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13|11|12 21:30, IPDJ "O GEBO E A SOMBRA" Manoel de Oliveira em todo o seu esplendor...



DIA 13 de NOVEMBRO
O GEBO E A SOMBRA, Manoel de Oliveira, Portugal/França, 2012, 95’, M/12

FICHA TÉCNICA


Realização: Manoel de Oliveira
Argumento: Manoel de Oliveira, baseado na peça homónima de Raul Brandão
Fotografia: Renato Berta
Montagem: Valérie Loiseleux
Origem: Portugal/França
Ano: 2012
Duração: 95’


SINOPSE

Apesar de viver no limiar da pobreza, Gebo continua a sua actividade de contabilista para sustentar Doroteia, a mulher, e Sofia, a nora. A existência daquelas três pessoas é triste e monótona, girando à volta da ausência de João, o filho, que ninguém sabe onde está ou as razões por que partiu. Apesar do velho senhor tentar encontrar maneiras de aliviar o sofrimento das duas mulheres, parece que nada consegue minimizar as suas dores. Até que, sem que já ninguém o esperasse, João regressa. E é a partir daquele momento que o equilíbrio familiar, já de si frágil, se rompe, dando origem a uma catástrofe....
Baseado na peça homónima de Raul Brandão (1867-1930), escrita em 1923, a mais recente obra do mestre Manoel de Oliveira é um retrato da pobreza, da honestidade e do sacrifício.
O "Gebo e a Sombra" teve a sua estreia mundial no início de Setembro, em dias sucessivos, no Festival de Veneza e na Cinemateca Francesa em Paris.



