e cura
Todo o cansaço do seu espírito.

(in As Flores do Mal; trad. Fernando Pinto do Amaral, ed. Assírio & Alvim, 1996)

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

"Os mochos", de Charles Baudelaire

Sob alguns teixos que os abrigam
Lá estão os mochos, enfileiram;
Tal como os deuses estrangeiros,
Dardejam o rubro olhar. Meditam.

Sem se mexer lá ficarão
Até à hora melancólica
Em que, empurrando o oblíquo sol,
As trevas se estabelecerão.

Essa atitude ensina ao sábio
Que neste mundo há que temer
Todo o tumulto e movimento;

O ébrio das sombras que passam
Arrastará sempre o castigo
De outro lugar ter pretendido.

(in As Flores do Mal; trad. Fernando Pinto do Amaral, ed. Assírio & Alvim, 1996)

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

"Os gatos", de Charles Baudelaire

Os férvidos amantes e os austeros sábios
Na idade madura, ambos sabem amar
Os gatos fortes, meigos, orgulho do lar,
Que, tal como eles, são friorentos, sedentários.

Amigos da volúpia e também da ciência,
Procuram o horror das trevas, o silêncio;
E tê-los-ia o Érebo por corcéis fúnebres
Se um dia à servidão dobrassem o orgulho.

Adoptam ao sonhar as nobres atitudes
Das esfinges deitadas nos confins do mundo,
Parecendo adormecer no seu sonho sem fim;

Há mágicas centelhas nos seus rins fecundos
E alguns farrapos de oiro, alguma areia fina,
Estrelando vagamente as místicas pupilas.

(in As Flores do Mal; trad. Fernando Pinto do Amaral, ed. Assírio & Alvim, 1996)

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

"O morto prazenteiro", de Charles Baudelaire

Onde haja caracóis, numa terra fecunda
Onde estenda à vontade o meu velho esqueleto,
Desejo eu mesmo abrir uma cova profunda
E como um tubarão dormir no esquecimento.

Odeio os mausoléus, odeio os testamentos,
E em vez de suplicar as lágrimas do mundo,
Preferia convidar os corvos lazarentos
A sangrar cada naco da carcaça imunda.

Sem ouvidos nem olhos, vermes! companheiros,
Vede a ir ter convosco um morto prazenteiro;
Filhos da podridão, filósofos da estúrdia,

Sobre as minhas ruínas ide sem remorsos
E dizei se ainda existem algumas torturas
Prò meu corpo sem alma e bem morto entre os mortos!

(in As Flores do Mal; trad. Fernando Pinto do Amaral, ed. Assírio & Alvim, 1996)

sábado, 5 de setembro de 2015

[Estava eu numa noite com uma atroz judia], de Charles Baudelaire

Estava eu numa noite com uma atroz judia,
Como ao pé de um cadáver um outro estendido,
E então pus-me a pensar, junto ao corpo vendido,
Nessa triste beleza de que eu prescindia.

E logo lhe evoquei a inata majestade,
A graça do olhar tão cheio de vigor,
Os cabelos, parecendo um elmo perfumado,
Cuja recordação me desperta o amor.

Pois com fervor teria beijado o teu corpo
Desde os viçosos pés até às tranças negras,
Pra te mostrar o cofre das maiores carícias,

Se uma noite num choro espontâneo, sem esforço,
Ó rainha cruel! conseguisses ao menos
Turvar o resplendor dessas frias pupilas.

(in As Flores do Mal; trad. Fernando Pinto do Amaral, ed. Assírio & Alvim, 1996)

sábado, 29 de agosto de 2015

"Sed non satiata", de Charles Baudelaire

Estranha deusa, morena como são as noites,
Com perfumes de almíscar e tabaco havano,
Talvez obra de um mago, um Fausto da savana,
Bruxa de ébano ou filha de vis meias-noites,

Prefiro, em vez de todos os vinhos e do ópio,
O elixir dessa boca onde se pavoneia
O amor; quando pra ti partem os meus desejos
Teus olhos são cisterna onde os tédios afogo.

Por esses olhos negros respira a tua alma,
Ó demônio sem dó! a tua chama acalma!
Que eu não posso abraçar-te nove vezes, qual Estige,

Nem consigo, ai de mim! Megera libertina,
Pra ti quebrar a força e acabar contigo
No teu leito infernal tornar-me Prosérpina!

(in As Flores do Mal; trad. Fernando Pinto do Amaral, ed. Assírio & Alvim, 1996)

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

"O inimigo", de Charles Baudelaire

Foi medonha tormenta a minha mocidade,
Aqui e além cortada por brilhantes sóis;
A chuva e os trovões fizeram tais estragos
Que poucos frutos rubros no jardim me sobram.

E eis-me já em pleno Outono das ideias,
Quando é preciso usar os ancinhos e a pá
Pra arranjar outra vez a terra, após a cheia,
Onde a água escavou, quais tumbas, grandes valas.

E quem sabe se as flores que eu sonho, renovadas,
Poderão encontrar nessa areia lavada
O místico alimento que lhes dê vigor?

