Normalmente são as curtas que vêm acopladas às longas, uma espécie de extra ou aperitivo que o distribuidor simpaticamente nos oferece. Desta vez é ao contrário, a curta emancipou-se e tornou-se no prato principal. O bónus, o digestivo, é a longa/média-metragem que se lhe segue. Não por demérito de Nana, que é um belíssimo filme, mas apenas porque a curta em causa é Rafa, de João Salaviza, o nosso realizador de ouro, que depois de ter sido o primeiro português a ganhar uma Palma de Ouro, no festival de Cannes, com Arena, repetiu a gracinha, ao ganhar o Urso de Ouro em Berlim. Falta-lhe só Veneza para completar o grand slam dos festivais de elite (talvez fique para a longa), mas para já é um dos raríssimos realizadores mundiais a guardar na mesma estante um urso e uma palma. Mas se é o próprio que diz, com a sua elegância, que os prémios são adereços, o que conta são os filmes, falemos então do filme.
Apesar de ser um realizador ainda em início de filmografia, desde já podem reconhecer-se traços autorais, reveladores de uma linguagem forte e marcada, através de pontos comuns aos seus três filmes (além de Rafa e Arena, Cerro Negro, uma encomenda da Gulbenkian, que esteve em competição no IndieLisboa). Um ótimo sinal que também se verificava nas primeiras curtas de realizadores como Miguel Gomes, Sandro Aguilar ou João Nicolau, embora os seus estilos sejam manifestamente diferentes. Há uma personalidade forte que atravessa a curta obra de João Salaviza, mas tal não se deve confundir com a descoberta de uma fórmula de sucesso, apenas a assunção de um universo e de uma linguagem.
Salaviza não se interessa pela burguesia, nem pelos dramas da classe média, mas por episódios realistas da classe baixa, urbana ou suburbana, desenraízada e frágil. É uma opção que engrandece os seus filmes até porque, como já alguém disse, a classe média não tem drama. O tempo e o ritmo são estreitos. Nunca há grandes elipses e permanece a ideia de uma viagem, de um percurso. E esse percurso altera as personagens. João Salaviza consegue no espaço de uma curta-metragem transmitir-nos essa forte ideia de mudança. Finalmente, parece haver uma obsessão pela prisão. O protagonista de Arena está em prisão domiciliária. Em Cerro Negro, a mulher visita o marido brasileiro que está preso. Em Rafa, o rapaz tenta libertar a mãe que foi detida por conduzir sem carta.
Em Arena, a ideia de prisão opõe-se à de liberdade. E o filme termina exatamente assim, com um gesto livre, o usufruto de um instante. Rafa, embora tenha a libertação da mãe (que nunca chegamos a ver) como pretexto, é um filme sobre o crescimento. Rafa, a criança-adolescente, atravessa a ponte, deixa a sua aldeia suburbana e arrisca-se na grande cidade, fazendo-se do homem da família. É como um ritual de iniciação, de passagem para a idade adulta. Salaviza, em entrevista ao JL, explicou que uma das dificuldades do casting foi descobrir um miúdo no estado intermédio, ainda criança mas quase rapaz. Rodrigo Perdigão foi um achado. E quando o filme acaba temos a noção de que alguma coisa mudou e aquele rapaz está agora mais preparado para a vida. Uma fábula do crescimento sintetizada num só dia.
O luxuoso complemento de Rafa é Nana, um belíssimo documento de Valerie Massadian, que esteve no IndieLisboa. Entra em contraste com Rafa, apenas pelo seu contexto rural. De resto, é uma forma muito crua de fazer um retrato de um dia no campo. Começa de forma algo chocante, com a matança de um porco, e depois vai avançando por pormenores do quotidiano de uma família, centrada em Nana, uma criança. Um ambiente raro, de forma crua, sem fantasias bucólicas, nem moralidades desajeitadas.
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Manuel Halpern, Visão
No início, uma matança do porco. No fim, uma canção em que se reconhece a voz da realizadora, Valérie Massadian, murmurada sobre o genérico: não mete mais medo? No início, sangue: a criança é testemunha, sabe que se mata para comer. No fim, para quem souber ver, talvez um pouco de pintura que o cinema se permite admitir. Estamos numa quinta da província francesa, na Basse-Normandie, mas isso não interessa muito, nem da quinta saímos. Quem está no centro? A pequena Nana (Kelyna Lecomte). Deve ter uns 4 anos. Tem um avô paciente, Nana. Pai, já era: nada dele sabemos. Mãe, criatura que se suspeita ser sinistra, vemo-la a sair depressa de um plano que é bem capaz de ser um flashback, mas não estamos muito seguros disso: a câmara está à altura da miúda, é pelos de Nana que olhamos para os seres e as coisas, e esta relação com o tempo é um jogo que não se joga nem à mesma escala nem com a mesma ordem dos adultos.
Do filme, não há grande história a contar. Contamos isto: "Nana" é a história de uma ex-modelo que também trabalhou longos anos em cinema e decidiu fazer um filme por uma força maior. Escreveu algumas páginas de argumento. Viu não sei quantas crianças em casting até se render a uma, indomável e possuída de singular imunidade ao comportamento dos adultos. Levou-a pela mão, bateu à porta da quinta de um vizinho de longa data (Alain Sabras, que faz de avô) e fez nascer um filme. À criança, perguntou: "Vamos passar algum tempo juntos?"