TRAILER



"Um filme magnífico, um grandíssimo Oliveira. Chapéu, Sr. Manoel.
Terá dito Oliveira, conforme citado algures, que foi em resposta a uma sugestão de que fizesse “um filme sobre a pobreza” que se lembrou de adaptar O Gebo e a Sombra de Raul Brandão. A “pobreza”, e o seu tema associado, o “dinheiro”, já tinham visitado, mais este do que aquela, a sua antepenúltima longa, Singularidades de uma Rapariga Loura (a partir de Eça, mas com a moeda convertida em euros); e havia uma espécie de pobreza, a pobreza espiritual de um mundo falho de imaginação, excessiva e tristemente real, no filme que se lhe seguiu, O Estranho Caso de Angélica, onde tudo era tão cinzento que o protagonista preferia a fantasia mórbida, mas mágica e promissora, que vinha com o sorriso de uma morta. São dois filmes excelentes, como excelente é O Gebo e a Sombra, que cruza estes títulos anteriores: fala do dinheiro - “o dinheiro nunca se perdoa”, frase escrita há quase um século, mas tão terrível quando pronunciada aqui e agora, em Portugal 2012 - e da sua escassez, mas também da irredimível pobreza de um mundo “aquém”, de um mundo “encolhido”, que faz pensar imenso no Cavalo de Turim de Tarr e no que teria acontecido àquele pai e àquela filha depois de já não haver luz, nem espaço, nem nada.
Neste mundo dos pobres tal como O Gebo e a Sombra o desenha, também não há luz (sempre na penumbra, noites e dias sucedendo-se sem distinção) nem espaço (tão exíguo que não permite mais do que uma meia dúzia de posições de câmara diferentes). Mesmo se plasticamente é notável, uma coisa belíssima: a fotografia de Renato Berta faz maravilhas com a iluminação e com essa sombra em todos os sentidos omnipresente, e não exageramos se dissermos que desde que o cinema se tornou assunto essencialmente “digital” ainda não tínhamos visto uma imagem assim, tão rica nas temperaturas e nas texturas, tão complexa na própria organização e definição do espaço (aqueles planos em que duas personagens dialogam de frente para a câmara, e há uma terceira a ouvi-las na penumbra da profundidade de campo).
A “sombra” de Gebo (Michael Lonsdale), modesto e dúctil cobrador de uma empresa qualquer, é o seu filho, desaparecido há oito anos, em busca de outra vida para além da pobreza, mas presumivelmente também para além da aceitação da pobreza como “moral”, que Gebo professa dir-se-ia religiosamente (ele que diz que um homem pode ser honesto e honrado, ou então “tentar enriquecer”). Essa sombra materializar-se-á quando o filho (Ricardo Trêpa) torna a casa, pelo tempo suficiente para se revelar - numa figura com o seu quê de nietzscheano - a antítese moral do pai. Mais ainda do que o roubo, é o seu discurso brutal, a rebentar qualquer moralidade, perante aquela atónita plateia (a família e os vizinhos) de gente que tem na pobreza um ideal de honradez, a cena mais impressionante e violenta de todo o filme, anunciada pela gargalhada, “diabólica”, do momento do seu regresso. Violenta também pela ambiguidade da sua crítica à docilidade da pobreza e dos pobres (ele não vem só de outra vida, traz também outra voz), ambiguidade reforçada ainda pelo facto de a personagem ser interpretada por Trêpa, que tem sido, de modo mais ou menos evidente consoante os casos, o “duplo” de Oliveira dentro dos seus filmes. Mas a história do filme - que termina no final do terceiro dos quatros actos da peça de Brandão, e é genial que o faça - é a da transformação de Gebo na sua própria sombra. O momento em que a policia chega é o único momento em que a luz do sol penetra naquele tugúrio, e portanto o único momento em que Gebo, de frente para a luz do sol, projecta uma sombra. Torna-se nela, na dúvida, angustiante, paralisante (como o “paralítico” que imediatamente imobiliza a imagem e se mantém por grande parte do genérico de fecho), de que tudo terá sido “inútil”, de que sempre foi pobre e podia não ter sido, de que a pobreza pode ser uma mentira tão ilusória como a abastança, de que havia talvez uma outra vida algures, para ele, para a mulher (Claudia Cardinale), para a filha-nora (Leonor Silveira). É um final terrível, terrificante - decididamente, nunca se sai a rir de um filme de Oliveira.
Mas sorri-se bastante, ao longo da hora e três quartos da sua duração. Pela delicadeza e graça com que Oliveira condimenta a austeridade da sua mise-en-scène, e pela delicadeza, em estado de graça, do seu sexteto de actores - faltava mencionar Luís Miguel Cintra e Jeanne Moreau, que chegam para saborear o gosto do saké, perdão, do café quente, na maravilhosamente amena cena de conjunto que antecede o trauma que por sua vez prepara a tragédia. A tragédia do bas fonds: discutir-se-á se Brandão está mais próximo de Gorki do que Oliveira está de Renoir, mas Gebo e a Sombra também lembra bastante a adaptação do russo que o francês fez nos anos 30, Les Bas Fonds e que Oliveira certamente viu - o seu filme parece que lhe “responde”. Em todo o caso, um filme magnífico, um grandíssimo Oliveira. Chapéu, Sr. Manoel."

