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Hepburn e Tracy - olha que dois! Comédias clássicas nos Jardins da Sede, às 5f!

CINEMA AO AR LIVRE - DIA 7 DE JUNHO, 21h30, Entrada Livre.

A COSTELA DE ADÃO, George Cukor, EUA, 1949, 101’

Houve um tempo de glória em Hollywood. Quando a grande arte da representação era servida por belos guiões e inteligentes diálogos. Quando o humor não precisava de ser imbecil, escatológico ou primário. Quando a 'guerra dos sexos' era ao nível das palavras e das atitudes, não ao nível dos slogans ou dos estereótipos.

Houve um tempo de glória em Hollywwod. Quando a cumplicidade entre actores, marido e mulher na vida real (numa das mais belas histórias de amor que a 7ª Arte presenciou), era servida pelo wit e pela mestria de um dos maiores entre os maiores, George Cukor.

Houve um tempo de glória em Hollywwod, protagonizado pela imortal Katahrine Hepburn, uma das maiores actrizes de cinema de todos os tempos, e o seu inseparável Spencer Tracy, outro de que se tem inevitáveis saudades.

Há um tempo de glória em Hollywood, nos jardins da nossa sede, em noites de Verão. Em Junho, às 5ªfeiras. As entradas são livres, os vizinhos estão convidados a espreitar os filmes das suas janelas ou, convosco, a descer até às nossas cadeiras de esplanada, recostarem-se com uma água ou uma cervejinha fresquinha na mão, e divertirem-se, divertirem-se, até mais não.

Anabela Moutinho

Um casal de advogados confronta-se em tribunal, defendendo as causas opostas de outro casal: Amanda Bonner defende Doris Attinger, acusada de ter alvejado o marido infiel na companhia da amante, depois de o seu marido, Adam Bonner, ter sido incumbido de defender o marido atacado, Warren Attinger. A relação conjugal entre o casal de advogados deteriora-se à medida que as audiências vão decorrendo sob o signo de uma cruzada em nome dos direitos das mulheres, direcção para a qual Amanda encaminha o processo que acaba por ganhar. O divórcio dos dois advogados, a que o processo conduz, é impedido no último momento por Adam, utilizando um estratagema normalmente associado ao imaginário feminino, lágrimas e suspiros, a que Amanda não resiste.

Certamente o melhor filme da dupla Spencer Tracy / Katharine Hepburn, Adam's Rib é, para além disso, uma das obras primas máximas da carreira do genial cineasta George Cukor, um momento de felicidade total ao nível de Holiday e The Philadelphia Story, ambos com Katharine Hepburn. Não se pretende com isso menosprezar os filmes com Crawford, Garbo e Marilyn, mas é facto que a actriz cukoriana por excelência é Katharine Hepburn e foi com ela que Cukor levou a sua sofisticadíssima, requintadíssima arte até ao seu zénite. E como a actriz cukoriana número dois é Judy Holliday, protagonista de Born Yesterday, The Marrying Kind e It Should Happen to You, é evidente que o filme que reúne as duas deverá ocupar um lugar muito especial nas devoções que os cukorianos fanáticos oferecem ao Mestre (devoções essas que consistem, como é óbvio, em rever, rever, rever...). E o que dizer da sequência magistral entre as duas actrizes fétiche do cinema de Cukor em Adam's Rib, que dura mais de sete minutos sem um único corte? Claro que a marca do teatro é muito forte, tanto em Cukor, como em Hepburn e Holliday; e todos três gostavam de takes gigantescos, que desafiassem ao máximo o seu virtuosismo (lembre-se o jogo de cartas entre Holliday e Broderick Crawford em Born Yesterday, representado à frente de uma câmara totalmente estática, durante o qual é impossível tirarmos os olhos de Judy Holliday). Para além da contribuição destas distintas senhoras (não esquecer a fabulosa Jean Hagen), temos, em Adam's Rib, o papel que muitos consideram o melhor de Spencer Tracy, pelo que - sob qualquer perspectiva - estamos na presença de um filme que, como poucos, reúne elegância estilística, sentido cómico, sátira social e virtuosismo cinemático (de todos quantos nele participam), de modo a chegar, o mais perto que é possível chegar, ao estado, puro e simples, de perfeição.

