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ÚLTIMO FILME - 6ªf, 27, 22h, Claustros do Museu Municipal. Cinema ao ar livre!

Paris, 1931. Hugo Cabret é um miúdo que vive nas passagens ignoradas que se escondem por trás das paredes da Gare Montparnasse. Órfão, com uma obsessão por pôr em funcionamento um velho autómato que é a única ligação que o mantém ao defunto pai, constantemente perseguido pelo inspetor da Gare e o seu negro mastim (sempre atrás de crianças desamparadas que por ali vagueiam – para as enviar para o orfanato), Hugo descobre, num irascível lojista de um pequeno comércio de doces e brinquedos, um homem de quem a opinião-pública teria perdido o rasto - Georges Méliès, o pioneiro cineasta de "Le Voyage Dans la Lune". E sabe que ele o pode ajudar a pôr o seu autómato de novo operacional. É esta a base do novo filme de Scorsese, superprodução usando tudo o que o estado da arte dos efeitos digitais pode proporcionar e ainda toda a magnificência cenográfica que o dinheiro da grande indústria consegue garantir.

A história de Méliès que nele se delineia é, aliás, muito próxima da verdade. No final do século XIX, Méliès fora um bem-sucedido ilusionista com teatro próprio, em Paris, sempre muito interessado em descobertas técnicas que pudesse incorporar nos seus espetáculos. Utilizara, aliás, aparelhos precursores do cinematógrafo dos Lumière - não admira que tenha sido convidado para a histórica sessão de 28 de dezembro de 1895 na cave do Salão Indiano do Grand Café, o nascimento do cinema. Entusiasmou-se com a novidade e, dizem as lendas, terá, ali mesmo, querido comprar um aparelho, no que foi dissuadido pelo pai Lumière que predisse nulo valor comercial para a invenção. Mas Méliès não desiste e vai a Londres adquirir um animatógrafo de Paul com o qual começa a fazer projeções no seu teatro. Em junho de 1896 roda o seu primeiro filme e lança-se na construção de um estúdio em vidro, numa propriedade que possuía em Montreuil, o primeiro em todo o mundo a possuir alçapões (como nos palcos de teatro) e maquinaria.

Nós hoje identificamos Méliès como o mago dos primeiros efeitos especiais, do fantástico, o pai da ficção científica no cinema. A verdade é que dos quase seiscentos filmes que terá rodado, a maior parte seguiu os cânones da época: atualidades (bastas vezes 'reconstituídas'), cenas de quotidiano, filmes históricos. O sucesso financeiro pleno da produção de filmes só acontece na viragem do século, quando obras como "Le Voyage Dans la Lune" são vendidas internacionalmente. Os negócios de Méliès estendem-se a Londres, Berlim, Barcelona, Estados Uni¬dos, América Latina. Faz mesmo construir um segundo estúdio, em 1907. Pouco depois, todavia, a mudança nos gostos do público põe a sua produção em crise. Ainda tenta seguir a onda (produz mesmo alguns westerns, dirigidos por um irmão), mas falha. E em 1913 cessa definitivamente de fazer filmes.

Nos anos seguintes atravessa graves problemas financeiros que culminam, em 1923, com a venda da propriedade de Montreuil. Méliès, ao verificar que os filmes tinham encolhido e eram improjetáveis, queima-os. Centenas são ainda vendidos para recuperar o nitrato de prata. Para sobreviver, volta ao ilusionismo ambulante, mas acaba por até isso abandonar quando reencontra uma velha atriz dos seus filmes e sua ex-amante - Fanny Manieux - que tem uma loja de doces e brinquedos na Gare Montparnasse. Vai viver com ela (casam em dezembro de 1925) e fica a trabalhar no pequeno comércio. Tem 64 anos.

Méliès está muito pobre mas não ignoto. Escreve na imprensa dedicada ao ilusionismo e ao cinema. Mantém contactos. Em 1929 uma gala em sua homenagem é organizada em Paris - e são projetados alguns filmes, reencontrados numa queijaria do château de Jeufosse. Começava a recuperação das obras de Méliès que dura até aos nossos dias (em 2011, um dos acontecimentos do Festival de Cannes , foi a exibição de uma cópia restaurada e tintada manualmente de "Le Voyage Dans la Lune"). Enfim, em 1931, um banquete em sua homenagem e a condecoração com a Legião de Honra selam o reconhecimento público que lhe vai proporcionar um fim de vida confortável.