Luís Miguel Oliveira, Ípsilon


ENTREVISTA A MANOEL DE OLIVEIRA
Como é trabalhar com jovens no cinema?
 É trabalhar! Sabe, a natureza deu fome ao homem e esse acontecimento da fome é que obriga a trabalhar, senão ele não fazia nada. Toda a gente tem fome em qualquer idade. Portanto, aí, o velho não se distingue do novo porque ambos têm fome.
O Manoel viu o cinema nascer. E viu o cinema crescer e mudar. O cinema hoje é velho?
 Não! É mais novo do que nunca. O cinema é uma síntese de todas as artes. Engloba-as todas. Tal qual a vida. A vida é de onde se tiram os argumentos, as ações que se vão depois projetar fora, como se fossem verdadeiras, só que não são verdadeiras, são inventadas, são feitas à sombra e à imagem da realidade mas não são reais, são ficção.
Há muita diferença entre o real, o que se passa aqui e agora (neste bocado passam-se milhões de coisas pelo mundo fora, coisas diferentes, impossíveis de gravar) e o romance. O romance inventa e põe à sombra da realidade mas não é realidade.
Eu digo que o cinema não envelheceu porque, repito, é a síntese do todas as artes e portanto tinha que aparecer em último lugar, é a sétima arte, que beneficia do romance, da poesia, da vida e com isso tudo se joga para fazer cinema. O cinema é atual. A máquina de filmar só filma o presente. Se não estiver aqui ninguém, já não filma.
O presente contém toda a sabedoria que vem do passado. Está guardada no passado. Quanto ao futuro, não se sabe nada.
No romance “A guerra e a paz” do Tolstoi, há um nobre ferido a morrer na sua cama e está preocupado em saber o que é a morte. E nisto, olha em volta e dá com uma porta e diz ‘ah, é uma porta’! (risos). Bom, é uma porta onde ninguém quer entrar. Quer dizer, alguns forçam a entrada…
Ninguém nasceu por vontade própria e por essa razão quem não estiver contente pode se matar, escusa de continuar a viver.
Existe um cinema europeu?
 O Fernando Pessoa dizia que os descobrimentos são portugueses. Mesmo os que foram feitos por estrangeiros, porque o sistema é português. Agora, passando isso para o cinema, é a mesma coisa. O cinema é francês. Mesmo aqueles que fazem filmes fora da França, mas sistema é francês. Ele nasceu com tudo o que era preciso quando nasceu.
O Lumière quando fez o primeiro filme, “La Sortie de l’usine Lumière à Lyon” criou o realismo cinematográfico e logo a seguir veio o Méliès e fez a fantasia cinematográfica, e logo a seguir, logo, logo, veio o Max Linder e fez o cinema cómico. De maneira que o cinema, não há outra coisa, está tudo no primeiro dia em que foi inventado. A vida nossa é sempre a mesma, comemos para viver, vivemos para comer e depois morrermos, é o programa.
No seu programa identifica-se com esses três momentos do cinema, a parte realista, fantasista e cómica?
 Sabe o Coppola a certa altura faliu e foi para uma quinta que tinha e fez uns vinhos durante dez anos e ganhou uma fortuna fortíssima com esses vinhos que ele lá fez. De maneira que quando retomou o cinema com a nova juventude, ele disse que a televisão contava histórias de uma forma muito apressada, a correr, a correr, e pior do que isso Hollywood copiou a mesma coisa, sem dar sequer tempo para pensar. A coisa mais rica que o Homem tem é o pensamento, foram precisos milhares e milhares de anos para que o homem chegasse à inteligência e ao pensamento, o pensamento é a coisa mais refinada que o homem tem em si próprio.
Podes-nos falar do novo filme?
 “O Gebo e a sombra”. Sombra é o contrário do gebo. Sabe porque fiz o filme? Fiz o filme porque uma pessoa me encontrou e disse que gostava muito dos meus filmes e perguntou-me porque não faz um filme sobre a pobreza, sobre os pobres. Eu disse que não era fácil, se fosse um documentário seria mais fácil fazer um documentário, vai-se buscar um caso ou outro caso.
Mas depois lembrei-me do Raul Brandão. Aqui está um homem pobre que morre pobre mas digno, com toda a sua dignidade, é o que é o filme. De maneira que é um filme que vale tanto hoje como ontem.
É um filme jovem?
 Todos os filmes são jovens quando nascem, depois é que envelhecem, é como nós.
 O filme foi feito relativamente rápido. Há pouco dizia que o tempo era importante para si. Mas tem trabalhado a um ritmo sustentado. E mais fácil para si fazer filmes agora, vê as coisas de forma mais clara?
 Tudo nasceu no primeiro dia e a própria vida também nasceu no primeiro dia, o que modifica a vida é a ciência, o conhecimento.
Mas no final, nasce-se, vive-se e morre-se, daqui não saímos, de onde vimos, de onde viemos, é a pergunta, para onde vamos nós no fim disto?
É claro que para os religiosos, como eu sou, há esperança do céu. O papa João Paulo Segundo disse “padre nosso que estais no céu, mas como o céu tem sido muito explorado com as balas que põem lá vigiam o que se passa ele disse que o céu era uma palavra simbólica. Na vida tudo é simbólico, não é só o céu.
Este último filme, baseado no Raul Brandão, também é um símbolo da época em que vivemos?
Não, porque o filme faz uma crítica muito severa à situação. E o facto de eu o representar no tempo em que ele foi escrito, no princípio do século XX, não é tão agressivo como se fosse representado no tempo de hoje. O filme não é agressivo, agora põem os pontos nos is”.
O passado e o presente confundem-se?
 O homem do passado não é diferente do homem de hoje. O homem tem as mesmas características. Um grande filósofo espanhol Garcia e Ortega dizia “o Homem e a sua circunstância”. A circunstância é que lhe determina as situações. De maneira que a técnica tem evoluído muito, agora os telemóveis fazem tudo, só não é para almoçar, que é o essencial. O homem tem de matar o bichinho ou comer as ervinhas, etc. Nós de certa maneira, somos condenados a viver. E vivemos satisfeitos, contentes por viver, só pelo facto de estar vivo.
Como é que trabalha com os atores nos filmes? Dirige muito ou dá-lhes liberdade? Aproveita o que eles são ou dá-lhes algumas indicações?
 Olhe nunca lhes bati… :) Dou-lhes inteira liberdade porque não gosto que os atores representem, gosto que eles vivam o papel. Representar não é bonito, é mais falso. De maneira que lhes dou inteira liberdade, é claro que tenho de determinar a marcação. Eles já sabem o papel são pessoas inteligentes como nós. Cada à sua maneira, com o seu papel.