Documentário sobre a infância no seu estado puro, "Nana"? Ficção sobre os seus demónios? Ambos, seguramente, mas não é por teoria que "Nana" funde fascínio e terror e provoca tanto fascínio e tanto terror. O que fascina e aterroriza - e o que, admitamos, é da ordem do milagroso - é que esta infância sem carícias, a de Nana no filme de Valérie Massadian, consegue entregar-se ao abandono de si própria com o prazer de um conto fantasmagórico. Partilha uma estranha relação com as leis da natureza e recorda-nos que cinema e pedagogia, sobretudo quando se tem uma criança à frente da câmara, têm energias absolutamente irreconciliáveis. Quem quiser 'domesticar' esta miúda com a boa-fé da sua consciência vai arranjar problemas graves com o filme. Quem tentar fazê-lo, vai entrar em guerra com Nana e talvez acabe morto por ela, como aquela mãe que a miúda mata no seu jogo, que é bem real, não tem perdão nem deixa remorsos.
"Nana", já o escrevemos no ano passado em Locarno (onde se estreou e venceu o prémio de melhor primeira obra), tem irmãos no cinema francês. Irmãos de sangue perdidos ou tão-só desejados, em filmes de Truffaut, de Eustache, de Doillon e, sobretudo, no "L'Enfance Nue", de Pialat - todos eles nos trouxeram crianças guerreiras aos quais a beatitude estava interdita. Crianças que devoravam o mundo e que faziam dele a sua própria découpage. Nana é uma dessas crianças - e uma das criaturas mais poderosas que o cinema deu a ver nos últimos tempos. Sobrevive à morte dos porcos e à morte dos homens enquanto devolve a vida à carcaça de um coelho. Faz a sua própria fogueira no seu mundo de criança. E é quando nos apercebemos desse estado de incandescência da personagem que "Nana", o filme mais frágil do mundo, tão frágil que parece a cada segundo correr o perigo de extinguir-se, ganha uma força bruta.
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Francisco Ferreira, Expresso
ENTREVISTA A JOÃO SALAVIZA
Esta é mais uma história rodada num contexto urbano, como a grande Lisboa, mas que está um pouco à margem daquilo que se assume como “normal”. Gosta de captar estas realidades?
No caso do “Rafa”, filmei o momento em que o papel de responsabilidade dentro de uma família se reverte. É um miúdo que tenta ser o homem da casa. Sou uma pessoa que tem uma ligação muito forte com a cidade de Lisboa. Nasci e vivi em Lisboa praticamente toda a minha vida. Interessa-me fazer filmes verdadeiramente pequenos, dentro de casas, com miúdos. Não me interesso por narrativas muito épicas e aglutinadoras. O próprio modelo de produção dos filmes permite-me estar próximo de quem estou a filmar. Neste caso, um miúdo de 13 anos. Não tenho um programa. Não é uma coisa programática. Não faço um cinema social ou político. Não tenho essa intenção.
Não quer mudar nada com o cinema?
Seria muito pessimista se achasse que o cinema não interfere na vida de uma pessoa que vê um filme. No meu caso, aprendi muito com o cinema e continuo a aprender. Continuo a interrogar-me com alguns filmes que vejo, mas usar um filme como panfleto para veicular uma mensagem ou algum discurso, isso não me interessa. O cinema é fascinante porque é ambíguo, como a vida.
Só procura mesmo manter a liberdade na criação?
Eu gosto de fazer os filmes desta forma. Não gosto de um filme em que a voz do realizador se sobrepõe à inteligência e à sensibilidade do espectador. Nesse sentido, gosto de fazer filmes acreditando que há algum espaço para que cada pessoa se possa incluir no filme de alguma forma, à sua maneira. O acto de nos ligarmos ao filme passa sempre pela individualidade, por aquilo que nós somos. Os filmes que nos interessam provocam sempre reacções muito diferentes. Não gosto que toda a gente ria no mesmo momento e que toda a gente chore no mesmo momento. As pessoas são todas diferentes, logo vão-se relacionar de forma diferente com o filme.
O cinema que faz é um cinema realista?
Não sei se realista é a palavra certa porque o realismo pressupõe uma espécie de imitação da realidade e eu acho que o cinema é, às vezes, mais transcendente do que a realidade. O cinema reconstrói, organiza a realidade, apresentando-a de outra forma. São pessoas, são espaços. Pessoalmente, gosto, cada vez menos, de utilizar a expressão “realismo” ou até “naturalismo” porque acho que pressupõe essa mimética da realidade. Isso não me interessa tanto porque, depois, reconstruo tudo com os actores.
Já que falamos nos actores, dá-lhes muita margem de manobra?
A parte da construção da personagem é sempre feita com os actores. Aliás, uma grande parte do trabalho é feita por eles e outra por mim. Coloco sempre os diálogos que escrevo em confronto com as ideias do actor que vai trabalhar comigo. E, muitas vezes, percebo que o ponto de partida era apenas isso. Um ponto de partida. Não era interessante em si mesmo. Neste filme, mais uma vez, reescrevi diálogos com os actores.
