Do resgate de um argumento inédito de Tati nasce um dos mais belos filmes do ano.
Foi durante a produção de "Belleville Rendez-Vous" - mais precisamente aquando da negociação dos direitos de uma sequência de "Há Festa na Aldeia" que desejava incluir nesse filme - que Sylvain Chomet tomou conhecimento da existência de um argumento inédito de Jacques Tati. Ora, a longa-metragem de animação que agora estreia por cá (a segunda de Chomet) constitui, justamente, uma tentativa de livre adaptação desse argumento (e dizemos 'livre' porque, dele, o cineasta reteve apenas as linhas de força da narrativa). Trata-se, aqui, de uma salvaguarda de liberdade que não trai os princípios cénicos do cinema de Tati. De facto, nesta animação em 2D, como na maioria dos filmes em imagem real de Tati, privilegia-se a imobilidade do quadro (e, sobretudo, a profundidade do plano-sequência fixo) em detrimento da mobilidade da câmara. Mas a constatação desta fidelidade cénica não dissipa as duas grandes dúvidas que, à partida, poderíamos alimentar sobre o projeto de Chomet: a da tradução em animação do imaginário de Tati e a da 'reencarnação animada' do próprio Tati (que, segundo o argumento, protagonizaria uma vez mais a sua ficção). E, se a primeira é académica porque há, no cinema de Tati um culto do cinético, da cor e do pormenor que encontra na animação o seu território natural -, a segunda fia mais fino. É que o protagonista deste filme não é nem o Sr. Hulot, com o qual Tati se confundiu entre 1953 e 1971, nem Jacques Tati - o cineasta -, mas um tal Jacques Tatischeff, que, assumindo o nome de batismo do realizador, coloca a ficção em domínio autobiográfico.
Aqui, Tati põe-se a si mesmo numa intimidade que não admite distância - através da figura de um velho ilusionista de music hall (foi aí, aliás, que Tati começou a sua carreira artística) cujos velhos truques já ninguém quer ver. Talvez por isso, o filme no-lo mostre, de início, vagueando entre Paris, Londres e Edimburgo (onde o grosso da ação decorrerá), num movimento nómada que permite a Chomet estabelecer um contraste entre as frenéticas variações de décor e a impassibilidade de uma personagem que - como o Sr. Hulot - se sabe condenada a habitar um tempo que não é o seu. Nem o seu, nem o de Alice - a adolescente britânica cuja pobreza o comove a tal ponto que, fazendo do truque milagre, ele simulará tirar da sua cartola, para lhos oferecer, um par de sapatos vermelhos que comprara de antemão. Fascinada pelo truque de magia, ela fará questão de acompanhar Tatischeff na sua viagem sem destino. Juntos, instalam-se num pequeno hotel de Edimburgo e dão início a um impossível simulacro de vida a dois: ele, procurando obter o dinheiro suficiente para repetir o gesto original; ela, esperando pela nova dádiva do falso criador...
Dito isto, aquilo que nos comove, aqui, nasce do subtil jogo de permutas que o filme tece entre duas formas de magia: a falsa magia do ilusionismo e a genuína magia da generosidade (a única capaz de extrair, como o Deus do Génesis, algo a partir do nada). Entenda-se: ilusionista de profissão, Tatischeff é generoso por vocação. E, se os seus truques de magia são falsos (como, por fim, confessará a Alice), o gesto generoso que o convida a executá-los para recobrir, com pudor, os presentes que oferece à adolescente, esse, acaba por transfigurar a sua falsa magia numa magia real. Assim, quando, no final, Tatischeff percebe o que sempre soube - isto é, que a felicidade de Alice implica o seu afastamento -, revelar-se-á, como o Chaplin de "Luzes da Ribalta", capaz do maior ato de generosidade possível: o de se sacrificar, saindo de cena para deixar ser feliz a única que acreditou na sua falsa magia real. Talvez seja por isso que, na última sequência, todas as luzes se apagam menos uma. Gostamos de pensar que se trata da luz que o filme de Chomet descobriu na infinita generosidade do olhar de Tati.
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Vasco Baptista Marques, Expresso
A cinefilia também se desenha
Escusado será lembrar que a história dos desenhos animados dos últimos 20 anos é, sobretudo, made in USA. Mais do que isso: as muitas (e, por vezes, fascinantes) transfigurações impostas pela animação digital passam, no essencial, pelos estúdios americanos, com inevitável destaque para a Pixar. Daí que «O Mágico» surja como contraponto, singular e brilhante, que importa valorizar: aqui está um objecto eminentemente europeu, de produção franco-britânica, que aposta em manter uma riquíssima relação criativa com a tradição dos desenhos executados à mão.
O resultado é tanto mais tocante quanto envolve uma calorosa dimensão cinéfila. Ao filmar o argumento legado por Jacques Tati, Sylvain Chomet homenageia o criador do Sr. Hulot, quanto mais não seja pela semelhança física entre a figura do ilusionista e o próprio Tati (há mesmo uma breve sequência em que o ilusionista entra numa sala de cinema onde se projecta «O Meu Tio»). Mas Chomet não se limita a esse gesto de reverência. Em boa verdade, «O Mágico» colhe na obra de Tati os seus métodos essenciais de encenação e, em particular, a exploração de cenas relativamente longas, apresentadas de um único ponto de vista.
Daí o carácter heterodoxo do trabalho de Chomet. Num tempo em que muitos filmes (incluindo desenhos animados) confundem a intensidade da acção com a "velocidade" da montagem, «O Mágico» vem revalorizar a nobre arte da contemplação e, mais do que isso, a sua vertiginosa velocidade afectiva.
E embora muitos aspectos do Natal, em particular do Natal cinematográfico, tenham sido derrotados pelo marketing mais desumano, há que dizer que alguns filmes ainda conseguem recuperar o espírito tradicional das festas. «O Mágico» é, seguramente, um desses filmes.
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João Lopes, Diário de Notícias
Título Original: L'illusionniste
Realização: Sylvain Chomet
Argumento Sylvain Chomet. Adaptação : Jacques Tati
Direcção de Fotografia: Bjarne Hansen
Música: Sylvain Chomet
Interpretação: Jean-Claude Donda (voz), Eilidh Rankin (voz), Duncan MacNeil (voz), Raymond Mearns (voz), James T. Muir (voz)
Origem: Reino Unido/ França
Ano de Estreia: 2010
Duração: 80’