Ciclo "Buñuel, o Herege", antecipando a Conferência sobre este realizador que será proferida pelo Dr Reia Baptista no próximo dia 6 de Junho, na Sede, integrada no Projecto "Livros em Cadeia" (iniciativa com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian).
O maior sucesso comercial da carreira de Buñuel surgiu, um tanto inesperadamente, com esta famosa obra que não resultou de uma escolha deliberada do autor mas de uma encomenda dos conhecidos produtores franceses, os irmãos Hakim, que tinham fama de ser gente pouco fácil. Buñuel tinha voltado a Espanha, depois do seu último filme mexicano (Simon del Desierto, 1965) e só pensava dar uma sequência aos temas que considerava apenas esboçados nessa obra. Era já La Voie Lactée que o obcecava, embora o projecto, em que trabalhou no ano de 1966, não se intitulasse assim. Era El Monje, filme que nunca chegou a realizar. O produtor que o devia financiar faliu e, pelo que Buñuel gostava de chamar "as voltas do acaso", caiu-lhe do céu aos trambolhões essa encomenda dos irmãos Hakim para adaptar o romance do académico Joseph Kessel com Catherine Deneuve na protagonista.
Inicialmente pouco entusiasmado, Buñuel acabou por aceitar, sob condições: exigiu liberdade total e exigiu a revogação da cláusula que dava direito à intervenção dos produtores na montagem final. Terminado o filme, houve, porém, alguns problemas. Os Hakim tiveram medo da censura e pediram a Buñuel que fizesse alguns cortes para evitar alheias tesouradas. Ao contrário do que por vezes se diz, esses cortes não têm nada que ver com as cenas na casa de passe, nomeadamente com o conteúdo da caixinha do japonês (admirável elipse erótica, tão típica do universo Buñueliano, a que mais adiante me referirei) mas com a introdução da imagem de Cristo na sequência em casa do duque. No célebre episódio necrófilo, Séverine e o duque eram "pontuados" pela imagem do Cristo ressuscitado do Retábulo de Isenheim de Grünewald, que Buñuel considerava a mais terrível das imagens de Cristo jamais feitas. Também houve problemas com a nudez de Catherine Deneuve, na mesma sequência. Ainda não eram os anos de habituais aparições de nus integrais e a actriz recusou-se a aparecer assim. Mas aí Buñuel resolveu a situação a seu favor: os véus transparentes só acentuam o erotismo, bem como a visibilidade do nu de costas e a sua "obscuridade" de frente.
Posto este preâmbulo, passo à análise possível desta complexa obra. Em Belle de Jour, o carácter onírico dos filmes de Buñuel acentua-se a um ponto limite. Nunca sabemos bem quando Séverine está a sonhar, a recordar ou a viver, ambiguidade que começa no início (genérico com a carruagem e os obcecantes guizos da banda sonora) e se mantém até ao fim, quando Pierre se levanta aparentemente curado e se repete a imagem inicial (só que, nesse último plano, os cocheiros conduzem uma carruagem vazia). Tudo foi um sonho de Séverine, uma rêverie de um personagem particularmente propício a ela? O sonho refere-se apenas à casa de passe? Exclusivamente às sequências sem qualquer conteúdo realista? Ao final? Não sabemos. Buñuel deixa-nos sem pistas e, a entrevistadores mexicanos, declarou mesmo que "nem eu próprio lhes posso dizer o que é real ou o que é imaginário no filme. Para mim, são uma e a mesma coisa". E quando os exegetas lhe puxaram pela língua e lhe observaram que todo o episódio do bordel, ou a relação com Clémenti, parecem produto da imaginação de Séverine, Buñuel respondeu: "Não. Uma mulher que pergunta ao marido o que é um bordel, não podia inventar as aberrações que lá vê", citando ainda, em abono desse realismo, a conversa com Piccoli quando este lhe dá a morada do número 11, da Cité Jean de Saumur. Explicações que não são muito convincentes e contradizem o essencial, na frase já citada que abole as fronteiras entre o real e o imaginário.
Melhor é acompanhar a prodigiosa estrutura desta prodigiosa obra. Tudo começa e tudo acaba numa tarde de outono, num parque, com folhas caídas pelo chão. Na banda sonora ouvimos o barulho da carruagem e uns guizos que não são muito plausíveis. Ao longo do filme, duas pistas (se quisermos ser lógicos) nos são dadas para essa luz outonal e para essas campainhas. Ambas são dadas por Michel Piccoli, contraponto sádico do masoquismo da protagonista. ("Você gosta de ser humilhada, eu não" diz mais ou menos ele quando se encontram no bordel). Quando Piccoli se refere, na repetição onírica da sequência da neve, à luz negra do sol de outono e quando, noutra sequência onírica, ouvimos e vemos os guizos dos touros: "La plupart d'eux s'appele remords, sauf le dernier qui s'appele expiation ". Ora, entre o negro, o remorso e a expiação, ocorrem os fantasmas eróticos de Séverine, que precisa tanto do prazer como do castigo e que inúmeras vezes repete ter de pagar pelo que fez. Se o não tivesse, o seu prazer seria menor e daí a admirável introdução da cena em off, em que Piccoli conta a Pierre "toda a verdade", para que Séverine possa descer aos abismos da sua culpa. Paralítico, cego e mudo, Sorel chora e essas lágrimas são essenciais à auto-punição da protagonista.