Conferência ANTÓNIO PRETO: Texto e Imagem: o caso Manoel de Oliveira. 6ªf, 23, 18h.

Sala Polivalente da Biblioteca da Penha da UAlg.

Entrada livre.


Integrada no projecto Livros em Cadeia: apresentação do Livro Manoel de Oliveira: O Cinema inventado à letra, de António Preto (ed).

O Palestrante
António Preto é doutorado em Estudos Cinematográficos pela Universidade Paris-Diderot – Paris 7, sendo actualmente docente do Mestrado em Realização: Cinema e Televisão, da Escola Superior Artística do Porto e do curso de Comunicação Audiovisual e Multimédia da Universidade Lusófona do Porto. Desenvolvendo uma investigação em torno das relações entre literatura e cinema na obra de Manoel de Oliveira, publicou o livro Manoel de Oliveira: O cinema inventado à letra, que agora apresenta em Faro, tendo ainda comissariado, a convite da Fundação de Serralves, a exposição Manoel de Oliveira / José Régio: Releituras e fantasmas (2009). A par disso, tem organizado mostras de cinema como programador independente.

O Livro
Manoel de Oliveira é o único cineasta em atividade a ter realizado a travessia do cinema mudo ao sonoro e do preto e branco à cor, no entanto, a sua celebridade é hoje, em Portugal, tão grande quanto desconhecida é a sua obra. Este volume da Coleção de Arte Contemporânea da Fundação de Serralves traça um percurso pela obra de Manoel de Oliveira que incide sobretudo numa análise formal de algumas das configurações mais caraterísticas da estética oliveiriana. Secundarizando a cronologia de realização dos filmes e privilegiando as questões ligadas à imagem, está estruturado em seis capítulos, todos eles profusamente ilustrados com imagens de quase todos os filmes realizados por Oliveira até à data da edição (2008).


