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O uivo de Franco
Uivo é sobre um poeta e o seu grande poema. Em 1956, Allen Ginsberg, figura de proa da geração Beat, publicou Howl, um poema dividido em quatro partes que provocou escândalo. Esta é a história do poeta e do seu poema. Mas é também uma história sobre a arte que se senta no banco de réus.
A dupla de documentaristas Rob Epstein e Jeffrey Friedman dá-nos uma obra com uma estética híbrida: em jeito de documentário, vemos Ginsberg (James Franco) a ler o seu poema perante uma plateia, vemos Ginsberg a ser entrevistado já após o julgamento, temos o preto e branco a dar-nos o poeta antes do poema, temos o processo em tribunal (tremendamente eficaz) e, finalmente, contamos ainda com um trabalho de animação que vai surgindo a espaços.
Howl, o próprio poema, é uma gigantesca e seminal obra que a dupla de realizadores soube ir colocando estrategicamente ao longo do filme. O ritmo de Uivo é algo fracturado, fruto da dinâmica escolhida. É essa claramente uma das forças do filme mas é também aqui que encontramos um ou outro desequilíbrio mais visível. O trabalho de animação, por exemplo, surge aqui para traduzir em imagens algumas das ideias invocadas em Howl. Mas tratando-se de poesia, a verdade é que é bem mais interessante quando temos simplesmente James Franco em palco, imbuído na leitura – e há que dizê-lo com clareza: Franco não é apenas excelente no papel de Ginsberg; é um verdadeiro intérprete de um recital de poesia, dando com a sua voz e respiração a força e fluidez que Howl merecia.
Houve cuidado e originalidade na forma como Epstein e Friedman recuperaram Howl. Mas em tribunal, onde boa parte da acção decorre, temos ainda o debate curioso que de tempos a tempos invade os nossos dias: quais são os limites da arte, ou, mais concretamente, pode a arte ter tabus. A resposta foi-nos dada, mais uma vez, em 1957.
Este é um filme sobre um poema definidor de uma geração. Mas é também um filme sobre um poeta que foi perseguido não por ser homossexual, mas porque se recusou a ter tabus, porque recusou eufemismos. Porque foi incapaz de fazer arte com pudor. Uivo não é um filme excepcional como o poema a que dá corpo. Mas tem imensa vida lá dentro.
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Pedro Filipe Pina
Relendo as palavras de Ginsberg
Foi um momento marcante na história da cultura americana na década de 1950: a publicação do poema "Howl", de Allen Ginsberg, é agora tema central de um filme da dupla Rob Epstein/Jeffrey Friedman.
Quando o poema "Howl", de Allen Ginsberg, foi publicado em 1956, de imediato desencadeou reacções de protesto e indignação. Para os que assim reagiam, estava em jogo não apenas o subtexto homossexual, mas também o vernáculo e a própria legitimidade de usar as palavras daquele modo.
O filme "Howl / Uivo" possui a primeira e essencial virtude de se colar à singularidade das palavras e à forma de as dizer. Por alguma razão, o motor da sua construção é a própria leitura do poema, por Ginsberg, magnificamente refeita pela interpretação de James Franco: somos confrontados, assim, com a densidade, a sensualidade e o fascínio do acto de dizer.
Além do mais, através do julgamento público de Ginsberg, somos também envolvidos nas memórias contraditórias de um tempo americano em que a questão da liberdade de expressão ocupava o centro da vida social e dos combates políticos.
Podemos considerar que o filme nem sempre encontra o melhor equilíbrio entre os seus diversos materiais: a ficção propriamente dita, alguns fragmentos documentais e ainda uma muito discutida inserção de cenas em desenho animado. Em todo o caso, a sua força decorre também dessa pluralidade interior: não é possível evocar Ginsberg, bem como as convulsões da Beat Generation, sem conferir a devida atenção a todas essas diferenças e contrastes.
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João Lopes
"Uivo": monta-me histórias (inclui declarações do realizador)
Em “Uivo”, reconstituição da história do lendário poema beat de Allen Ginsberg, os documentaristas Rob Epstein e Jeffrey Friedman propõem um quebra-cabeças que aplica técnicas de documentário a uma narrativa convencional.
Primeiro aviso à navegação: quase tudo o que se passa neste filme é verídico e baseia-se em transcrições, citações, entrevistas e arquivos. Mas "Uivo" não é um documentário.
Segundo aviso à navegação: não é possível traduzir poesia para prosa, como diz alguém a certa altura no filme - ou, no caso, para cinema. É por isso também que "Uivo", esta semana nas salas, não é uma adaptação do poema homónimo escrito em 1955 por Allen Ginsberg e que é, a par de "Pela Estrada Fora", de Jack Kerouac, um dos textos fundadores da "Beat Generation" americana. Nem é uma biografia filmada do seu autor, que surge no filme sob os traços do actor James Franco.
"Nunca sequer considerámos essa ideia," diz o realizador Rob Epstein ao telefone de São Francisco. "Daria certamente um grande filme para quem o quiser fazer, mas a nossa missão foi sempre e apenas o poema: o que levou Allen a escrevê-lo, o que aconteceu depois da sua publicação."
