dos ingleses também não vale a
pena andarmos a armar ao pingarelho. Este é um filme fiel ao espírito do livro,
mesmo que não à sua forma; o artificialismo distanciado e assumido, a
construção da história de Carlos da Maia em “quadros” ou “cenas” que parecem
saídos de uma ópera escarninha, são perfeitos para dar a dimensão de “fogueira
das vaidades” da Lisboa de 1875 vista por Eça.
segundo João
Botelho são uma parada de costumes de uma capital prisioneira das aparências,
onde todos estão constantemente em cena como num palco permanente onde importa
mais parecer do que ser. É aí que o filme se eleva muito alto, logo a partir do
genérico que cria um imediato efeito de distanciamento; é uma espécie de
filme-pantomima, de ópera (bufa) de bolso de um Portugal dos pequeninos,
sublinhada pelo romantismo exacerbado das escolhas musicais, pela opulência da
fotografia de João Ribeiro, pelo artificialismo aguarelado dos telões de João
Queiroz que fazem a vez de exteriores.
Entrevista ao Realizador
Há
quantos anos se pensava em levar ao cinema o célebre romance de Eça de Queirós
sem que ninguém tenha arriscado dar esse passo? Ao imortal “Os Maias”,
acrescenta agora João Botelho um novo comentário e também um apêndice ao
título, “Cenas da Vida Romântica”, que o cineasta explica em entrevista. “Os
Maias” é o seu filme mais forte deste milénio. Um grande Botelho. Valeu a pena
esperar pela ousadia. E pelo atrevimento.
Há no filme algo que vem obviamente do Eça mas que eu creio
que você sublinhou na adaptação:
uma noção de presente. Um presente com
um abismo à espreita. O livro acaba quando Portugal está à beira de uma
bancarrota e os tempos de ontem, tão diferentes, não deixaram de ser os tempos
de hoje. Decidiu pegar neste livro agora também por isso?
É uma
pergunta justa. O Eça tem outros romances prodigiosos mas eu estou convencido
de que o único que se pode transportar para os dias de hoje é “Os Maias”. O Eça
demorou sete anos a escrevê-lo. E agarrou Portugal. Os comportamentos são
iguais. Os Afonsos da Maia, os Dâmasos, os Gouvarinhos, os banqueiros Cohen
andam aí à solta... Sim, é a história do fim de uma época: uns tempos depois da
publicação do livro, em 1888, Portugal entrou em bancarrota. A monarquia pediu
a um banco inglês um empréstimo amortizável a 99 anos e a dívida só foi
liquidada em 2001. Agora
a sra. Merkel quer que nós paguemos ‘isto’ em quatro anos... é estranho. O Eça
agarrou uma era neste livro. E até o seu assunto central, que é um tabu para
onde tudo converge, o incesto, é um incesto político com um destino funesto: já
não há ninguém com quem dormir e para que esta nossa ‘raça’ se mantenha o irmão
tem que dormir com a irmã.
Disse várias vezes que nunca fez um filme de época.
Nunca.
Fiz sempre filmes sobre os dias em que filmei, sobre o presente. Resisto ao
filme de época, não sei o que é. Conheço os tempos de hoje, mais nada. E gosto
de anacronismos.
O genérico de “Os Maias — Cenas
da Vida Romântica” recorda essa ideia quando expõe a matéria do filme em
estúdio: o livro, o décor, os figurinos, as anotações ao texto, etc.
Mostram-se os ingredientes antes de começar o cozinhado?
O genérico
é a chave para abrir a porta. É a exposição dos artifícios do filme que se vai
seguir, uma falsidade que nos é dada à partida, um pouco como no ‘espetáculo
dos espetáculos, que é a ópera: se a senhora de 50 anos que sobe ao palco para
fazer de adolescente cantar maravilhosamente. se a sua interpretação for justa,
acreditamos nela.
E
choramos. O genérico expõe ainda outra coisa: não foi por acaso que eu escolhi
um barítono, Jorge Vaz de Carvalho, para a voz do Eça. Ou seja, a voz do
narrador é a voz de um cantor de ópera. Foi uma escolha deliberada para
instaurar à partida uma ideia de libretto ou de filme cantado. Uma vez
instalada a falsidade, tudo a partir daí passa a ser verdade. E com isso, é o
texto que ganha. Quando adaptei Pessoa em “Filme do Desassossego” a luta com o
texto foi muito diferente. O trabalho levou-me a tender para um gesto de
abstração. No caso de “Os Maias”, pelo contrário, mantive as narrativas e as
suas várias camadas: um discurso político, outro social, outro ainda
psicológico. Comportamentos humanos.