Livros em Cadeia é um projeto financiado por


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Colaboração


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O Estranho Caso de Angélica que afinal não estava morta... ao ar livre! 4ª, 20, 22h, Oliveira a brincar connosco.

CLAUSTROS DO MUSEU MUNICIPAL

Sócios - 2€ (caderno de 5 senhas, 10€)
Não-Sócios - Passe para os 10 dias 25€ / Estudantes 3,5€ / Restantes 4€



“Uma radiante história de fantasmas e uma história do próprio cinema.”
Artforum

“Uma fantástica fábula de amor.”
Chicago Tribune

“Um verdadeiro presente, de um realizador que tem quase a idade do próprio cinema.”
The New York Times

Um homem fotografa uma jovem morta e a imagem... sorri para ele! Comédia? Drama» Dir-se-ia um cruzamento perverso de ambos, filmado como se fosse um requiem irónico por todas as ilusões e desilusões do romantismo. Manoel de Oliveira nunca desistiu deste velho projecto (o argumento original foi escrito em 1954) e ainda bem: o resultado é um objecto de deliciosa e contagiante liberdade artística.
João Lopes, Cinema 2000


Não esperem meias tintas nem elogios discretos: o novo filme de Manoel de Oliveira, história de um fotógrafo siderado pelo fantasma de uma mulher morta, é magnífico. O seu melhor dos últimos anos. E tem um passado negro.

"O Estranho Caso de Angélica" chega às salas portuguesas quase 60 anos depois da primeira versão do argumento, escrita por Manoel de Oliveira. Quem seguir este longuíssimo percurso concluirá que a saga, afinal, até acabou bem, com o filme a estrear no Un Certain Regard de Cannes (no ano passado), logo ali colhendo louvores e reconhecimento dos quatro cantos do mundo. Porém, a história deste 'estranho caso' está envolta em trevas. Obriga-nos a regressar aos fascistas anos 50 portugueses e à década mais miserável e estéril do nosso cinema - década indigna deste filme e da grandeza do seu autor.

O projeto data de 1952 e chamava-se "Angélica". Não foi o primeiro - nem seria o último - que Oliveira deixaria na gaveta desde "Douro, Faina Fluvial'', mas, neste terreno de dúvidas e de filmes por fazer, todos os indícios levam a acreditar que foi o projeto mais importante do cineasta do Porto. Em 1952, Oliveira submete o guião ao julgamento do Secretariado Nacional de Informação (SNI), organismo responsável pela propaganda política de Salazar, pela informação pública e também pelo cinema. Naqueles anos, as comédias populares portuguesas que triunfaram apesar da penúria do seu valor artístico, esses filmes de triste figura que serviam de extensão do regime, começavam a ser atacados, em especial pelo movimento dos cineclubes, muitos clandestinos. Para aquela geração de cinéfilos lusos, Oliveira é já a figura mais importante da cinematografia, a sua maior esperança. Contudo, o veredicto do SNI, que chumba "Angélica", é severo: "Argumento pessimista e demasiado mórbido." Recusa recebida com indignação... mas pia-se fininho.

Nestes anos 50, Oliveira - é ele quem o diz no dossiê de imprensa de Cannes - descobre ainda que tem outro problema em mãos: "Com 'Angélica', tinha algumas reservas relativamente à ideia de filmar o sonho, já que a máquina de filmar não filma nem sonhos nem pensamentos (...). A pessoa diz que sonhou ou que pensou, mas não podemos ter a certeza quanto ao que ela diz. É qualquer coisa que está deformada ou que pode ser mentira." Ora, em "Angélica", a imagem do sonho está na origem do drama. E é este drama que permitirá transfigurar o real, até ao ponto em que a morte se possa transformar em vida. Esta ideia, como hoje se sabe, é matéria de exploração infindável em Oliveira veja-se "Benilde ou Virgem Mãe", de 1975, bem como os seguintes "Amor de Perdição", "Francisca" ou "Le Soulier de Satin". Só que "Angélica" nascera 20 anos antes, em tempo maldito - e filme maldito se tornou.