Volto ao início: conversa banal do casal burguês, com referências implícitas à frigidez de Séverine (mais uma vez, é tentadora a aproximação com o mundo de Hitchcock e com a frígida Marnie). Subitamente, Pierre perde o seu carácter passivo e manda parar a carruagem, ordenando o espancamento e a violação da mulher pelos cocheiros (cocheiros que regressam na carruagem do duque e no plano final) e, pela primeira vez, surge a estranha associação aos gatos, que voltará a funcio¬nar em casa do duque ("Pierre, Pierre, je t'en supplie, ne lâche pas les chats"; "Monsieur le duc, je fais entrer les chats?"). Se descobrimos depois (ou julgamos descobrir, pois que neste filme não convém ser dogmático) que a violação foi "imaginária", jamais descobriremos o sentido dessa história dos gatos, como jamais descobriremos o que o japonês tinha dentro da caixinha, ou porque é que o duque e Piccoli falam, ambos, dos "asphodèles ", entre muitas outras coisas. Acordando do "sonho", no quarto conjugal, Séverine fala ao marido da carruagem, mas sem lhe revelar o que se passou. Na sequência seguinte (estância da neve) saberá das diferenças entre os magnetizadores e os hipnotizadores, diferença essencial e obscura, pois que tanto o magnetismo como o hipnotismo vão funcionar para ela. Piccoli hipnotiza-a ou magnetiza-a? Do que ela "sonhou", sob a banal conversa da referida estância, saberemos depois, sob espécie onírica. Mas são Piccoli e a sua companheira que lhe falam das casas clandestinas e é o primeiro quem lhe dá uma morada exacta. A perturbação de Séverine começa (as recordações da infância, do pecado e da recusa à hóstia) e decide-se a entrar, toda de negro e em figuras de repetição, na casa de Mme Anais. A "belle de nuit" transforma-se em "belle de jour", gata borralheira ao con¬trário. Na sucessão das espantosas personagens que entram naquela casa, uma há que ganha relevo especial: o professor masoquista, com a sua assombrosa meta¬morfose, perante o qual Séverine é incapaz de representar um papel que, fundamentalmente, é seu. Espreita pelo "olho" da parede o que o médico faz com a colega e comenta com a patroa: "Comment peut-on descendre si bas?". O olhar de Mme Anais não nos deixa margem para dúvidas, como as não deixa o paralelo episódio com o japonês. Quando Muni entra no quarto e a lamenta, Séverine ergue o rosto radioso das almofadas e diz-lhe: "Qu'est-ce que tu en sais, Pallas?". E sobrevém o encontro com o duque e o episódio da morte, entre asfódelos, gatos, o criado e esse estranho ritual, cujo alcance mais uma vez nos é elidido (só Séverine viu o que o duque fazia debaixo do caixão). Nós, espectadores, só imaginamos, como na caixa do japonês, como em todos os seus "sonhos" ou como em todos os dias vividos no número 11 daquela rua.
E esta é a suprema astúcia de Buñuel: coloca-nos na posição e na perversão de Séverine, sempre querendo ver mais, sempre nos sendo frustrada a visão. A tal confusão entre o real e o imaginário provém desse mesmo "catecismo do travesti", para usar uma expressão de Comolli. Se nunca sabemos bem onde estamos, se nos perdemos nas máscaras, é porque o nosso desejo é semelhante ao de Séverine, com ela apagando, quando a luz se faz na sala, os traços comprometedores da obscuridade. Séverine queimou a roupa interior, a seguir ao seu primeiro dia nocturno. Nós queimamos essas imagens de desejo na ficção que permite a frase "isto é um filme". Tranquilos, voltamos a casa, com a tranquilidade da cena reconciliadora final de Sorel e Deneuve. Mas se as imagens se queimaram, ficaram-nos, neste filme sem música (como quase todos os derradeiros filmes de Buñuel) os sons e as campainhas. Sinal do nosso alarme, sinal da nossa culpa. Sinal do nosso medo e do nosso desejo de viagens até ao fim da noite e até ao fim dos fantasmas.
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João Bénard da Costa, Luis Buñuel - As Folhas da Cinemateca
Realização: Luis Buñuel
Argumento: Luis Buñuel e Jean-Claude Carriere, baseado no romance homónimo de Joseph Kessel
Direcção de Fotografia: Sacha Vierny
Montagem: Louisette Hautecoeur
Interpretação: Catherine Deneuve, Jean Sorel, Michel Piccoli, Geneviève Page,
Pierre Clémenti, Francisco Rabal, Georges Marchal, François Maistre
País: França/Itália
Ano: 1967
Duração: 101’