Eis, então, "Uivo": Allen Ginsberg faz a primeira leitura pública do poema na Six Gallery de São Francisco em Outubro de 1955, dá uma longa entrevista (fictícia), acompanha o julgamento por obscenidade de 1957 que opôs o Estado americano a Lawrence Ferlinghetti, editor do poema através da City Lights.
Tudo isto aconteceu na realidade, tudo isto foi reconstituído para efeitos do filme devido à ausência completa de imagens de arquivo de época. "Não havia nada daquilo com que costumamos trabalhar quando criamos um documentário histórico," diz Epstein. "E estávamos interessados em forçar os limites da forma, em fazer algo de mais experimental usando as técnicas do documentário para contar uma narrativa. Não partimos com a ideia de fazer um filme experimental, mas sentimos uma certa responsabilidade de criar algo que fosse tão diferente e audacioso como o poema o foi no seu tempo."
Daí que o que começou como uma proposta dos herdeiros de Ginsberg para um documentário celebrando o 50.º aniversário da criação de "Uivo" se tenha tornado no primeiro "não-documentário" (à falta de melhor palavra) de Epstein e Jeffrey Friedman. Apesar de 25 anos de trabalho em comum, de dois Óscares de Melhor Documentário ("Os Tempos de Harvey Milk", 1985, assinado só por Epstein, e "Common Threads - Stories from the Quilt", 1989) e de uma reputação de cronistas das questões LGBT, os dois realizadores não se tinham ainda abalançado a uma longa-metragem narrativa. E a experiência como documentaristas acabou por vir a jeito no trabalho de estruturação e montagem da história que queriam contar. "A maior parte dos documentários é criada na montagem, e nós estamos muito habituados a montar histórias, porque os filmes que fizemos até agora contavam histórias individuais que convergiam numa história colectiva. Embora ‘Uivo' siga de muito perto o guião que escrevemos, foi um filme muito construído na montagem."
O que complicou o trabalho da dupla foi a multiplicidade de referências estilísticas e cinéfilas que "Uivo" arvora deliberadamente. Para as sequências de tribunal que recriam o julgamento, com um elenco de luxo que inclui Jon Hamm (da série "Mad Men"), David Strathairn, Jeff Daniels ou Bob Balaban, os realizadores olharam "para filmes clássicos de Hollywood onde o julgamento era o centro dramático, como ‘Na Sombra e no Silêncio'." Para a reconstituição a preto e branco da primeira leitura pública do poema na Six Gallery, estudaram "muitas referências ‘beat'" e deixaram-se "inspirar pelo trabalho do fotógrafo Robert Frank"; já a entrevista a Ginsberg (uma construção a partir de várias citações e entrevistas do poeta) deve muito à cineasta independente americana dos anos 1950 Shirley Clarke e ao seu filme "Portrait of Jason".
No entanto, falta abordar aquele que é o elemento mais controverso do filme: a ilustração de "Uivo" em animação criada pelo grafista Eric Drooker, que Epstein e Friedman vão intercalando com a acção e que definem nas notas de imprensa como uma tentativa de criar "uma versão ‘beat' da ‘Fantasia' de Walt Disney" ao som de música original de Carter Burwell. Ao telefone, Epstein confessa que sabia que a animação ia ser o elemento menos unânime - "desde que levámos o projecto ao ‘workshop' de argumento no festival de Sundance que sabíamos que muita gente ia objectar" -, mas justifica a sua inclusão. "O poema aparecia ao longo do filme de vários modos diferentes: havia a leitura pública, a desconstrução que teve lugar no julgamento, a própria análise do Allen na entrevista. Quisemos ter a par dessas uma experiência puramente visual, cinematográfica. E sentimos que havia uma relação orgânica com o Allen ao chamar o Eric para criar a animação: eles tinham trabalhado juntos num livro chamado ‘Illuminated Poems' e sabíamos que o Allen queria que o Eric fizesse qualquer coisa com ‘Uivo'. Era como se fosse um sinal."
"Uivo", no entanto, não é o filme que Allen Ginsberg possa ter pensado , mas o filme que Rob Epstein e Jeffrey Friedman queriam fazer. "Sabíamos que a certa altura íamos ter de seguir o nosso instinto enquanto artistas. Sempre soubemos que ia ser um filme muito cerebral, mas o realmente importante para nós era chegar ao núcleo emocional do poema. Fazer com que a voz do Allen no filme fosse a de um artista a descobrir-se a si próprio."
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Jorge Mourinha, Público
Realização e Argumento: Rob Epstein & Jeffrey Friedman
Fotografia: Edward Lachman, ASC
Montagem: Jake Pushinsky
Música: Carter Burwell
Interpretação: James Franco, Todd Rotondi, Jon Prescott, Aaron Tveit, David Strathairn, Jon Hamm,
Andrew Rogers, Bob Balaban, Mary-Louise Parker, Heather Klar, Kadance Frank,
Treat Williams, Joe Toronto, Johary Ramos, Nancy Spence, Alesandro Nivola, Jeff Daniels, Allen Ginsberg
Origem: EUA
Ano: 2010
Duração: 90’