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terça-feira, 18 de março de 2014

"Pensando melhor", de A. M. Pires Cabral

Mesmo em tardes muito quentes de Verão,
há sempre uma ave aventureira
que sobrevoa a terra.

(Pensando melhor, o que de facto há
é terra, apenas terra - que a seu tempo
há-se sobrevoar o voo das aves.)
 
(in Gaveta do Fundo; ed. Tinta da China, 2013)

quinta-feira, 6 de março de 2014

"Vento", de A. M. Pires Cabral

I

Toda a noite fez vento sobre os campos.

Rodopiaram folhas mortas nos caminhos,
em busca de refúgio
onde o vento não viesse perturbar
a sua propensão para a inércia.

II

Também eu - folha morta ou em vias disso
que aspira às delícias da imobilidade -
busco algures abrigo contra essa
outra classe de vento que me abrasa,
desinquieta e toca a rebate
sinos sonoros no vazio sem limites
do meu interior.

(in Gaveta do Fundo; ed. Tinta da China, 2013)

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

"Erosão", de A. M. Pires Cabral

Montes arredondados, de tão velhos,
que já destes pão e hoje dais cardos,

dizei qual erosão mais vos magoa:
se a que vos vem do alto
no uivo dos ventos e nas cordas de chuva

– se a do desuso agrário.

(in Gaveta do Fundo; ed. Tinta da China, 2013)

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

"Arte de gritar", de A. M. Pires Cabral

Quisera dizer coisas
que ninguém tivesse dito antes de mim.

Deixar uma pegada sobre a areia intacta,
não sobre outras pegadas que já houvesse lá.

Mas cheguei tarde; os que me precederam
no exercício desta dura arte de gritar

amavam a minúcia, a completude,
nunca deixavam uma tarefa a meio.

Disseram tudo. Deixaram só migalhas susceptíveis
de glosas rasteiras, para eu me entreter

como uma criança pobre brinca com destroços
de brinquedos recuperados do lixo.

E eu digo essas migalhas como quem
escreve a terra em laudas rasuradas.

E escrevê-las-ei mesmo quando
não tenha língua já para as dizer.

(Os poetas entendem-me estes mansos
trocadilhos. Os outros, não importa.)

(in Gaveta do Fundo; ed. Tinta da China, 2013)

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

"Aos meus óculos", de A. M. Pires Cabral

Se um dia vos partirdes, ficarei
mais à mercê do escuro.

Provavelmente não poderei então
nem ler nem escrever nem cortejar
as flores silvestres, as nuvens em castelo,
os pardais disputando uma migalha
— esses frustes amores de fim de tempo.

Deixarei de poder distinguir
um abismo dum simples degrau.

Por isso, vós que sois de vidro quebradiço
como o meu próprio barro,
cuidai-vos em nome de mim.
Paguei-vos, sois meus, deveis-me utilidade.

Faça-se em vós segundo
a minha vontade.

(in Gaveta do Fundo; ed. Tinta da China, 2013)

quarta-feira, 24 de abril de 2013

"Foi para isso que os poetas foram feitos", de A. M. Pires Cabral

semear tempestades
e assegurar que cresçam
foi para isso que os poetas foram feitos

esgrimir com a mais idónea
das espadas: a coragem
foi para isso que os poetas foram feitos

namorar a perfeição
e às vezes alcançá-la
foi para isso que os poetas foram feitos

(in Resumo - a poesia em 2012; ed. Documenta, 2013)

terça-feira, 26 de junho de 2012

"O que diz o rato", de A. M. Pires Cabral

Tenho um destino. Nasci
para roer o silêncio - e vou roê-lo
metodicamente

até que um dia se invertam os papéis
e seja o silêncio a roer-me a mim.

(in Resumo - a poesia em 2011; ed. Documenta, 2012)

sábado, 20 de março de 2010

"A andorinha ou Tudo é relativo", de A. M. Pires Cabral

Da andorinha dificilmente se dirá
que é um animal feroz. Pelo contrário,
convém-lhe adjectivos como grácil.

Mas a grácil andorinha abre
para o mosquito uma boca aterradora.

(in Resumo - a poesia em 2009)