Qual foi a maior dificuldade da
adaptação?
Decidir
o que cortar. Eu não escrevi nada neste filme. Não há uma frase minha, vem tudo
do livro. Fiz apenas uma alteração mais radical: não dou o flashback da
família de Carlos Eduardo tal como está no livro. Coloco-o por ordem
cronológica, num passado que abre a história.
Esse passado é a preto e branco.
Porquê?
Não
foi por uma questão de atitude estética mas sim narrativa. É um resumo do
passado antes de se passar à cor e ao bloco central do livro sobre a paixão
impossível de Carlos por Maria Eduarda. No final, que corresponde às últimas
páginas do romance dez anos após a ação central, a cor, não sei se se deu
conta, também quase desaparece, está deslavada. O Eça diz que Lisboa está igual
dez anos depois, “mas um bocado mais porca.” Apesar de ter surgido a Praça dos
Restauradores entretanto, e a modernização do Passeio Público, aquela já não é
a Lisboa traçada pelo marquês de Pombal, é a Lisboa do carvão, do gás, das ruas
cheias de pedintes. Já os políticos... Estão iguais.
O
filme passa do preto e branco à cor no exato momento
em que o narrador fala da transladação do corpo do pai de Carlos, Pedro da
Maia, que se suicidara por amor...
Segui
esta ideia simples: agora vamos romper com o passado e contar uma história. Uma
história já de si fragmentada, que pode ser contada de mil maneiras diferentes.
É possível fazer um filme inteiro só sobre a descrição da Casa do Ramalhete. Ou
uma curta apenas sobre os reflexos da luz no cabelo de Maria Eduarda. No
entanto, eu sei que este romance é absolutamente central na história da
literatura portuguesa e que as pessoas têm a expectativa de sentirem a sua
narrativa no filme. Não o esqueci.
Há um acrescento aos ‘seus’ Maias no
título: “Cenas da Vida Romântica”. Porquê?
Havia
um grande problema que se deparava à adaptação: o livro é já de si fragmentado,
sincopado, e é difícil escolher um só ponto de vista. Ora, eu tinha que ter um
ponto de vista no filme. Que acaba por incidir muito na metade do alter-ego do
Eça na história: o João da Ega. Volto à questão anterior: este filme chama- se
“Cenas da Vida Romântica” mas podia ter dado origem a outro chamado “Episódios
da Comédia Portuguesa”. Há sempre uma distância reflexiva no livro, há a tensão
dramática do tédio aristocrático, mas também o seu comentário impiedoso, que
vem do João da Ega.
Como ele diz, “o desacato é...
“a
condição do progresso”. Mais uma das frases lapidares do Eça, como esta: “para
que é que serve o Governo? Para contrair empréstimos e cobrar impostos. . .“ Há
de ser sempre assim neste modo de vida à portuguesa. Os personagens do Eça são
arquétipos, isto é, são personagens coletivas.
Já adaptou Pessoa, Agustina, Diderot,
Garrett. E também Dickens, há mais de vinte
anos, em “Tempos Difíceis”. Ao adaptar agora
Eça, ficou surpreendido pelo tom e pelo ritmo que o filme ganhou? Tive a sensação no visionamento que, ora é o texto que convida a imagem, ora é a imagem que atraí o texto e o filme vive muito desta atração mútua.
Houve
adaptações mais evidentes que outras. Por exemplo, em “Tempos Difíceis” tinha
indicações de cinema que nunca mais acabavam. Estão no livro. Isto é obviamente
anacrónico mas não sou eu que o digo, foi Eisenstein, na sua arrasadora frase:
“O cinema não foi inventado por Griffith mas sim por Dickens.” Ou seja, 50 anos
antes de haver cinema, um escritor pensou numa estrutura de cinema para o seu
romance, com elipses indicadas, capítulos a terminarem em plano geral e o
seguinte a começar em grane plano. Adaptar o Dickens foi por isso mais simples:
limitei-me a tirar a carne e a deixar o osso. No Garrett houve cortes
profundos, “Quem és Tu?” deixou de ser “Ninguém” e passou a ser Portugal.
Filmei-o numa altura em que os espanhóis compraram meia Avenida da Liberdade.
