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A arte também é isto, a capacidade de retratar um tema duro com a delicadeza poética de uma história infantil. Não há uma ingenuidade perdida no Verão de Boyta. Apenas uma história de amor infantil ou pré-adolescente de contornos improváveis, bonita por si só.
Não há amor como o primeiro, já se sabe. E o amor é uma descoberta. Do corpo, antes de mais. E o corpo descobre-se enquanto cresce e se transforma. E a segunda longa-metragem de Julia Solomonoff também é sobre o crescimento.
Jorgelita, assim se chama a personagem central, uma maria-rapaz desenquadrada e inquieta, porventura um pouco assustada, mas também curiosa, com a ideia de vir a ser mulher. Mas ainda está longe. Não se trata de uma adolescente, mas apenas de uma criança. Um pouco emancipada, talvez. Consulta os livros de Anatomia do pai, que é médico, e inquieta-se com os mistérios do corpo. Cedo de mais para a ansiedade. Tarda em crescer.
Em vez de ficar fechada na roulotte, nas férias da mãe, prefere ir para o campo, para as férias do pai. É por aí que se cruza com Mário, o belo filho do caseiro, pelo qual se apaixona como uma criança. Mas se há mistérios físicos universais, o de Mário revela-se peculiar. É que o rapaz ágil e forte afinal é... uma rapariga. O tamanho do clitóris terá levado os pais ao engano, logo de nascença.
Mas o que isto tem de belo é que Julia Solomonoff não faz do filme um dramalhão. Nem sequer sobressai a difícil questão da identidade. Porque o que realmente conta é a inocente relação entre as duas personagens, numa história de Verão.
Apesar do filme ter passado em festivais gay e lésbicos, e ter ganho o próprio Queer Lisboa, a questão homossexual é tangencial para não dizer rebuscada. Existe uma certa hibridez, mas a questão é outra e a expressão 'opção sexual' adquire um sentido mais literal.
Assim como a ideia de crescer nas férias. No tempo em que há tempo para as crianças crescerem mais depressa. Jorgelita transforma-se e já não é a mesma quando regressa às férias da mãe. Há um salto e uma afirmação feminina quando recusa o diminutivo: "O meu nome não é Jorge, é Jorgelita". Mas a questão da identidade de Mário fica para mais tarde. Ele cresce e galopa, mas isso já está fora do filme, não o conseguimos apanhar.
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Manuel Halpern, Visão
Uma história intimista numa Argentina cheia de imensidão. Duas crianças em crise de crescimento, sem sordidez nenhuma, nem sentimentalismos piegas. Apenas confusão, nostalgia e a delicadeza das pequenas descobertas e dos grandes desacertos
Há sempre alturas na vida em que se atravessa uma ponte. Talvez a mais drástica, mais violenta, mais hormonal seja aquela travessia, por acaso, muito pouco gradual, da adolescência. Num dia somos crianças no outro já não somos nem crianças, nem adultos - mas qualquer coisa de intermédio. E este estado intermédio é tramado. E deixa tantas memórias, tantos traumas, tantas marcas, para além daquelas superficiais do acne. Mas pode ser duro e brusco, sobretudo quando uma mente de criança ainda não está preparada para albergar um corpo desproporcionado de adulto cheio de glândulas e secreções genéticas que se anunciam, constrangem e chamam a atenção.
Mas todos, mais cedo ou mais tarde, temos de atravessar a ponte, são rituais de iniciação. E geralmente, sabe-se lá explicar porquê, esses rituais ocorrem no verão, nesses pausas que dantes pareciam enormes, entre os anos lectivos. E é assim que a segunda longa da argentina Júlia Solomonoff começa. Com os tempos de estiramento, de tédio, de langor, de calor que só nas férias acontecem. E também de segredos, de pequenos acontecimentos, de mudanças, de sinais... Neste aspecto, no de transmitir as ambiências, os quebrantos das férias dos adolescentes, "O Último Verão de Boyita" é admirável. Toda a gente deve ter recordações assim. Pelos menos, a quem teve alguns privilégios na vida, a primeira parte do filme, que propositadamente se delonga e dilata, é ternamente reconhecível.
Depois há uma menina, Jorgelina, (está magnífico o trabalho direcção de actores dos miúdos) que ainda não é crescida como a irmã, e que se sente excluída, um ser à parte, à margem do clube - da irmã, das amigas, dos segredos delas. A irmã mais velha, já assente no seu estatuto de adolescente quer privacidade que é um dos primeiros sinais do crescimento. A partir daí já nada volta a ser o mesmo.
Não há amor como o primeiro, já se sabe. E o amor é uma descoberta. Do corpo, antes de mais. E o corpo descobre-se enquanto cresce e se transforma. E a segunda longa-metragem de Julia Solomonoff também é sobre o crescimento.
Jorgelita, assim se chama a personagem central, uma maria-rapaz desenquadrada e inquieta, porventura um pouco assustada, mas também curiosa, com a ideia de vir a ser mulher. Mas ainda está longe. Não se trata de uma adolescente, mas apenas de uma criança. Um pouco emancipada, talvez. Consulta os livros de Anatomia do pai, que é médico, e inquieta-se com os mistérios do corpo. Cedo de mais para a ansiedade. Tarda em crescer.