Costuma pensar em determinados actores para desempenhar os seus papéis?
Em alguns casos sim. No “Rafa”, especificamente, não, porque eu não conhecia o rapaz que queria ter nesse filme. Quando escrevi a primeira versão, sabia que esse miúdo já existia. Pensava: estou em casa, a escrever alguma coisa e, eventualmente, isto vai transformar-se num filme. E, algures, há um miúdo que eu não sei quem é – e ele também não sabe quem eu sou – que vai fazer um filme comigo daqui a algum tempo. É muito bonito esse processo. De repente, quando se encontra, neste caso, o miúdo que vai fazer o filme… Assim que o vi torna-se tudo muito óbvio. Tudo muito claro.
Foi um encontro por acaso?
Nós procurámos um miúdo em vários sítios: bairros, campos de futebol, na rua. O Rodrigo Perdigão [protagonista de “Rafa”] foi encontrado numa festa durante os Santos Populares, por um amigo meu que trabalhou no filme. Viu-o na rua, conversou com ele e foi assim. Um encontro por acaso. Nunca na vida ele pensou entrar num filme e quando o abordámos ele também ficou estranho. “Porque é que estão a falar comigo?”
Já tinha feito o mesmo em “Arena”.
Foi um pouco o mesmo método.
É fácil trabalhar com estes jovens amadores, alguns deles oriundos de contextos sociais complicados?
Não é fácil, mas eu também não tento controlar o trabalho deles. Esse descontrolo e essa coisa muito adolescente que eles têm – muito impulsiva e confusa – dão-lhes vida quando os filmo. Portanto, tento ao máximo que esses vestígios da vida deles continuem no filme. As personagens não são bem personagens. Não são bem eles próprios, mas também não são personagens. São um espaço intermédio em que uma realidade idealizada pelo filme se cruza com a realidade deles.
Até agora, só falámos em curtas-metragens. E as longa-metragens?
Em princípio, se tudo correr bem – com a crise a situação está um bocado complicada no Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA) –, devo entrar em rodagem da minha longa-metragem no final do ano. É a primeira. Tem um título provisório, mas vai mudar de certeza. Como os guiões. Eu não parto para a rodagem para confirmar alguma coisa que eu tinha imaginado. É precisamente o contrário. Parto para a rodagem como um viajante que se aventura num sítio qualquer desconhecido e que vai à procura de alguma coisa, mas não sabe muito bem o que é. Regresso com alguma coisa e, às vezes, não é o filme que imaginava. É outro. Mais interessante, normalmente.
A primeira versão deste guião foi escrita quando?
Em 2010. Já vai na terceira versão, mas agora tenho de escrever mais. Há muitas coisas que ainda não estão como quero.
Depender de subsídios complica muito a vida de quem faz cinema?
Em Portugal, já não basta existir muito pouco dinheiro para se fazer filmes – um filme custa dinheiro. Os sítios de onde chegam as verbas estão muito centralizados. Ao contrário de outros países onde há apoios locais, mecenato e apoio dos canais privados de televisão, em Portugal não existe nada disso para o cinema. Agora, há uma lei nova que está a ser discutida e, aparentemente, estão algumas coisas interessantes em cima da mesa. Há alguma expectativa por parte do sector para que alguma coisa mude daqui para à frente. Chegámos a um ponto que se tornou insuportável fazer cinema. Não há dinheiro. Há 15 anos que o valor de apoio do ICA não é aumentado. Nas longas-metragens, para a primeira obra, o subsídio anda à volta dos 500 mil euros. É um valor muito pequeno, quando comparado – e já nem falo de um filme norte-americano – com um filme espanhol, francês, inglês, italiano, húngaro, de onde quer que seja.
As co-produções aparecem em boa hora?
Pois. No caso do “Rafa” só me foi possível fazer o filme porque conseguimos uma co-produção em França. Tecnicamente, o filme é luso-francês, embora seja todo falado em português e filmado em Portugal. Há vários membros da equipa que são franceses e parte da pós-produção foi feita em França. Imagem e som foram feitos em Paris.
O nível que encontrou em França é superior ao de Portugal?
Em termos de meios técnicos, há mais estúdios, mais sítios onde fazer as coisas e o material é bom. Em termos humanos, acho que não. As pessoas que trabalham em cinema em Portugal são normalmente muito profissionais, rigorosas. Os filmes portugueses têm uma tradição de muita liberdade, mas ao mesmo tempo de muito rigor, muita precisão. A nível técnico e artístico. Pensamos no Manoel de Oliveira, Pedro Costa, João Pedro Rodrigues, Miguel Gomes, João Canijo, Marco Martins. São todos realizadores que trabalham com muito rigor e precisão. Portanto, é óbvio que isso seja abrangente a toda a comunidade do cinema. Aos directores de fotografia, engenheiros de som e por aí adiante.
Apesar das dificuldades, augura um bom futuro para o cinema português?