- Ó dor! Ó minha dor! O Tempo engole a vida,
E o que nos rói o peito, esse obscuro Inimigo,
Com o sangue que perdemos cresce e ganha força!

(in As Flores do Mal; trad. Fernando Pinto do Amaral, ed. Assírio & Alvim, 1996)

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

"Ao leitor", de Charles Baudelaire

O erro, a mesquinhez, o pecado, a tolice,
Excitam-nos o corpo e ocupam-nos o espírito,
Mas sempre alimentamos remorsos felizes
Como os mendigos fazem aos seus parasitas.

Com pecados teimosos e remissões frouxas,
As nossa confissões largamente cobramos,
E ao caminho da lama, contentes, voltamos,
Crendo com choros vis lavar as nódoas todas.

Na almofada do mal está Satã Trimegisto
Que embala devagar a nossa alma encantada
E até o metal rico da nossa vontade
Vai sendo evaporado por esse alquimista.

Os cordéis que nos puxam, prende-os o Diabo!
Vemos que nos atraem as coisas nojentas;
Sem horror, através das trevas fedorentas,
Ao Inferno descemos, cada dia um passo.

Como um devasso pobre que devora e beija
O seio encarquilhado da velha rameira,
Colhemos, ao passar, clandestino prazer
Que como uma laranja moída esprememos.

Como um milhão de vermes, nas nossas cabeças
Enche-se até fartar um povo de Demónios,
E quando respiramos desce-nos a Morte
Aos pulmões, como um rio de surdos lamentos.

Se o estupro ou o veneno, o incêndio, o punhal
Ainda não enfeitaram com desenhos lindos
A banal talagarça dos nossos destinos,
É porque não mostrou arrojo a nossa alma.

Mas no meio de chacais, panteras ou cadelas,
Escorpiões ou macacos, serpentes, abutres,
Monstros que grasnam, rosnam, rastejam e uivam,
Por entre os nossos vícios, galeria abjecta,

Existe um bem mais feio, mais cruel, imundo!
Que, mesmo recusando gestos ou clamores,
Facilmente faria da terra um destroço
E num simples bocejo engoliria o mundo;

É o Tédio! - Com o olhar chorando sem razão,
Vai fumando o cachimbo e sonha cadafalsos.
Conheces bem, leitor, tal monstro delicado,
- Hipócrita leitor, - meu igual, - meu irmão!

(in As Flores do Mal; trad. Fernando Pinto do Amaral, ed. Assírio & Alvim, 1996)

quinta-feira, 31 de julho de 2008

"À une passante", de C. Baudelaire. Duas propostas de tradução

À une passante

La rue assourdissante autour de moi hurlait.
Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse,
Une femme passa, d'une main fastueuse
Soulevant, balançant le feston et l'ourlet;

Agile et noble, avec sa jambe de statue.
Moi, je buvais, crispé comme un extravagant,
Dans son oeil, ciel livide où germe l'ouragan,
La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.

Un éclair... puis la nuit! — Fugitive beauté
Dont le regard m'a fait soudainement renaître,
Ne te verrai-je plus que dans l'éternité?

Ailleurs, bien loin d'ici! trop tard! jamais peut-être!
Car j'ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,
Ô toi que j'eusse aimée, ô toi qui le savais!

Charles Baudelaire
(As Flores do Mal)

* * *

A uma passante

A rua ia gritando e eu ensurdecia.
Alta, magra, de tudo, dor tão majestosa,
Passou uma mulher que, com mãos sumptuosas,
Erguia e agitava a orla do vestido;

Nobre e ágil, com pernas iguais a uma estátua.
Crispado com um excêntrico, eu bebia, então,
Nos seus olhos, céu plúmbeo onde nasce o tufão,
A doçura que encanta e o prazer que mata.

Um raio… e depois noite! – Efémera beldade
Cujo olhar me fez renascer tão de súbito,
Só te verei de novo na eternidade?

Noutro lugar, bem longe! é tarde! talvez nunca!
Porque não sabes onde vou, nem eu onde ias,
Tu que eu teria amado, tu que bem sabias!

Tradução de Fernando Pinto do Amaral

* * *
A uma transeunte

A rua ensurdecedora em meu redor berrava
Alta, esguia, de luto carregado, dor majestosa,
Um mulher passou, com sua mão faustosa
Erguendo, baloiçando o ramo e a bainha

Ágil e nobre, com sua perna de estátua,
Eu bebia, crispado como extravagante,
No seu olhar, céu lívido onde nasce o furacão,
A doçura que fascina e o prazer que mata

Um raio… em seguida, a noite! __ Beleza fugitiva
Cujo olhar me fez repentinamente renascer,
Só voltarei a ver-te na eternidade?

Algures, bem longe daqui! Demasiado tarde! Nunca talvez!
Eu não sei para onde fugiste, tu não sabes para onde vou,
Tu que eu teria amado, tu que sabias que sim!

Tradução de Maria Gabriela Llansol