Em vez de ficar fechada na roulotte, nas férias da mãe, prefere ir para o campo, para as férias do pai. É por aí que se cruza com Mário, o belo filho do caseiro, pelo qual se apaixona como uma criança. Mas se há mistérios físicos universais, o de Mário revela-se peculiar. É que o rapaz ágil e forte afinal é... uma rapariga. O tamanho do clitóris terá levado os pais ao engano, logo de nascença.
Mas o que isto tem de belo é que Julia Solomonoff não faz do filme um dramalhão. Nem sequer sobressai a difícil questão da identidade. Porque o que realmente conta é a inocente relação entre as duas personagens, numa história de Verão.
Apesar do filme ter passado em festivais gay e lésbicos, e ter ganho o próprio Queer Lisboa, a questão homossexual é tangencial para não dizer rebuscada. Existe uma certa hibridez, mas a questão é outra e a expressão 'opção sexual' adquire um sentido mais literal.
Assim como a ideia de crescer nas férias. No tempo em que há tempo para as crianças crescerem mais depressa. Jorgelita transforma-se e já não é a mesma quando regressa às férias da mãe. Há um salto e uma afirmação feminina quando recusa o diminutivo: "O meu nome não é Jorge, é Jorgelita". Mas a questão da identidade de Mário fica para mais tarde. Ele cresce e galopa, mas isso já está fora do filme, não o conseguimos apanhar.
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Manuel Halpern, Visão
Uma história intimista numa Argentina cheia de imensidão. Duas crianças em crise de crescimento, sem sordidez nenhuma, nem sentimentalismos piegas. Apenas confusão, nostalgia e a delicadeza das pequenas descobertas e dos grandes desacertos
Há sempre alturas na vida em que se atravessa uma ponte. Talvez a mais drástica, mais violenta, mais hormonal seja aquela travessia, por acaso, muito pouco gradual, da adolescência. Num dia somos crianças no outro já não somos nem crianças, nem adultos - mas qualquer coisa de intermédio. E este estado intermédio é tramado. E deixa tantas memórias, tantos traumas, tantas marcas, para além daquelas superficiais do acne. Mas pode ser duro e brusco, sobretudo quando uma mente de criança ainda não está preparada para albergar um corpo desproporcionado de adulto cheio de glândulas e secreções genéticas que se anunciam, constrangem e chamam a atenção.
Mas todos, mais cedo ou mais tarde, temos de atravessar a ponte, são rituais de iniciação. E geralmente, sabe-se lá explicar porquê, esses rituais ocorrem no verão, nesses pausas que dantes pareciam enormes, entre os anos lectivos. E é assim que a segunda longa da argentina Júlia Solomonoff começa. Com os tempos de estiramento, de tédio, de langor, de calor que só nas férias acontecem. E também de segredos, de pequenos acontecimentos, de mudanças, de sinais... Neste aspecto, no de transmitir as ambiências, os quebrantos das férias dos adolescentes, "O Último Verão de Boyita" é admirável. Toda a gente deve ter recordações assim. Pelos menos, a quem teve alguns privilégios na vida, a primeira parte do filme, que propositadamente se delonga e dilata, é ternamente reconhecível.
Depois há uma menina, Jorgelina, (está magnífico o trabalho direcção de actores dos miúdos) que ainda não é crescida como a irmã, e que se sente excluída, um ser à parte, à margem do clube - da irmã, das amigas, dos segredos delas. A irmã mais velha, já assente no seu estatuto de adolescente quer privacidade que é um dos primeiros sinais do crescimento. A partir daí já nada volta a ser o mesmo.
A menina que ainda não é mas também já deixou de ser abandona as férias da praia com a mãe e a irmã e isola-se com o pai numa quinta, cheia de animais, cavalos, imensidão, e uma brutidão especial, de vida e morte, que o campo tem.
O filho da caseira desenvolve um crescimento ainda mais atribulado, vai-se deslindando subtilmente ao longo do filme. É um rapaz que menstrua, e deixa um rastro vermelho na manta em que se senta em cima da sela do cavalo. Não é só o crescimento normal que o atormenta. É um crescimento avariado, de glândulas e hiperplasias biologicamente equivocadas. E é o encontro entre Gerojelina e este miúdo/miúda e as várias formas como os que o/a rodeiam reagem, que a fazem crescer e tomar consciência da sua identidade.
É trágico, mas subtilmente bonito ao mesmo tempo. E muito comovente, também. A forma como a virilidade arcaica do pai nega aquele filho que tem sintomas de rapariga. O olhar temeroso da mãe que preferia continuar a resguardar a situação. O pai de Jorgelina, o dono da quinta, que é médico, e encara a questão de um ponto de vista absolutamente clínico. A conversa da mãe de Jorgelina com as amigas que transforma o caso numa fofoca de praia. E o olhar da miúda, em transição, a única capaz de aceitar a situação. Porque também ela é um ser em mutação.
O filme ganhou recentemente o prémio do Festival Queer Lisboa, mas a temática tem muito mais a ver com o crescimento e com a adolescência do que propriamente com questões de identidade sexual. Questões humanas, em suma.
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Ana Margarida Carvalho, Visão
Ana Margarida Carvalho, Visão
Título Original: El último verano de la Boyita
Realização: Julia Solomonoff
Argumento: Julia Solomonoff
Direcção de Fotografia: Julia Solomonoff e Luci Bonelli
Música: Sebastián Escofett
Interpretação: Guadalupe Alonso, Nicolás Treise, Mirella Pascual, Gabo Correa
Origem: Argentina/Espanha/França
Ano: 2009
Duração: 93'
Classificação: M/12
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