Acredito que os realizadores portugueses fazem filmes absolutamente incríveis. É quase um milagre termos sucessivamente filmes em Cannes e Berlim. Ainda agora no Festival de Roterdão havia nove filmes portugueses. São números que devem ser comparados com cinematografias muito maiores do que a nossa, como a espanhola ou a inglesa. Não sei se este ano há mais filmes ingleses e espanhóis em Berlim do que portugueses. Estamos a falar de países que fazem 200 filmes por ano e nós fazemos dez. Isto significa alguma coisa. É preciso o mínimo de condições para que estes filmes continuem a ser feitos. Tenho alguma esperança que a nova lei venha devolver alguma dignidade que se tem vindo a perder ao longo dos últimos anos em termos de apoios.
Cresceu num ambiente cinematográfico. Isso foi fulcral no percurso que escolheu seguir?
Influenciou bastante porque o meu pai [José Edgar Feldman] sempre trabalhou em cinema, televisão e fez documentários. Nos últimos filmes do Paulo Rocha, por exemplo, tem trabalhado como montador. Não foi uma influência forçada porque sempre tive a liberdade de fazer aquilo que quisesse. Mas, na verdade, cresci rodeado de filmes. Lembro-me do meu pai ter uma mesa de montagem antiga em casa e eu ouvia a repetição de planos durante um dia inteiro. Também via filmes do Kiarostami quando eles ainda davam na RTP2. Portanto, isto influenciou-me e com mais ou menos 18 anos decidi que queria fazer cinema. Aí, comecei a aperceber-me que fui beber muitas das coisas que via em casa.
O seu pai é um bom crítico?
Nós temos muitas conversas sobre o nosso trabalho. Ele é quase o primeiro crítico. Sabe, quando lê um guião escrito por mim, a razão de eu executar algo de uma forma em particular. Tenho uma sorte tremenda de o meu pai perceber o que faço.
Aos 25 anos venceu a Palma de Ouro para melhor curta-metragem. Foi difícil regressar à Terra depois disso?
Fiquei um pouco surpreendido porque normalmente não é dada atenção ao cinema português. O meu filme recebeu muita atenção. Mas não tanto pelo filme em si, mas mais pelo que conquistei. Por um lado, claro que fico extremamente feliz por saber que muita gente viu o filme e que se calhar não o iria ver se o prémio não tivesse chamado a atenção. Por outro lado, acho que foi um pouco perverso. É preciso acontecer uma coisa destas para que haja interesse.
Ainda se sente colado à imagem do “realizador que venceu a Palma de Ouro”?
Há muita gente que vê tudo à luz do filme que conquistou a Palma de Ouro. Surgem sempre comparações: “melhor, pior, diferente”. Há sempre o estigma de ser visto em comparação. Com o “Rafa” espero que tudo corra bem e que isso deixe de ser uma coisa que me persegue pelos maus motivos.
Mesmo assim, gostava de voltar a ganhar um grande prémio de cinema?
Claro. Estaria a mentir se não dissesse isso. Mas os prémios são coisas secundárias nos festivais.
Para Berlim não se vai esquecer de levar papillon, como aconteceu em Cannes [à última hora arranjou um]?
(risos) Acho que em Berlim a coisa é mais informal. Se puder ir de calças de ganga e sapatilhas é preferível. Não me sinto muito confortável naquele traje. (risos)
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paragrafopontofinal.wordpress.com
NOTAS DA REALIZADORA
Estávamos muito sossegadas a fazê-lo, sem pressas. Mas era preciso uma câmara maior além da minha pequena, e além disso era importante não perder nada do teu palavreado, nem as abelhas que te chateavam, ou os pássaros que não paravam de chilrear. Por isso chegou o Léo, com a câmara grande, o Olivier com todos os seus microfones e a coisa que te colava na barriga e de que tu não gostavas. Axelle, Solène, Sophie, as minhas amigas que estavam a ajudar, e Christiane, a minha mãe que nos fazia de comer.
No início, enfureceste-te, gritaste comigo, querias que eles se fossem embora, para que pudéssemos fazer o filme como antes, só as duas. Com o passar do tempo, tiveste menos medo, e por acaso eu também. O filme era o teu território, um local em que fizemos tudo para te dar a maior liberdade possível. Trabalhar significava inventar jogos, colocarmo-nos perguntas e tentar responder-lhes. Trabalhar era ver como lutavas para fazer as coisas como os crescidos, porque és teimosa como uma mula, acariciar o coelho, achá-lo querido e depois doce e compreender que estava morto.
Sabes, às vezes à noite, não tinha a certeza se tudo isto daria um filme. O que sabia era que conseguíamos filmar sem forçar nem o tempo, nem as coisas e sobretudo nem a ti. E tudo isso era muito importante. E quando parávamos de respirar, porque diante de nós aconteciam pequenos acidentes tocados pela graça, cada vez que isso acontecia eu pensava sim, talvez fosse isso o cinema. Porque sonhava fazer dessa maneira, em vivendo. Juntas vivemos e fizemos este filme, procurámo-lo pouco a pouco, contigo, o Alain, que se tornou teu vovô, e Marie, a tua mamã. Tudo isso embalado pela mais simples das músicas, a que nos rodeava, da madame natureza.
Com o trabalho, Nana transformou-se em filme, encontrou o seu caminho, a sua história, ao ritmo de uma menina e de um mundo que esquecemos, o mundo dos nossos 4 anos.
O nosso filme, Kelyna, parece-se com os filmes antigos, os velhos contos para crianças, simples e um pouco cruéis. Acredito nos filmes como nos gestos de amor, de mim para ti, de ti para mim, de nós para os outros.