Grande parte do sucesso de Adam's Rib deriva, também, da contribuição dos argumentistas Ruth Gordon e Garson Kanin, que iniciaram a sua colaboração com George Cukor em 1947 com A Double Life, e que continuaria com os filmes de Judy Holliday, Pat and Mike da dupla Tracy-Hepburn e The Actress, igualmente com Tracy. Tanto o casal Kanin como o casal Tracy-Hepburn eram grandes amigos de Cukor, e o argumento de Adam's Rib (e de Pat and Mike também) foi como que feito "por medida" para se adequar totalmente ao efeito que Tracy e Hepburn produziam juntos no ecrã. Claro que se tomou partido do conhecimento tácito, por parte de toda a gente, de que Tracy e Hepburn "andavam", para encenar com mais eficácia ainda a "guerra dos sexos" que o par protagoniza nos seus filmes mais famosos. O paradigma fora estabelecido por George Stevens em Woman of the Year, mas Adam's Rib mostra-nos a diferença ("vive la diftérence!") entre um cineasta competente e um cineasta genial: no filme de Cukor, a solução do conflito não se reduz à humilhação ritual de Hepburn como em Woman of the Year: a preocupação em Adam's Rib e Pat and Mike é sempre a ideia de fifty-fifty, de que ambos são iguais, à excepção de uma "pequena diferença" (fisiológica), como diz Hepburn, que suscita a afirmação não-chauvinista de Tracy: “viva essa diferença!”.

O problema dos direitos de este ou aquele sexo acaba por ceder a outro, muito mais profundo e globalizante, de que todos os seres humanos têm direito à sua individualidade, desde que a afirmação dessa individualidade não passe pela violação da individualidade de outra pessoa qualquer (no fundo, o erro em que Doris Attinger/Judy Holliday incorre ao querer dar um tiro no marido ou na amante do marido, e que Adam/Tracy encena - é esse o termo quando finge que vai disparar sobre Amanda/Hepburn e Kip/David Wayne).

Outro aspecto importante a realçar é o facto de Adam's Rib ser ao mesmo tempo profundamente cinemático e profundamente teatral. Se toda a primeira sequência avulta como cinema em estado puro, o resto do filme concilia efectivamente as duas abordagens possíveis a uma narrativa dramática. As entradas e saídas em casa dos Bonner e as cenas passadas no tribunal evidenciam o background teatral de Gordon, Kanin e de Cukor; mas em nenhum momento do filme é possível aplicar a terrível qualificação de "teatro filmado", apesar das provocações em que Cukor se compraz no seu jogo de cortinas e de legendas (cinema) emolduradas por cortinas (teatro) que vão aparecendo ao longo do filme. Mesmo o longo take em que decorre o "racconto" de Judy Holliday não é teatral: a câmara tem o condão de tornar infinitamente mais verdadeira a própria verdade do teatro (cujo étimo se relaciona, de qualquer forma, com a ideia de "ver"), dando azo a que o actor possa levar a sua arte ao limite máximo com a maior economia de meios. Não há, para além do mais, qualquer discrepância entre os desempenhos dos actores cuja técnica só poderia resultar no cinema (como Ewell, Hagen e, obviamente, o fabuloso "bicho do cinema" que foi Spencer Tracy) e os de Hepburn e Holliday, actrizes bilingues cuja língua materna tanto era o cinema como o teatro.

Aquilo em que assenta a comi cidade de Adam's Rib é algo que não é fácil definir. Não é só a fórmula de antagonismo e atracção mútua entre o herói e a heroína que, como na screwball comedy (exemplo perfeito: Bringing Up Baby de Howard Hawks), está na base dos efeitos cómicos do filme. Em Adam's Rib a comicidade deriva muito mais dos problemas relativos à sexualidade das personagens do que de outra coisa qualquer: desde as aventuras adúlteras de Ewell e Jean Hagen à homossexualidade mal disfarçada de Kip ("não falta muito", diz Tracy quando o compositor afirma que se identifica tanto com os problemas das mulheres que "I might even become a woman myself', feminilidade essa que lembra a personagem de Clístenes, que é gozada várias vezes nas comédias de Aristófanes), esta comédia cukoriana acerca do significado de ser macho ou fêmea (ou uma mistura dos dois: o que é afinal a "costela de Adão"?) acaba por ser uma farsa do mais puro rococó sobre a actividade humana a que Hepburn e Tracy se entregam quando, no final do filme, cai o pano e aparece a legenda "the end".
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Frederico Lourenço, George Cukor – As Folhas da Cinemateca




Título Original: Adam's Rib
Realização: George Cukor
Argumento: Ruth Gordon e Carson Kanin
Fotografia: George Folsey
Montagem: George Boemler
Música: Miklos Rozsa; canção "Farewell Amanda" de Cole Porter
Interpretação: Spencer Tracy (Adam Bonner), Katharine Hepburn (Amanda Bonner), Judy Holliday (Doris Attinger), Tom Ewell (Warren Attinger), Jean Hagen (Beryl Caighn), David Wayne (Kip Lurie), Hope Emerson (Olympia La Pere), Eve March (Grace), Clarence Kolb (Juiz Reiser), Emerson Treacy (lules Frikkie), Polly Moran (Mrs McGrath), Will Wright (Juiz Marcasson), Elizabeth Flournoy (Dr Margaret Brodeigh), Janna da Loos (Mary), Joe Bernard (pai de Adam), Madge Blake (mãe de Adam), Paula Raymond (Emerald)
Origem: EUA
Ano: 1949
Duração: 101’