É necessário mantermo-nos ainda nos anos 50 para melhor compreender a travessia do deserto de Oliveira e a história de um argumento que ganhará reputação mítica com a passagem dos anos. Em 1954, todo o edifício do cinema português construído pelo regime nos anos 30 aproximava-se do colapso. Fecham estúdios. A produção é magra, a qualidade aberrante. "Restava à nova crítica, que entretanto tomara o poder, pedir para o cadáver do cinema português o local adequado: o cemitério", escreveu João Bénard da Costa num livro que documenta estes factos ("Histórias do Cinema", ed. Casa da Moeda, 1991). Em 1954, Oliveira tinha 46 anos. Não filmava há 12, desde "Aniki Bóbó". Afastara-se do cinema para se dedicar a negócios na indústria e na agricultura. E, em 1955, ano em que o projeto de criação da RTP começa a ganhar corpo, o cinema português chega ao seu annus horribilis, o único da sua história em que nenhum filme foi estreado. Curiosamente, é nesse preciso ano que Oliveira parte para a Alemanha, para um estágio nos laboratórios Agfa, em Leverkussen, onde se familiariza com a fotografia a cor. De regresso a Portugal, realiza em 1956 uma nova curta-metragem sobre o trabalho do grande pintor de aguarelas António Cruz, na cidade do Porto: "O Pintor e a Cidade". Filme notável que valerá a Oliveira, em 1957, o primeiro prémio internacional da sua carreira.

Regressemos ao argumento do filme rechaçado pelo poder, "Angélica", publicado na íntegra (com data de 18 de junho de 1954) no livro "Alguns Projectos Não Realizados e Outros Textos de Manoel de Oliveira" (ed. Cinemateca Portuguesa, 1988). O argumento foi inspirado num episódio autobiográfico, já que ao cineasta, tal como ao protagonista Isaac (Ricardo Trêpa), alguém pediu que fotografasse uma jovem mulher morta, amiga da família. Oliveira possuía uma máquina fotográfica - uma Leica - e notou que, ao fazer o foco, conseguira uma imagem sobreposta em que parecia que, do corpo, se evolava uma figura viva. A ideia do filme nasce desse episódio. E é por causa da fotografia acidental que Isaac começa a acreditar na ilusão de que a morta voltou à vida, ou seja, é pela fotografia que a imagem ganha o poder de uma alucinação.

Esse argumento, bastante próximo da versão que Oliveira atualizou para os tempos de hoje (ainda que com nuances que parecem vir dos anos 50) e que daria origem a "O Estranho Caso de Angélica", é um documento com uma precisão e uma inventividade apaixonantes. Já vêm daí os ruídos estridentes e desafinados, todos esses sons penetrantes e desconexos que assaltam a tranquilidade do jovem Isaac. Também no argumento se encontra descrito ao detalhe o delicioso episódio do gato que se fixa a mirar o pássaro na gaiola, augurando a fatalidade que há-de vir. E, embora Isaac não seja exatamente um alter ego de Oliveira, não podemos esquecer que é ele, tal como o cineasta, aquele que vê e nos dá a ver a fotogenia de Angélica, essa fotogenia fatal, prova de contacto com um 'além deste mundo' que libertará a personagem e em simultâneo o assombra, dia e noite, até à exaustão.

"O Estranho Caso de Angélica" é um filme denso e inesgotável, um desses raros que conseguem - e graças a simples truques de Méliès - interrogar o poder do cinema e a sua relação com a verdade e a mentira. É um ghost movie furioso, ainda que realizado por um homem cético que nos diz que, da morte, nada sabemos: "Pois ninguém de lá veio para a contar." E, no entanto, Oliveira é extraordinário a fazer a mise en scene dos seus fantasmas. Seis décadas volvidas, "O Estranho Caso de Angélica" prova que teria sido a obra-prima dos anos 50 que o cinema português tanto precisou e não teve. A mesma obra-prima que é hoje.
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Francisco Ferreira, Expresso, 30/4/11


Em O Estranho Caso de Angélica, os segredos da vida para além da morte podem estar por detrás da câmara de um fotógrafo.