Agora, é preciso oferecê-lo aos outros e ficar de pé.
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Valerie
Apesar de ser um realizador ainda em início de filmografia, desde já podem reconhecer-se traços autorais, reveladores de uma linguagem forte e marcada, através de pontos comuns aos seus três filmes (além de Rafa e Arena, Cerro Negro, uma encomenda da Gulbenkian, que esteve em competição no IndieLisboa). Um ótimo sinal que também se verificava nas primeiras curtas de realizadores como Miguel Gomes, Sandro Aguilar ou João Nicolau, embora os seus estilos sejam manifestamente diferentes. Há uma personalidade forte que atravessa a curta obra de João Salaviza, mas tal não se deve confundir com a descoberta de uma fórmula de sucesso, apenas a assunção de um universo e de uma linguagem.
Salaviza não se interessa pela burguesia, nem pelos dramas da classe média, mas por episódios realistas da classe baixa, urbana ou suburbana, desenraízada e frágil. É uma opção que engrandece os seus filmes até porque, como já alguém disse, a classe média não tem drama. O tempo e o ritmo são estreitos. Nunca há grandes elipses e permanece a ideia de uma viagem, de um percurso. E esse percurso altera as personagens. João Salaviza consegue no espaço de uma curta-metragem transmitir-nos essa forte ideia de mudança. Finalmente, parece haver uma obsessão pela prisão. O protagonista de Arena está em prisão domiciliária. Em Cerro Negro, a mulher visita o marido brasileiro que está preso. Em Rafa, o rapaz tenta libertar a mãe que foi detida por conduzir sem carta.
Em Arena, a ideia de prisão opõe-se à de liberdade. E o filme termina exatamente assim, com um gesto livre, o usufruto de um instante. Rafa, embora tenha a libertação da mãe (que nunca chegamos a ver) como pretexto, é um filme sobre o crescimento. Rafa, a criança-adolescente, atravessa a ponte, deixa a sua aldeia suburbana e arrisca-se na grande cidade, fazendo-se do homem da família. É como um ritual de iniciação, de passagem para a idade adulta. Salaviza, em entrevista ao JL, explicou que uma das dificuldades do casting foi descobrir um miúdo no estado intermédio, ainda criança mas quase rapaz. Rodrigo Perdigão foi um achado. E quando o filme acaba temos a noção de que alguma coisa mudou e aquele rapaz está agora mais preparado para a vida. Uma fábula do crescimento sintetizada num só dia.
O luxuoso complemento de Rafa é Nana, um belíssimo documento de Valerie Massadian, que esteve no IndieLisboa. Entra em contraste com Rafa, apenas pelo seu contexto rural. De resto, é uma forma muito crua de fazer um retrato de um dia no campo. Começa de forma algo chocante, com a matança de um porco, e depois vai avançando por pormenores do quotidiano de uma família, centrada em Nana, uma criança. Um ambiente raro, de forma crua, sem fantasias bucólicas, nem moralidades desajeitadas.
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Manuel Halpern, Visão
No início, uma matança do porco. No fim, uma canção em que se reconhece a voz da realizadora, Valérie Massadian, murmurada sobre o genérico: não mete mais medo? No início, sangue: a criança é testemunha, sabe que se mata para comer. No fim, para quem souber ver, talvez um pouco de pintura que o cinema se permite admitir. Estamos numa quinta da província francesa, na Basse-Normandie, mas isso não interessa muito, nem da quinta saímos. Quem está no centro? A pequena Nana (Kelyna Lecomte). Deve ter uns 4 anos. Tem um avô paciente, Nana. Pai, já era: nada dele sabemos. Mãe, criatura que se suspeita ser sinistra, vemo-la a sair depressa de um plano que é bem capaz de ser um flashback, mas não estamos muito seguros disso: a câmara está à altura da miúda, é pelos de Nana que olhamos para os seres e as coisas, e esta relação com o tempo é um jogo que não se joga nem à mesma escala nem com a mesma ordem dos adultos.
Do filme, não há grande história a contar. Contamos isto: "Nana" é a história de uma ex-modelo que também trabalhou longos anos em cinema e decidiu fazer um filme por uma força maior. Escreveu algumas páginas de argumento. Viu não sei quantas crianças em casting até se render a uma, indomável e possuída de singular imunidade ao comportamento dos adultos. Levou-a pela mão, bateu à porta da quinta de um vizinho de longa data (Alain Sabras, que faz de avô) e fez nascer um filme. À criança, perguntou: "Vamos passar algum tempo juntos?"
Documentário sobre a infância no seu estado puro, "Nana"? Ficção sobre os seus demónios? Ambos, seguramente, mas não é por teoria que "Nana" funde fascínio e terror e provoca tanto fascínio e tanto terror. O que fascina e aterroriza - e o que, admitamos, é da ordem do milagroso - é que esta infância sem carícias, a de Nana no filme de Valérie Massadian, consegue entregar-se ao abandono de si própria com o prazer de um conto fantasmagórico. Partilha uma estranha relação com as leis da natureza e recorda-nos que cinema e pedagogia, sobretudo quando se tem uma criança à frente da câmara, têm energias absolutamente irreconciliáveis. Quem quiser 'domesticar' esta miúda com a boa-fé da sua consciência vai arranjar problemas graves com o filme. Quem tentar fazê-lo, vai entrar em guerra com Nana e talvez acabe morto por ela, como aquela mãe que a miúda mata no seu jogo, que é bem real, não tem perdão nem deixa remorsos.
