“Cultura material” - uma expressão sem sentido
“Quanto mais os objetos são afastados
dos contextos da vida quotidiana nos quais são produzidos e utilizados – mais
eles dão a impressão de serem objetos estáticos destinados a uma contemplação
desinteressada (como nos museus e galerias) -, mais os processos que lhes deram
origem são ocultados pelo produto ou objeto sob a sua forma final. Temos pois
tendência para procurar a significação do objeto ou da ideia que ele exprime
negligenciando a atividade à qual ele estava originalmente ligado. É
precisamente esta atitude contemplativa que nos leva a considerar os objetos
correntes do nosso ambiente quotidiano como objetos da “cultura material” cuja
significação não se baseia tanto na sua incorporação num uso regular como na
sua função simbólica.”
Tim Ingold
“Marcher Avec Les Dragons”, Bruxelas,
Zones Sensibles (difundido por Les Belles- Lettres), 2013, pp. 216-217
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Na escavação, o arqueólogo depara-se
em regra com objetos (de todas as dimensões) fragmentados, fragmentos esses que
correspondem à penúltima fase da sua vida (a última é obviamente a exumação
pelo próprio arqueólogo e o estudo científico a que procede, além de tudo o que
vem depois na sequência disso...). A vida desses objetos (inteiros, ou já
fragmentados "de origem", isto é, depositados como fragmentos) pode
ter sido longa e "atribulada", ou seja, o objeto sofreu, desde a sua
confecção, variadas vicissitudes de todo o tipo (ou pelo menos assim devemos pressupô-lo
como mais provável).
A própria "fabricação"do
objeto não foi a imposição de uma forma pré-concebida mentalmente pelo artesão
a uma matéria bruta, mas o produto de um complexo jogo de forças, em que o
corpo do artesão e várias circunstâncias em que decorreu esse "fabrico"
interagiram constantemente.
Nós, obviamente, desconhecemos por
completo as etapas deste mais ou menos longo e complexo processo, pelo que é
claro que é impossível reverte-lo até à sua fase 0, ou reconstitui-lo ao longo
das várias etapas. Todavia, seria isso o que mais importaria para a compreensão
do dito objecto (desde um simples vaso a uma localidade inteira).
Significa isso que a arqueologia está
condenada a uma visão estática da realidade com que se depara - é museográfica
por excelência, por mais que queira embalar a realidade objetual com que lida
num certo discurso de dinamismo. Obviamente, essa é a atitude de toda a
objetivação, de toda a ciência: cristalizar os processos dinâmicos da realidade
em processos observáveis. Até se deparar com o princípio de incerteza de
Heisenberg e outros enigmas - estarei a entrar em terreno perigoso?...
Nós, arqueólogos, como parte de uma
atitude museográfica mais geral, tendemos a reduzir o que foi um complexo
processo de vida dos objetos a apenas duas fases do espectro, dois dos seus
extremos, o inicial, e o final. Um, será a ideia (função, simbolismo, etc.) que
teria "presidido" ao objeto, à sua confecção inicial (o que é um
óbvio mentalismo, uma óbvia e tosca projeção no "passado" de uma concepção
contemporânea). A outra, no extremo oposto do espectro, será a que se liga à
atitude de expor o objeto para contemplação, o que se liga a uma óbvio
voyeurismo da sociedade centrada na visão, na prioridade da imagem sobre tudo o
resto (a que a própria tendência fenomenológica na filosofia não escapará, ou
de que será sintoma - a obsessão de captar o vivido no seu aspecto mais
imediato, nu, elementar, directo - como se isso fosse possível...). A essa
contemplação do objecto (que pode ser uma cidade romana inteira como Pompeia,
por exemplo) liga-se um feiticismo óbvio do "objetual", do material,
ao qual depois se sobrepõem, para disfarçar, uma série de narrativas
imaginárias, variáveis de acordo com a formação cultural do arqueólogo (ou do
simples curioso de arqueologia). Sobre uma coisa passada pode dizer-se muita
coisa, porque a coisa é muda e não responde. A arqueologia lembra-me às vezes
um velório, em que cada um diz o que lhe vem à cabeça ou ao sentimento sobre os
restos mortais do defunto.
Enfim, isto é uma caricatura. E
dirige-me muito particularmente à pré-história, a área em que tenho trabalhado.
Eu sou, ou pretendo ser, um arqueólogo. E toda a minha vida tentei ligar a
arqueologia ao resto da cultura, o que é um processo que demora décadas e nunca
estará terminado. Por outro lado, não sou o único - esta ºe decerto uma
preocupação de todos os meus colegas.
Mas quando já não se é mais obrigado
a produzir papers, nomeadamente segundo as regras dos burocratas que nada
pensam excepto nas regras que inventam para impor aos outros, está-se mais
livre para ir diretamente às leituras que importam e às reflexões que de súbito
tornam claro o absurdo pseudo-produtivo de muitos campos do saber e da
aprendizagem.
Eu próprio passei a vida a ensinar
coisas em que já não acredito. Sim, não acredito. Porque a crença, a intuição,
o insight, é a base de tudo.
E a permanente capacidade se uma
pessoa se pôr em causa, até onde puder.
voj nov. 2015, Loures
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