Paris, 1931. Hugo Cabret é um miúdo que vive nas passagens ignoradas que se escondem por trás das paredes da Gare Montparnasse. Órfão, com uma obsessão por pôr em funcionamento um velho autómato que é a única ligação que o mantém ao defunto pai, constantemente perseguido pelo inspetor da Gare e o seu negro mastim (sempre atrás de crianças desamparadas que por ali vagueiam – para as enviar para o orfanato), Hugo descobre, num irascível lojista de um pequeno comércio de doces e brinquedos, um homem de quem a opinião-pública teria perdido o rasto - Georges Méliès, o pioneiro cineasta de "Le Voyage Dans la Lune". E sabe que ele o pode ajudar a pôr o seu autómato de novo operacional. É esta a base do novo filme de Scorsese, superprodução usando tudo o que o estado da arte dos efeitos digitais pode proporcionar e ainda toda a magnificência cenográfica que o dinheiro da grande indústria consegue garantir.
A história de Méliès que nele se delineia é, aliás, muito próxima da verdade. No final do século XIX, Méliès fora um bem-sucedido ilusionista com teatro próprio, em Paris, sempre muito interessado em descobertas técnicas que pudesse incorporar nos seus espetáculos. Utilizara, aliás, aparelhos precursores do cinematógrafo dos Lumière - não admira que tenha sido convidado para a histórica sessão de 28 de dezembro de 1895 na cave do Salão Indiano do Grand Café, o nascimento do cinema. Entusiasmou-se com a novidade e, dizem as lendas, terá, ali mesmo, querido comprar um aparelho, no que foi dissuadido pelo pai Lumière que predisse nulo valor comercial para a invenção. Mas Méliès não desiste e vai a Londres adquirir um animatógrafo de Paul com o qual começa a fazer projeções no seu teatro. Em junho de 1896 roda o seu primeiro filme e lança-se na construção de um estúdio em vidro, numa propriedade que possuía em Montreuil, o primeiro em todo o mundo a possuir alçapões (como nos palcos de teatro) e maquinaria.
Nós hoje identificamos Méliès como o mago dos primeiros efeitos especiais, do fantástico, o pai da ficção científica no cinema. A verdade é que dos quase seiscentos filmes que terá rodado, a maior parte seguiu os cânones da época: atualidades (bastas vezes 'reconstituídas'), cenas de quotidiano, filmes históricos. O sucesso financeiro pleno da produção de filmes só acontece na viragem do século, quando obras como "Le Voyage Dans la Lune" são vendidas internacionalmente. Os negócios de Méliès estendem-se a Londres, Berlim, Barcelona, Estados Uni¬dos, América Latina. Faz mesmo construir um segundo estúdio, em 1907. Pouco depois, todavia, a mudança nos gostos do público põe a sua produção em crise. Ainda tenta seguir a onda (produz mesmo alguns westerns, dirigidos por um irmão), mas falha. E em 1913 cessa definitivamente de fazer filmes.
Nos anos seguintes atravessa graves problemas financeiros que culminam, em 1923, com a venda da propriedade de Montreuil. Méliès, ao verificar que os filmes tinham encolhido e eram improjetáveis, queima-os. Centenas são ainda vendidos para recuperar o nitrato de prata. Para sobreviver, volta ao ilusionismo ambulante, mas acaba por até isso abandonar quando reencontra uma velha atriz dos seus filmes e sua ex-amante - Fanny Manieux - que tem uma loja de doces e brinquedos na Gare Montparnasse. Vai viver com ela (casam em dezembro de 1925) e fica a trabalhar no pequeno comércio. Tem 64 anos.
Méliès está muito pobre mas não ignoto. Escreve na imprensa dedicada ao ilusionismo e ao cinema. Mantém contactos. Em 1929 uma gala em sua homenagem é organizada em Paris - e são projetados alguns filmes, reencontrados numa queijaria do château de Jeufosse. Começava a recuperação das obras de Méliès que dura até aos nossos dias (em 2011, um dos acontecimentos do Festival de Cannes , foi a exibição de uma cópia restaurada e tintada manualmente de "Le Voyage Dans la Lune"). Enfim, em 1931, um banquete em sua homenagem e a condecoração com a Legião de Honra selam o reconhecimento público que lhe vai proporcionar um fim de vida confortável.