"Nana", já o escrevemos no ano passado em Locarno (onde se estreou e venceu o prémio de melhor primeira obra), tem irmãos no cinema francês. Irmãos de sangue perdidos ou tão-só desejados, em filmes de Truffaut, de Eustache, de Doillon e, sobretudo, no "L'Enfance Nue", de Pialat - todos eles nos trouxeram crianças guerreiras aos quais a beatitude estava interdita. Crianças que devoravam o mundo e que faziam dele a sua própria découpage. Nana é uma dessas crianças - e uma das criaturas mais poderosas que o cinema deu a ver nos últimos tempos. Sobrevive à morte dos porcos e à morte dos homens enquanto devolve a vida à carcaça de um coelho. Faz a sua própria fogueira no seu mundo de criança. E é quando nos apercebemos desse estado de incandescência da personagem que "Nana", o filme mais frágil do mundo, tão frágil que parece a cada segundo correr o perigo de extinguir-se, ganha uma força bruta.
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Francisco Ferreira, Expresso
ENTREVISTA A JOÃO SALAVIZA
Esta é mais uma história rodada num contexto urbano, como a grande Lisboa, mas que está um pouco à margem daquilo que se assume como “normal”. Gosta de captar estas realidades?
No caso do “Rafa”, filmei o momento em que o papel de responsabilidade dentro de uma família se reverte. É um miúdo que tenta ser o homem da casa. Sou uma pessoa que tem uma ligação muito forte com a cidade de Lisboa. Nasci e vivi em Lisboa praticamente toda a minha vida. Interessa-me fazer filmes verdadeiramente pequenos, dentro de casas, com miúdos. Não me interesso por narrativas muito épicas e aglutinadoras. O próprio modelo de produção dos filmes permite-me estar próximo de quem estou a filmar. Neste caso, um miúdo de 13 anos. Não tenho um programa. Não é uma coisa programática. Não faço um cinema social ou político. Não tenho essa intenção.
Não quer mudar nada com o cinema?
Seria muito pessimista se achasse que o cinema não interfere na vida de uma pessoa que vê um filme. No meu caso, aprendi muito com o cinema e continuo a aprender. Continuo a interrogar-me com alguns filmes que vejo, mas usar um filme como panfleto para veicular uma mensagem ou algum discurso, isso não me interessa. O cinema é fascinante porque é ambíguo, como a vida.
Só procura mesmo manter a liberdade na criação?
Eu gosto de fazer os filmes desta forma. Não gosto de um filme em que a voz do realizador se sobrepõe à inteligência e à sensibilidade do espectador. Nesse sentido, gosto de fazer filmes acreditando que há algum espaço para que cada pessoa se possa incluir no filme de alguma forma, à sua maneira. O acto de nos ligarmos ao filme passa sempre pela individualidade, por aquilo que nós somos. Os filmes que nos interessam provocam sempre reacções muito diferentes. Não gosto que toda a gente ria no mesmo momento e que toda a gente chore no mesmo momento. As pessoas são todas diferentes, logo vão-se relacionar de forma diferente com o filme.
O cinema que faz é um cinema realista?
Não sei se realista é a palavra certa porque o realismo pressupõe uma espécie de imitação da realidade e eu acho que o cinema é, às vezes, mais transcendente do que a realidade. O cinema reconstrói, organiza a realidade, apresentando-a de outra forma. São pessoas, são espaços. Pessoalmente, gosto, cada vez menos, de utilizar a expressão “realismo” ou até “naturalismo” porque acho que pressupõe essa mimética da realidade. Isso não me interessa tanto porque, depois, reconstruo tudo com os actores.
Já que falamos nos actores, dá-lhes muita margem de manobra?
A parte da construção da personagem é sempre feita com os actores. Aliás, uma grande parte do trabalho é feita por eles e outra por mim. Coloco sempre os diálogos que escrevo em confronto com as ideias do actor que vai trabalhar comigo. E, muitas vezes, percebo que o ponto de partida era apenas isso. Um ponto de partida. Não era interessante em si mesmo. Neste filme, mais uma vez, reescrevi diálogos com os actores.
Costuma pensar em determinados actores para desempenhar os seus papéis?
Em alguns casos sim. No “Rafa”, especificamente, não, porque eu não conhecia o rapaz que queria ter nesse filme. Quando escrevi a primeira versão, sabia que esse miúdo já existia. Pensava: estou em casa, a escrever alguma coisa e, eventualmente, isto vai transformar-se num filme. E, algures, há um miúdo que eu não sei quem é – e ele também não sabe quem eu sou – que vai fazer um filme comigo daqui a algum tempo. É muito bonito esse processo. De repente, quando se encontra, neste caso, o miúdo que vai fazer o filme… Assim que o vi torna-se tudo muito óbvio. Tudo muito claro.
Foi um encontro por acaso?
