Há momentos da nossa vida que nunca haveremos de esquecer. Não estou a referir-me a datas em que fizemos coisas importantes como, por exemplo, o dia em que acabámos o curso ou nos casámos, mas a acontecimentos que teriam tudo para serem do mais corriqueiro que possa imaginar-se mas que, contra todas as probabilidades, se tornaram marcantes.
Um desses momentos foi a minha primeira aula de Filosofia. Eu tinha quinze anos e à minha frente estava uma das professoras mais brilhantes de quem tive o privilégio de ser aluna e que tinha por hábito não mostrar os dentes nas aulas, muito menos na primeira. Aquela professora tinha por costume – há já vários anos - inaugurar o ano lectivo escolhendo uma vítima a quem colocava uma questão, vítima essa que, invariavelmente, era o desgraçadinho que respondia pelo seu número favorito, o doze.
Naquele ano eu era a tal desgraçadinha. A professora, do alto dos seus metro e oitenta, escreveu no velho quadro de lousa preta uma frase: «a multidão é perversa». Depois, olhando-me sobre os óculos, disse: «Explique, por favor».
Não me lembro exactamente do que pensei, mas sei que me senti ruborescer. Seguiu-se um profundo silêncio apenas entrecortado pelo som abafado das pancadas que a professora dava com o ponteiro no estrado enquanto percorria toda a extensão da sala. Eu bem que engolia em seco, lia e relia a frase escrita no quadro, olhava para o tampo da secretária, para a porta da sala, para as fissuras da parede, mas da minha boca não saiu qualquer som.
Estivemos naquilo uma enormidade de tempo até que, quando faltavam cinco minutos para soar a sineta, a professora perguntou: «Número doze, sabe ou não sabe explicar o sentido daquela frase?». Eu, num misto de alívio e de vergonha, respondi que não, que não sabia. Entre dentes, do estrado soou um «Já podia ter dito», mas ninguém se atreveu sequer a sorrir. No fundo queríamos todos saber o que era isso da Filosofia, o que raio queria dizer «a multidão é perversa» e como se lidava com uma professora que era capaz de nos deixar em suspenso durante quarenta e cinco minutos.
Em duas penadas ficámos elucidados: «Quando inseridas em grupos grandes, principalmente em grupos que lhes permitam manter o anonimato, as pessoas fazem coisas que jamais fariam se estivessem sozinhas ou em grupos pequenos.» Depois perguntou: «Percebeu, número doze?». Eu, a voz quase sumida, lá respondi a medo que sim. A aula terminou com uma exortação que, se mergulhar dentro da minha cabeça, quase consigo ouvir: «Então se percebeu, veja lá se nunca mais se esquece, está bem?».
Eu nunca mais me esqueci, como está bom de ver, e não apenas porque a minha memória para isso contribuiu mas, principalmente, porque a vida se encarregou de mo lembrar inúmeras vezes.
Ainda esta semana me recordei de que a multidão é perversa porque, nas manifestações do 1.º de Maio, num país que ainda há menos de uma semana comemorava a liberdade e a democracia a propósito de uma revolução que teve de excepcional o facto de ser pacífica, um cabeça-de-lista de um partido numas eleições foi insultado e agredido de forma vil e cobarde. Na verdade, como poderia esquecer-me de que a multidão é perversa se, num país que se diz um Estado de Direito, há quem pratique estes actos e ache que daí não vem grande mal ao mundo (porque no fundo ele até merecia umas boas bordoadas pelo que fez) e fique de bem com a sua consciência, no conforto de que está oculto numa turba que lhe garante o anonimato?
De facto, dificilmente poderia esquecer-me de que a perversidade da multidão é o somatório da perversidade de cada um de nós, que continuamos a encolher os ombros e a fingir que não é nada connosco sempre que episódios destes acontecem.
[Banda sonora: The Doors. «People are strange». Do álbum «Strange days». 1967.]
[Também publicado em PnetCrónicas.]
© Marta Madalena Botelho
Um desses momentos foi a minha primeira aula de Filosofia. Eu tinha quinze anos e à minha frente estava uma das professoras mais brilhantes de quem tive o privilégio de ser aluna e que tinha por hábito não mostrar os dentes nas aulas, muito menos na primeira. Aquela professora tinha por costume – há já vários anos - inaugurar o ano lectivo escolhendo uma vítima a quem colocava uma questão, vítima essa que, invariavelmente, era o desgraçadinho que respondia pelo seu número favorito, o doze.
Naquele ano eu era a tal desgraçadinha. A professora, do alto dos seus metro e oitenta, escreveu no velho quadro de lousa preta uma frase: «a multidão é perversa». Depois, olhando-me sobre os óculos, disse: «Explique, por favor».
Não me lembro exactamente do que pensei, mas sei que me senti ruborescer. Seguiu-se um profundo silêncio apenas entrecortado pelo som abafado das pancadas que a professora dava com o ponteiro no estrado enquanto percorria toda a extensão da sala. Eu bem que engolia em seco, lia e relia a frase escrita no quadro, olhava para o tampo da secretária, para a porta da sala, para as fissuras da parede, mas da minha boca não saiu qualquer som.
Estivemos naquilo uma enormidade de tempo até que, quando faltavam cinco minutos para soar a sineta, a professora perguntou: «Número doze, sabe ou não sabe explicar o sentido daquela frase?». Eu, num misto de alívio e de vergonha, respondi que não, que não sabia. Entre dentes, do estrado soou um «Já podia ter dito», mas ninguém se atreveu sequer a sorrir. No fundo queríamos todos saber o que era isso da Filosofia, o que raio queria dizer «a multidão é perversa» e como se lidava com uma professora que era capaz de nos deixar em suspenso durante quarenta e cinco minutos.
Em duas penadas ficámos elucidados: «Quando inseridas em grupos grandes, principalmente em grupos que lhes permitam manter o anonimato, as pessoas fazem coisas que jamais fariam se estivessem sozinhas ou em grupos pequenos.» Depois perguntou: «Percebeu, número doze?». Eu, a voz quase sumida, lá respondi a medo que sim. A aula terminou com uma exortação que, se mergulhar dentro da minha cabeça, quase consigo ouvir: «Então se percebeu, veja lá se nunca mais se esquece, está bem?».
Eu nunca mais me esqueci, como está bom de ver, e não apenas porque a minha memória para isso contribuiu mas, principalmente, porque a vida se encarregou de mo lembrar inúmeras vezes.
Ainda esta semana me recordei de que a multidão é perversa porque, nas manifestações do 1.º de Maio, num país que ainda há menos de uma semana comemorava a liberdade e a democracia a propósito de uma revolução que teve de excepcional o facto de ser pacífica, um cabeça-de-lista de um partido numas eleições foi insultado e agredido de forma vil e cobarde. Na verdade, como poderia esquecer-me de que a multidão é perversa se, num país que se diz um Estado de Direito, há quem pratique estes actos e ache que daí não vem grande mal ao mundo (porque no fundo ele até merecia umas boas bordoadas pelo que fez) e fique de bem com a sua consciência, no conforto de que está oculto numa turba que lhe garante o anonimato?
De facto, dificilmente poderia esquecer-me de que a perversidade da multidão é o somatório da perversidade de cada um de nós, que continuamos a encolher os ombros e a fingir que não é nada connosco sempre que episódios destes acontecem.
[Banda sonora: The Doors. «People are strange». Do álbum «Strange days». 1967.]
[Também publicado em PnetCrónicas.]
© Marta Madalena Botelho