O filme de Scorsese começa exatamente nesse ano de 1931. É a adaptação fiel de um livro infanto-juvenil de Brian Selznick, publicado em 2007, uma muito original novela gráfica - metade texto metade grandes ilustrações a lápis a toda a página ou, muitas vezes, ocupando mesmo um plano inteiro (edição portuguesa da Gailivro). É uma história contada por imagens (um dos pontos de honra do filme é o respeito pela iconografia de Selznick) sobre um personagem mítico da imagerie do século XX e tendo como referência todo um conjunto de personagens da literatura a que o cinema dera um estatuto popular vasto e planetário. Não é difícil ver no mundo labiríntico e secreto onde Hugo vive reminiscências das torres e passagens ocultas da catedral de Notre-Dame de Paris onde habita Quasimodo (que todos os que viram o filme de Dieterle hão de sempre figurar nos traços de Charles Laughton) ou dos corredores e subterrâneos misteriosos por onde erra a tragédia do desfigurado génio musical de "O Fantasma da Ópera" (que, muito antes de Gerard Butler na versão cantante, assustara meio mundo no corpo de Lon Chaney e Claude Rains) e há, no interior do livro, muitas alusões concretas ao mundo do cinema (desde o começo, onde nos convidam a entrar no filme como num longo movimento de câmara - que, aliás, Scorsese, virtuosamente, materializa). O realizador não fez mais do que acentuar este aspeto, nomeadamente tornando a personagem do inspetor um émulo de Jacques Tati, no porte, no modo como se move, até no quase mutismo, o seu falar sendo mais constituído por sons a fazer lembrar a língua francesa que por palavras e diálogos. Mas onde a cinefilia deste filme se exacerba até à comovência é quando Scorsese reconstrói o estúdio de vidro de Montreuil e nele figura a rodagem de "Le Royaume des Fées", em 1903 - através de um tanque com água, peixes e crustáceos, para dar a sensação de estar debaixo de água, exatamente como Méliès fizera. Subitamente, sentimos o tem¬po a rebobinar, sentimo-nos presentes num instante mágico. Só que, agora, Scorsese usa o 3D e a candura do processo original artilha-se com a jubilosa tecnologia dos dias de hoje. É uma festa! Magnífica for¬ma de nos mostrar que o gesto fundador de inventar mundos fantásticos continua vivo e de apostar – e aqui é o Scorsese preocupado com a preservação patrimonial dos filmes que emerge - que mesmo quando os filmes parecem, de todo, perdidos, há sempre a hipótese de uma lata ignorada num esconso, num sótão, numa prateleira de arquivo, onde persistem as imagens de que os restauradores das cinematecas e dos laboratórios hão de saber, amorosamente, cuidar. É que as veras imagens fabricadas por Méliès também entram em cena e, por Deus!, ganham um estremecimento como há muito não lhe associávamos. E quase escuto, garanto que quase escuto, a voz acelerada, entusiasta e entusiasmante, de Scorsese a detalhar o que vemos.

Um dia tive a sorte de o ouvir ao vivo, no Festival de Veneza, onde foi apresentar uma magnificente cópia de "Johnny Guitar", restaurada com o seu patrocínio. E o que devia ser uma rápida apresentação de circunstância, tornou-se quase uma master class de cinema. É que Scorsese começou a falar do filme e a empolgar-se - e nunca mais parava. Nem ele se calava nem a sala plena queria que ele se calasse, presa de um saber olhar cinema capaz de comunicar a sua própria inteligência e paixão. Mas o cumprimento de horários era imperioso e acabou por levar alguém da organização a subir ao palco e, com bonomia, convidá-lo a terminar. Scorsese levou uma memorável salva de palmas. Inteligência e paixão idênticas se encontram nas duas séries documentais que dirigiu tendo o cinema como objeto -"Uma Viagem Pessoal com Martin Scorsese Sobre Cinema Americano" (1995) e "A Minha Viagem a Itália" (1999). E neste filme.