"Eu da vida ainda presumo saber alguma coisa, da morte não sei nada. Nunca a experimentei, nunca ninguém a experimentou", diz Manoel de Oliveira, do alto dos 102 anos, em entrevista a António Preto, a propósito de O Estranho Caso de Angélica, o filme em que filma a morte/ a morta e a morte/ a morta lhe sorri. É a primeira vez que Manoel de Oliveira recupera um projeto tão antigo. O guião original remonta a 1952 e foi abandonado antes das filmagens. Talvez assim se justifique a elipse temporal comum a alguns filmes de Oliveira, como se o tempo cronológico fosse um pormenor que se dilui... (uma década em 100 anos não é a mesma coisa que uma década em 30). Há assim uma ambiguidade temporal, tal como acontecia em Singularidades de uma Rapariga Loura. Manoel de Oliveira diz que este não é um filme de época, mas claramente situa-se num meio tempo... o tom de época está lá e dificilmente nos convence da contemporaneidade, nem mesmo quando, pela primeira vez na sua filmografia, utiliza efeitos especiais. A própria personagem central, Isaac, interpretada por Ricardo Trepa, padece desse problema temporal: o argumento original foi escrito ainda na ressaca da II Guerra Mundial, onde ser judeu em Portugal tinha determinada conotação que hoje se perdeu, até porque a comunidade é demasiado pequena para ser estigmatizada e também por isso, há um nível de leitura do filme que facilmente se perde. Mas isso não é mesmo o mais importante deste O Estranho Caso de Angélica, que se fosse um livro inserir-se-ia próximo de Teixeira de Pascoaes.
O que realmente importa aqui é o sorriso da rapariga morta, que para morta não está nada mal. É como se Oliveira a filmasse do outro lado, transformada em querubim. A frieza da morte é substituída pelo ideal de beleza romântico, que não é naturalmente o das peles morenas queimadas pelo sol, mas a alva brancura dos sorrisos pálidos, dos cabelos loiros e imaculados, assim como os 'deuses' do Renascimento.

Angélica, claro está, como diz o nome, é um anjo, apesar de não se aplicar o ideal de pureza bíblico - "o marido está inconsolável". Angélica é casada e os anjos têm sexo. Isaac, o fotógrafa judeu que é chamado para tirar o retrato à rapariga depois de morta, encontra no sorriso uma chamada do transcendente. Mas esse apelo, essa atração que não é física mas sim metafísica, não deixa de ter uma carga impura de infidelidade, o que só torna o filme menos óbvio e mais interessante. Isaac, que é um homem espiritual, que fotografa o que ninguém quer reter, a rudeza dos trabalhadores do campo, as vinhas do Douro, sente ali uma atração pelo intangível. Há uma sedução pelo infinito, pela beleza e pelo amor absoluto que não podem ser encontrados na vida. Se por um lado o sorriso de Angélica pode ser visto como o canto das sereias que atrai os marinheiros para o fundo do mar, por outro também se pode descobrir nele um olhar doce sobre a morte, como se, quando partíssemos, partíssemos desta para melhor.
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Manuel Halpern, aeiou.visao.pt




Título Original: O Estranho Caso de Angélica
Realização: Manoel de Oliveira
Argumento: Manoel de Oliveira
Fotografia: Sabine Lancelin
Montagem: Valérie Loiseleux
Som: Henri Maikoff
Interpretação: Ricardo Trêpa, Pilar López de Ayala, Leonor Silveira, Luis Miguel Cintra,
Ana Maria Magalhães, Isabel Ruth, Filipe Vargas
Origem: Portugal
Ano: 2010
Duração: 97’
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