Nós procurámos um miúdo em vários sítios: bairros, campos de futebol, na rua. O Rodrigo Perdigão [protagonista de “Rafa”] foi encontrado numa festa durante os Santos Populares, por um amigo meu que trabalhou no filme. Viu-o na rua, conversou com ele e foi assim. Um encontro por acaso. Nunca na vida ele pensou entrar num filme e quando o abordámos ele também ficou estranho. “Porque é que estão a falar comigo?”
Já tinha feito o mesmo em “Arena”.
Foi um pouco o mesmo método.
É fácil trabalhar com estes jovens amadores, alguns deles oriundos de contextos sociais complicados?
Não é fácil, mas eu também não tento controlar o trabalho deles. Esse descontrolo e essa coisa muito adolescente que eles têm – muito impulsiva e confusa – dão-lhes vida quando os filmo. Portanto, tento ao máximo que esses vestígios da vida deles continuem no filme. As personagens não são bem personagens. Não são bem eles próprios, mas também não são personagens. São um espaço intermédio em que uma realidade idealizada pelo filme se cruza com a realidade deles.
Até agora, só falámos em curtas-metragens. E as longa-metragens?
Em princípio, se tudo correr bem – com a crise a situação está um bocado complicada no Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA) –, devo entrar em rodagem da minha longa-metragem no final do ano. É a primeira. Tem um título provisório, mas vai mudar de certeza. Como os guiões. Eu não parto para a rodagem para confirmar alguma coisa que eu tinha imaginado. É precisamente o contrário. Parto para a rodagem como um viajante que se aventura num sítio qualquer desconhecido e que vai à procura de alguma coisa, mas não sabe muito bem o que é. Regresso com alguma coisa e, às vezes, não é o filme que imaginava. É outro. Mais interessante, normalmente.
A primeira versão deste guião foi escrita quando?
Em 2010. Já vai na terceira versão, mas agora tenho de escrever mais. Há muitas coisas que ainda não estão como quero.
Depender de subsídios complica muito a vida de quem faz cinema?
Em Portugal, já não basta existir muito pouco dinheiro para se fazer filmes – um filme custa dinheiro. Os sítios de onde chegam as verbas estão muito centralizados. Ao contrário de outros países onde há apoios locais, mecenato e apoio dos canais privados de televisão, em Portugal não existe nada disso para o cinema. Agora, há uma lei nova que está a ser discutida e, aparentemente, estão algumas coisas interessantes em cima da mesa. Há alguma expectativa por parte do sector para que alguma coisa mude daqui para à frente. Chegámos a um ponto que se tornou insuportável fazer cinema. Não há dinheiro. Há 15 anos que o valor de apoio do ICA não é aumentado. Nas longas-metragens, para a primeira obra, o subsídio anda à volta dos 500 mil euros. É um valor muito pequeno, quando comparado – e já nem falo de um filme norte-americano – com um filme espanhol, francês, inglês, italiano, húngaro, de onde quer que seja.
As co-produções aparecem em boa hora?
Pois. No caso do “Rafa” só me foi possível fazer o filme porque conseguimos uma co-produção em França. Tecnicamente, o filme é luso-francês, embora seja todo falado em português e filmado em Portugal. Há vários membros da equipa que são franceses e parte da pós-produção foi feita em França. Imagem e som foram feitos em Paris.
O nível que encontrou em França é superior ao de Portugal?
Em termos de meios técnicos, há mais estúdios, mais sítios onde fazer as coisas e o material é bom. Em termos humanos, acho que não. As pessoas que trabalham em cinema em Portugal são normalmente muito profissionais, rigorosas. Os filmes portugueses têm uma tradição de muita liberdade, mas ao mesmo tempo de muito rigor, muita precisão. A nível técnico e artístico. Pensamos no Manoel de Oliveira, Pedro Costa, João Pedro Rodrigues, Miguel Gomes, João Canijo, Marco Martins. São todos realizadores que trabalham com muito rigor e precisão. Portanto, é óbvio que isso seja abrangente a toda a comunidade do cinema. Aos directores de fotografia, engenheiros de som e por aí adiante.
Apesar das dificuldades, augura um bom futuro para o cinema português?
Acredito que os realizadores portugueses fazem filmes absolutamente incríveis. É quase um milagre termos sucessivamente filmes em Cannes e Berlim. Ainda agora no Festival de Roterdão havia nove filmes portugueses. São números que devem ser comparados com cinematografias muito maiores do que a nossa, como a espanhola ou a inglesa. Não sei se este ano há mais filmes ingleses e espanhóis em Berlim do que portugueses. Estamos a falar de países que fazem 200 filmes por ano e nós fazemos dez. Isto significa alguma coisa. É preciso o mínimo de condições para que estes filmes continuem a ser feitos. Tenho alguma esperança que a nova lei venha devolver alguma dignidade que se tem vindo a perder ao longo dos últimos anos em termos de apoios.
Cresceu num ambiente cinematográfico. Isso foi fulcral no percurso que escolheu seguir?