Basta ver o começo de "A Invenção de Hugo", os vertiginosos planos-sequências com a câmara pers-guindo o pequeno protagonista pelo labiríntico ventre dos relógios da Gare Montparnasse, para que o espectador, um sorriso estampado no rosto e os olhos muito abertos de maravilhamento, se pergunte: “Como é que ele fez isto?”. Deve ter sido essa a interrogação mais comum que fascinou o ingénuo e espantado público das fitas de Méliès, há mais de cem anos, quando as cabeças inchavam como balões soprados, quando pessoas desapareciam numa ex¬plosão de fumo, quando uma nave em forma de bala entrava pelo olho do rosto da Lua. Encontramos em "A Invenção de Hugo" um apelo primordial à fantasia que une um dos maiores cineastas vivos ao fundador do cinema enquanto passaporte para o imaginário sem limites. É um elo feito da vontade de maravilhamento que há de ser sempre razão matricial para que alguém se torne cultor da religião da cinefilia. O encantamento da sala escura e da viagem para mun¬dos fantásticos é o laço que nos prende, só depois alguns de nós descobrem gostar de Dreyer, de Bu¬ñuel ou de Mizoguchi. O que faz de "A Invenção de Hugo" um objeto para amar sem medida é que esse fascínio primevo e a cinefilia longamente meditada são o indistinto material que o constitui. Scorsese consegue ter a frescura que simula a disponibilidade infantil para o deslumbramento e o fundo sedimento que mais de um século de cinema foi depositando. E isso é muito raro.

Jorge Leitão Ramos, Expresso



Título Original: Hugo
Realização: Martin Scorsese
Argumento: John Logan, no livro "The Invention of Hugo Cabret" de Brian Selznick
Fotografia: Robert Richardson
Montagem: Thelma Schoonmaker
Música: Howard Shore
Interpretação: Asa Butterfield, Chloe Grace Moretz, Ben Kingsley, Sacha Baron Cohen, Jude Law
Origem: EUA
Ano: 2011
Duração: 127’

Sócios CCF 2€, Estudantes 3,5€, Restante 4€

O primeiro grande filme de Scorsese - MEAN STREETS, de 1973. Nunca viu? É na sede, 4ªf, 21h30, entrada livre.

UM dos filmes vividos por David Gilmour e o seu filho em Clube de Cinema (livro que foi apresentado por Graça Lobo).

OS CAVALEIROS DO ASFALTO foi a contribuição de Scorsese para lançar mais uma pedra contra Hollywood e com ela ajudar a reconstrução de Hollywood. MOVIE-BRATS, a geração de que fez parte com Coppola, Spielberg e Lucas, alcançava aqui um dos seus mais importantes títulos e firmava um dos seus mais carismáticos rostos: o de Robert de Niro.



Não é o primeiro filme dirigido por Scorsese, mas é o filme que o tornou notado como um dos jovens cineastas que emergiam no princípio dos anos 70, para depressa dominarem o panorama do cinema americano. Por isso, se quisermos utilizar o termo no seu sentido original, bem podemos afirmar tratar-se da sua obra-prima. Scorsese vinha cheio de vontade de cinema e o que é mais impressionante em Mean Streets é a evidência de um talento explosivo e multifacetado, ainda a disparar em díspares direcções, mas já a saber dar uma tonalidade forte ao cinema que lhe saía das mãos. Nisso, esta fita é porventura um protótipo que todos os candidatos a cineastas deveriam saber de cor.

À partida, uma história quase étnica, um grupo de amigos, na casa dos 20 anos, em Little Italy, que querem ser alguém: «gangsters», extorsionistas, pistoleiros, homens de mão - ou tão-só dirigir um restaurante. Mas, na realidade, como se tornaria quase uma norma na obra futura de Scorsese, uma história de pecado e redenção, através do personagem interpretado por Harvey Keitel que tenta segurar o amigo de se perder - e com ele acaba por caminhar para o abismo (e talvez, com isso, ganhar uma salvação que não é deste mundo mas do reino onde mora Francisco de Assis).