O filme de Scorsese começa exatamente nesse ano de 1931. É a adaptação fiel de um livro infanto-juvenil de Brian Selznick, publicado em 2007, uma muito original novela gráfica - metade texto metade grandes ilustrações a lápis a toda a página ou, muitas vezes, ocupando mesmo um plano inteiro (edição portuguesa da Gailivro). É uma história contada por imagens (um dos pontos de honra do filme é o respeito pela iconografia de Selznick) sobre um personagem mítico da imagerie do século XX e tendo como referência todo um conjunto de personagens da literatura a que o cinema dera um estatuto popular vasto e planetário. Não é difícil ver no mundo labiríntico e secreto onde Hugo vive reminiscências das torres e passagens ocultas da catedral de Notre-Dame de Paris onde habita Quasimodo (que todos os que viram o filme de Dieterle hão de sempre figurar nos traços de Charles Laughton) ou dos corredores e subterrâneos misteriosos por onde erra a tragédia do desfigurado génio musical de "O Fantasma da Ópera" (que, muito antes de Gerard Butler na versão cantante, assustara meio mundo no corpo de Lon Chaney e Claude Rains) e há, no interior do livro, muitas alusões concretas ao mundo do cinema (desde o começo, onde nos convidam a entrar no filme como num longo movimento de câmara - que, aliás, Scorsese, virtuosamente, materializa). O realizador não fez mais do que acentuar este aspeto, nomeadamente tornando a personagem do inspetor um émulo de Jacques Tati, no porte, no modo como se move, até no quase mutismo, o seu falar sendo mais constituído por sons a fazer lembrar a língua francesa que por palavras e diálogos. Mas onde a cinefilia deste filme se exacerba até à comovência é quando Scorsese reconstrói o estúdio de vidro de Montreuil e nele figura a rodagem de "Le Royaume des Fées", em 1903 - através de um tanque com água, peixes e crustáceos, para dar a sensação de estar debaixo de água, exatamente como Méliès fizera. Subitamente, sentimos o tem¬po a rebobinar, sentimo-nos presentes num instante mágico. Só que, agora, Scorsese usa o 3D e a candura do processo original artilha-se com a jubilosa tecnologia dos dias de hoje. É uma festa! Magnífica for¬ma de nos mostrar que o gesto fundador de inventar mundos fantásticos continua vivo e de apostar – e aqui é o Scorsese preocupado com a preservação patrimonial dos filmes que emerge - que mesmo quando os filmes parecem, de todo, perdidos, há sempre a hipótese de uma lata ignorada num esconso, num sótão, numa prateleira de arquivo, onde persistem as imagens de que os restauradores das cinematecas e dos laboratórios hão de saber, amorosamente, cuidar. É que as veras imagens fabricadas por Méliès também entram em cena e, por Deus!, ganham um estremecimento como há muito não lhe associávamos. E quase escuto, garanto que quase escuto, a voz acelerada, entusiasta e entusiasmante, de Scorsese a detalhar o que vemos.
Um dia tive a sorte de o ouvir ao vivo, no Festival de Veneza, onde foi apresentar uma magnificente cópia de "Johnny Guitar", restaurada com o seu patrocínio. E o que devia ser uma rápida apresentação de circunstância, tornou-se quase uma master class de cinema. É que Scorsese começou a falar do filme e a empolgar-se - e nunca mais parava. Nem ele se calava nem a sala plena queria que ele se calasse, presa de um saber olhar cinema capaz de comunicar a sua própria inteligência e paixão. Mas o cumprimento de horários era imperioso e acabou por levar alguém da organização a subir ao palco e, com bonomia, convidá-lo a terminar. Scorsese levou uma memorável salva de palmas. Inteligência e paixão idênticas se encontram nas duas séries documentais que dirigiu tendo o cinema como objeto -"Uma Viagem Pessoal com Martin Scorsese Sobre Cinema Americano" (1995) e "A Minha Viagem a Itália" (1999). E neste filme.
Basta ver o começo de "A Invenção de Hugo", os vertiginosos planos-sequências com a câmara pers-guindo o pequeno protagonista pelo labiríntico ventre dos relógios da Gare Montparnasse, para que o espectador, um sorriso estampado no rosto e os olhos muito abertos de maravilhamento, se pergunte: “Como é que ele fez isto?”. Deve ter sido essa a interrogação mais comum que fascinou o ingénuo e espantado público das fitas de Méliès, há mais de cem anos, quando as cabeças inchavam como balões soprados, quando pessoas desapareciam numa ex¬plosão de fumo, quando uma nave em forma de bala entrava pelo olho do rosto da Lua. Encontramos em "A Invenção de Hugo" um apelo primordial à fantasia que une um dos maiores cineastas vivos ao fundador do cinema enquanto passaporte para o imaginário sem limites. É um elo feito da vontade de maravilhamento que há de ser sempre razão matricial para que alguém se torne cultor da religião da cinefilia. O encantamento da sala escura e da viagem para mun¬dos fantásticos é o laço que nos prende, só depois alguns de nós descobrem gostar de Dreyer, de Bu¬ñuel ou de Mizoguchi. O que faz de "A Invenção de Hugo" um objeto para amar sem medida é que esse fascínio primevo e a cinefilia longamente meditada são o indistinto material que o constitui. Scorsese consegue ter a frescura que simula a disponibilidade infantil para o deslumbramento e o fundo sedimento que mais de um século de cinema foi depositando. E isso é muito raro.