Influenciou bastante porque o meu pai [José Edgar Feldman] sempre trabalhou em cinema, televisão e fez documentários. Nos últimos filmes do Paulo Rocha, por exemplo, tem trabalhado como montador. Não foi uma influência forçada porque sempre tive a liberdade de fazer aquilo que quisesse. Mas, na verdade, cresci rodeado de filmes. Lembro-me do meu pai ter uma mesa de montagem antiga em casa e eu ouvia a repetição de planos durante um dia inteiro. Também via filmes do Kiarostami quando eles ainda davam na RTP2. Portanto, isto influenciou-me e com mais ou menos 18 anos decidi que queria fazer cinema. Aí, comecei a aperceber-me que fui beber muitas das coisas que via em casa.
O seu pai é um bom crítico?
Nós temos muitas conversas sobre o nosso trabalho. Ele é quase o primeiro crítico. Sabe, quando lê um guião escrito por mim, a razão de eu executar algo de uma forma em particular. Tenho uma sorte tremenda de o meu pai perceber o que faço.
Aos 25 anos venceu a Palma de Ouro para melhor curta-metragem. Foi difícil regressar à Terra depois disso?
Fiquei um pouco surpreendido porque normalmente não é dada atenção ao cinema português. O meu filme recebeu muita atenção. Mas não tanto pelo filme em si, mas mais pelo que conquistei. Por um lado, claro que fico extremamente feliz por saber que muita gente viu o filme e que se calhar não o iria ver se o prémio não tivesse chamado a atenção. Por outro lado, acho que foi um pouco perverso. É preciso acontecer uma coisa destas para que haja interesse.
Ainda se sente colado à imagem do “realizador que venceu a Palma de Ouro”?
Há muita gente que vê tudo à luz do filme que conquistou a Palma de Ouro. Surgem sempre comparações: “melhor, pior, diferente”. Há sempre o estigma de ser visto em comparação. Com o “Rafa” espero que tudo corra bem e que isso deixe de ser uma coisa que me persegue pelos maus motivos.
Mesmo assim, gostava de voltar a ganhar um grande prémio de cinema?
Claro. Estaria a mentir se não dissesse isso. Mas os prémios são coisas secundárias nos festivais.
Para Berlim não se vai esquecer de levar papillon, como aconteceu em Cannes [à última hora arranjou um]?
(risos) Acho que em Berlim a coisa é mais informal. Se puder ir de calças de ganga e sapatilhas é preferível. Não me sinto muito confortável naquele traje. (risos)
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NOTAS DA REALIZADORA
Estávamos muito sossegadas a fazê-lo, sem pressas. Mas era preciso uma câmara maior além da minha pequena, e além disso era importante não perder nada do teu palavreado, nem as abelhas que te chateavam, ou os pássaros que não paravam de chilrear. Por isso chegou o Léo, com a câmara grande, o Olivier com todos os seus microfones e a coisa que te colava na barriga e de que tu não gostavas. Axelle, Solène, Sophie, as minhas amigas que estavam a ajudar, e Christiane, a minha mãe que nos fazia de comer.
No início, enfureceste-te, gritaste comigo, querias que eles se fossem embora, para que pudéssemos fazer o filme como antes, só as duas. Com o passar do tempo, tiveste menos medo, e por acaso eu também. O filme era o teu território, um local em que fizemos tudo para te dar a maior liberdade possível. Trabalhar significava inventar jogos, colocarmo-nos perguntas e tentar responder-lhes. Trabalhar era ver como lutavas para fazer as coisas como os crescidos, porque és teimosa como uma mula, acariciar o coelho, achá-lo querido e depois doce e compreender que estava morto.
Sabes, às vezes à noite, não tinha a certeza se tudo isto daria um filme. O que sabia era que conseguíamos filmar sem forçar nem o tempo, nem as coisas e sobretudo nem a ti. E tudo isso era muito importante. E quando parávamos de respirar, porque diante de nós aconteciam pequenos acidentes tocados pela graça, cada vez que isso acontecia eu pensava sim, talvez fosse isso o cinema. Porque sonhava fazer dessa maneira, em vivendo. Juntas vivemos e fizemos este filme, procurámo-lo pouco a pouco, contigo, o Alain, que se tornou teu vovô, e Marie, a tua mamã. Tudo isso embalado pela mais simples das músicas, a que nos rodeava, da madame natureza.
Com o trabalho, Nana transformou-se em filme, encontrou o seu caminho, a sua história, ao ritmo de uma menina e de um mundo que esquecemos, o mundo dos nossos 4 anos.
O nosso filme, Kelyna, parece-se com os filmes antigos, os velhos contos para crianças, simples e um pouco cruéis. Acredito nos filmes como nos gestos de amor, de mim para ti, de ti para mim, de nós para os outros.
Agora, é preciso oferecê-lo aos outros e ficar de pé.
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Valerie
Realização e Argumento: João Salaviza
Imagem: Vasco Viana
Som: Olivier Blanc
Direção de Arte: Nadia Henriques
Interpretação: Rodrigo Perdigão, Joana Verona
Montagem: Rodolphe Molla e João Salaviza
Origem: Portugal/França
Ano: 2012
Duração: 25'
Realização: Valerie Massadian
Imagem: Léo Hinstin, Valerie Massadian
Som: Olivier Dandré, Jonathan Laurent
Montagem: Dominique Auvray, Valerie Massadian
Interpretação: Kelyna Lecomte, Alain Sabras, Marie Delmas, Yves Monguillon, Léo e Max Penot
Origem: França
Ano: 2011
Duração: 68'