Scorsese filma esse mundo com um espantoso sentido de captação da realidade vivida (mesmo se muito do filme foi rodado em Los Angeles, o que desde logo indica que os processos do cineasta não são minimamente devedores da veracidade dos locais, mas de uma verdade outra, mais essencial), mesclando complicados movimentos de câmara, com efeitos de real assombrosos (ver a sequência do baile), utilizando os actores ora para erguerem um texto definido ora para se entregarem às volúpias da improvisação com mote. Scorsese usa, assim, uma multiplicidade de técnicas díspares, mas consegue o milagre de as harmonizar numa narrativa poderosa e vorazmente cinematográfica. Para tanto, útil será sublinhar o contributo dos actores, quase todos em princípio de carreira, como o realizador, todos eles com igual fome de notoriedade (foi a estreia de Amy Robinson, que depois se tomaria produtora, foi Mean Streets que firmou Robert De Niro - no ano seguinte ganharia o seu primeiro óscar com O Padrinho - Parte 2, de Coppola - assim como Harvey Keitel).
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Jorge Leitão Ramos, Expresso, 16/9/95


Os Cavaleiros do Asfalto é simultaneamente a conclusão dos anos de formação de Martin Scorsese e o seu primeiro grande filme. Pela última vez, ele usa material directamente autobiográfico e apoia-se num argumento que, mesmo tendo passado por inúmeras mãos - Mardik Martin ou Jay Cocks provém, antes de mais, da sua experiência. As cenas que mostram Charlie a rezar, as relações entre os jovens que vacilam perante uma carreira de bandidos, tudo remete para os registos que Scorsese fez da sua infância e da sua juventude.

Ele imprime a este material íntimo a marca de um grande cineasta muito seguro já da sua expressão, capaz de inventar longos planos fluidos para controlar uma desordem caótica numa sala de bilhar. Uma maneira de utilizar o movimento que não somente acompanha a acção, mas também a acelera. Em Os Cavaleiros do Asfalto há muitas figuras que se tomaram lugares-comuns do cinema popular - a utilização de câmara lenta fora de tempo, emprego da música, diálogos feitos de três palavras gritadas e repetidas incessantemente - que mal conseguimos imaginar, hoje em dia, o impacte que teve na época. Esta nova gramática da violência combina-se com uma inquietação metafísica impar em relação aos contemporâneos de Scorsese, mais preocupados com os comentários sociais. Último traço distintivo, Os Cavaleiros do Asfalto, filme ancorado na realidade contemporânea, é também salpicado pela História do Cinema em todas as suas formas de expressão. Descortinam-se excertos de O Túmulo de Ligeia (1965), uma das adaptações de Poe por Roger Corman, de A Desaparecida (1956), de John Ford, e de Corrupção (1953), de Fritz Lang.


O filme fica concluído no Verão de 1973. É acolhido com entusiasmo no festival de Nova Iorque. No ano seguinte, é seleccionado para a Quinzena dos Realizadores, em Cannes. Para grande alegria de Scorsese, a Warner aceita distribuí-lo e, nos Estados Unidos, Os Cavaleiros do Asfalto estreia-se em Outubro de 1973, sob a chancela que foi a dos grandes "filmes negros", Pauline Kael, a critica do New Yorker, conselheira da Nova Hollywood desde que defendeu Bonnie & Clyde contra o Sistema encarnado por Bosley Crowthers, o velho critico do New York Times, faz um panegírico do filme, dando a Os Cavaleiros do Asfalto o título de "melhor filme americano do ano".
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Thomas Sotinel, Martin Scorsese – Colecção Grandes Realizadores, Cahiers du Cinéma/Público



Título Original: Mean Streets
Realização: Martin Scorsese,
Argumento: Martin Scorsese, Mardik Martin
Montagem: Sidney Levin
Fotografia: Kent L. Wakeford
Interpretação: Robert De Niro, Harvey Keitel, David Proval, Amy Robinson, Richard Romanus, Cesare Danova
Origem: EUA
Ano: 1973
Duração: 112’



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