Jorge Leitão Ramos, Expresso
A história de Méliès que nele se delineia é, aliás, muito próxima da verdade. No final do século XIX, Méliès fora um bem-sucedido ilusionista com teatro próprio, em Paris, sempre muito interessado em descobertas técnicas que pudesse incorporar nos seus espetáculos. Utilizara, aliás, aparelhos precursores do cinematógrafo dos Lumière - não admira que tenha sido convidado para a histórica sessão de 28 de dezembro de 1895 na cave do Salão Indiano do Grand Café, o nascimento do cinema. Entusiasmou-se com a novidade e, dizem as lendas, terá, ali mesmo, querido comprar um aparelho, no que foi dissuadido pelo pai Lumière que predisse nulo valor comercial para a invenção. Mas Méliès não desiste e vai a Londres adquirir um animatógrafo de Paul com o qual começa a fazer projeções no seu teatro. Em junho de 1896 roda o seu primeiro filme e lança-se na construção de um estúdio em vidro, numa propriedade que possuía em Montreuil, o primeiro em todo o mundo a possuir alçapões (como nos palcos de teatro) e maquinaria.
Nós hoje identificamos Méliès como o mago dos primeiros efeitos especiais, do fantástico, o pai da ficção científica no cinema. A verdade é que dos quase seiscentos filmes que terá rodado, a maior parte seguiu os cânones da época: atualidades (bastas vezes 'reconstituídas'), cenas de quotidiano, filmes históricos. O sucesso financeiro pleno da produção de filmes só acontece na viragem do século, quando obras como "Le Voyage Dans la Lune" são vendidas internacionalmente. Os negócios de Méliès estendem-se a Londres, Berlim, Barcelona, Estados Uni¬dos, América Latina. Faz mesmo construir um segundo estúdio, em 1907. Pouco depois, todavia, a mudança nos gostos do público põe a sua produção em crise. Ainda tenta seguir a onda (produz mesmo alguns westerns, dirigidos por um irmão), mas falha. E em 1913 cessa definitivamente de fazer filmes.
Nos anos seguintes atravessa graves problemas financeiros que culminam, em 1923, com a venda da propriedade de Montreuil. Méliès, ao verificar que os filmes tinham encolhido e eram improjetáveis, queima-os. Centenas são ainda vendidos para recuperar o nitrato de prata. Para sobreviver, volta ao ilusionismo ambulante, mas acaba por até isso abandonar quando reencontra uma velha atriz dos seus filmes e sua ex-amante - Fanny Manieux - que tem uma loja de doces e brinquedos na Gare Montparnasse. Vai viver com ela (casam em dezembro de 1925) e fica a trabalhar no pequeno comércio. Tem 64 anos.
Méliès está muito pobre mas não ignoto. Escreve na imprensa dedicada ao ilusionismo e ao cinema. Mantém contactos. Em 1929 uma gala em sua homenagem é organizada em Paris - e são projetados alguns filmes, reencontrados numa queijaria do château de Jeufosse. Começava a recuperação das obras de Méliès que dura até aos nossos dias (em 2011, um dos acontecimentos do Festival de Cannes , foi a exibição de uma cópia restaurada e tintada manualmente de "Le Voyage Dans la Lune"). Enfim, em 1931, um banquete em sua homenagem e a condecoração com a Legião de Honra selam o reconhecimento público que lhe vai proporcionar um fim de vida confortável.
O filme de Scorsese começa exatamente nesse ano de 1931. É a adaptação fiel de um livro infanto-juvenil de Brian Selznick, publicado em 2007, uma muito original novela gráfica - metade texto metade grandes ilustrações a lápis a toda a página ou, muitas vezes, ocupando mesmo um plano inteiro (edição portuguesa da Gailivro). É uma história contada por imagens (um dos pontos de honra do filme é o respeito pela iconografia de Selznick) sobre um personagem mítico da imagerie do século XX e tendo como referência todo um conjunto de personagens da literatura a que o cinema dera um estatuto popular vasto e planetário. Não é difícil ver no mundo labiríntico e secreto onde Hugo vive reminiscências das torres e passagens ocultas da catedral de Notre-Dame de Paris onde habita Quasimodo (que todos os que viram o filme de Dieterle hão de sempre figurar nos traços de Charles Laughton) ou dos corredores e subterrâneos misteriosos por onde erra a tragédia do desfigurado génio musical de "O Fantasma da Ópera" (que, muito antes de Gerard Butler na versão cantante, assustara meio mundo no corpo de Lon Chaney e Claude Rains) e há, no interior do livro, muitas alusões concretas ao mundo do cinema (desde o começo, onde nos convidam a entrar no filme como num longo movimento de câmara - que, aliás, Scorsese, virtuosamente, materializa). O realizador não fez mais do que acentuar este aspeto, nomeadamente tornando a personagem do inspetor um émulo de Jacques Tati, no porte, no modo como se move, até no quase mutismo, o seu falar sendo mais constituído por sons a fazer lembrar a língua francesa que por palavras e diálogos. Mas onde a cinefilia deste filme se exacerba até à comovência é quando Scorsese reconstrói o estúdio de vidro de Montreuil e nele figura a rodagem de "Le Royaume des Fées", em 1903 - através de um tanque com água, peixes e crustáceos, para dar a sensação de estar debaixo de água, exatamente como Méliès fizera. Subitamente, sentimos o tem¬po a rebobinar, sentimo-nos presentes num instante mágico. Só que, agora, Scorsese usa o 3D e a candura do processo original artilha-se com a jubilosa tecnologia dos dias de hoje. É uma festa! Magnífica for¬ma de nos mostrar que o gesto fundador de inventar mundos fantásticos continua vivo e de apostar – e aqui é o Scorsese preocupado com a preservação patrimonial dos filmes que emerge - que mesmo quando os filmes parecem, de todo, perdidos, há sempre a hipótese de uma lata ignorada num esconso, num sótão, numa prateleira de arquivo, onde persistem as imagens de que os restauradores das cinematecas e dos laboratórios hão de saber, amorosamente, cuidar. É que as veras imagens fabricadas por Méliès também entram em cena e, por Deus!, ganham um estremecimento como há muito não lhe associávamos. E quase escuto, garanto que quase escuto, a voz acelerada, entusiasta e entusiasmante, de Scorsese a detalhar o que vemos.
Um dia tive a sorte de o ouvir ao vivo, no Festival de Veneza, onde foi apresentar uma magnificente cópia de "Johnny Guitar", restaurada com o seu patrocínio. E o que devia ser uma rápida apresentação de circunstância, tornou-se quase uma master class de cinema. É que Scorsese começou a falar do filme e a empolgar-se - e nunca mais parava. Nem ele se calava nem a sala plena queria que ele se calasse, presa de um saber olhar cinema capaz de comunicar a sua própria inteligência e paixão. Mas o cumprimento de horários era imperioso e acabou por levar alguém da organização a subir ao palco e, com bonomia, convidá-lo a terminar. Scorsese levou uma memorável salva de palmas. Inteligência e paixão idênticas se encontram nas duas séries documentais que dirigiu tendo o cinema como objeto -"Uma Viagem Pessoal com Martin Scorsese Sobre Cinema Americano" (1995) e "A Minha Viagem a Itália" (1999). E neste filme.
Basta ver o começo de "A Invenção de Hugo", os vertiginosos planos-sequências com a câmara pers-guindo o pequeno protagonista pelo labiríntico ventre dos relógios da Gare Montparnasse, para que o espectador, um sorriso estampado no rosto e os olhos muito abertos de maravilhamento, se pergunte: “Como é que ele fez isto?”. Deve ter sido essa a interrogação mais comum que fascinou o ingénuo e espantado público das fitas de Méliès, há mais de cem anos, quando as cabeças inchavam como balões soprados, quando pessoas desapareciam numa ex¬plosão de fumo, quando uma nave em forma de bala entrava pelo olho do rosto da Lua. Encontramos em "A Invenção de Hugo" um apelo primordial à fantasia que une um dos maiores cineastas vivos ao fundador do cinema enquanto passaporte para o imaginário sem limites. É um elo feito da vontade de maravilhamento que há de ser sempre razão matricial para que alguém se torne cultor da religião da cinefilia. O encantamento da sala escura e da viagem para mun¬dos fantásticos é o laço que nos prende, só depois alguns de nós descobrem gostar de Dreyer, de Bu¬ñuel ou de Mizoguchi. O que faz de "A Invenção de Hugo" um objeto para amar sem medida é que esse fascínio primevo e a cinefilia longamente meditada são o indistinto material que o constitui. Scorsese consegue ter a frescura que simula a disponibilidade infantil para o deslumbramento e o fundo sedimento que mais de um século de cinema foi depositando. E isso é muito raro.
Jorge Leitão Ramos, Expresso
Título Original: Hugo
Realização: Martin Scorsese
Argumento: John Logan, no livro "The Invention of Hugo Cabret" de Brian Selznick
Fotografia: Robert Richardson
Montagem: Thelma Schoonmaker
Música: Howard Shore
Interpretação: Asa Butterfield, Chloe Grace Moretz, Ben Kingsley, Sacha Baron Cohen, Jude Law
Origem: EUA
Ano: 2011
Duração: 127’
Sócios CCF 2€, Estudantes 3,5€, Restante 4€