Já não eram os Filipes mas uma
armada financeira de Zaras e bancos Santander. No caso de “Os Maias” a ameaça é
a bancarrota. Adaptar o Eça é fácil, pela história fluida do livro mas
complicada porque o filme deveria ter 20 horas se quisesse ser fiel. E eu
tentei não ser traidor. Repito: o problema foi saber o que cortar. Ajudou-me saber
que o próprio Eça, num comentário sobre o seu livro, escreveu
que, se lhe pedissem para resumir “Os Maias”, ele publicava apenas o Sarau da
Trindade e mais nada. Porque está lá Portugal inteiro. A sua demagogia
provinciana, a sua subserviência inata, o nosso ‘obrigadinho’. Coisas que
voltaram depois da euforia democrática que tivemos com a Revolução de Abril que
estão agora cada vez mais presentes. Voltámos a cair cedo nesta nossa saga
portuguesa: a pedinchice, a cunha, os padrinhos.
Demorou até conseguir concentrar no filme todos esses elementos? Muito. A adaptação levou-me muitos meses de
trabalho. Entretanto, fui descobrindo outras coisas sobre o espírito
moderno de Eça que eu não conhecia: que ele tinha uma admiração fabulosa por
Courbet, por exemplo. Apreciar um pintor que deu dignidade a pobres e a
camponeses não era o gosto normal de um aristocrata bon vivant como Eça.
Ao ver o filme pensei muito naquela ideia de “Le Rouge et le
Noir” em que Stendhal dizia que um romance é um espelho que transportamos ao
longo do caminho, ou seja, o reflexo da realidade que ele capta. Disse que
gosta de anacronismos e acho que há um espelho assim no filme: é no momento
anterior ao encontro entre Carlos
e Maria Eduarda em que vemos uma rapariga
a ler... “A Capital”
Que é um livro póstumo de Eça, só publicado 25 anos após a sua morte.
A menina a ler “A Capital” no Hotel Central
(que eu filmei no Grémio Literário) é outro artifício. É como dizer: “Olhem que
isto é falso! O cinema é falso.” Não morre ninguém aqui, ninguém dorme com
ninguém aqui... Isto é um artifício mas as emoções, o tédio, o riso são
verdade, tão verdade como a cabeleira loura de 180 mil cabelos que usa a atriz
Maria FIor (que é morena) no papel da Maria Eduarda. Sempre houve isto nos meus
filmes: uma tendência para retirar o tapete dos pés do espectador em
determinado momento. Porém, há outras liberdades que o filme toma ligadas à
realidade histórica. “La Traviatta” foi levada à cena no São Carlos na época em
que Eça escreveu o livro. E é a ópera perfeita para enquadrar a condição
da Maria Eduarda no fim da história. A Brasileira também não existia quando o
Eça escreveu “Os Maias”, só existia a Casa Havaneza. Mas eu adoro este tipo de
anacronismos e A Brasileira aparece nos telões do filme, aproximando o Chiado
do que ele é hoje.
Os telões são o esplendor do falso a toda a prova e a prolongação de um
gesto estético que já estava no seu primeiro filme, “Conversa Acabada”. Em
simultâneo esse esplendor encontra em “Os Maias” um eco na mistura de som: no
Rossio ouve-se gente a dizer pregões da época. Gostava que me falasse destes
dois aspetos.
Pus
pessoas a gritar, como os vendedores gritavam nessa época. Fico contente por
eles terem sido ouvidos! A reconstituição de época de um filme destes é
impossível de ser feita em Portugal, nunca teríamos dinheiro que pagasse uma
recriação do Rossio e do Chiado do fim do século XIX. Podem, contudo, fazer-se
pequenos apontamentos e esse, sonoro, é um deles. Já os telões são a apoteose
do artifício. Tenho telões de 11metros de altura por 40 de comprido. Foram
impressos em gráficas de outdoors. Filmámos num hangar vazio em Azeitão
que foi pensado para ser uma espécie de FIL do distrito de Setúbal. Este filme
não tem exteriores. E os exteriores simulados que vemos das janelas são telões
feitos a partir de óleos pintados por João Queiroz. Ele teve o cuidado de
pintar aqueles óleos maravilhosos com uma tal qualidade que não se notam as
ampliações. Alguns quadros foram ampliados oito vezes, outros vinte. O João
Queiroz, que é para mim o maior pintor português vivo, costuma pintar
paisagens. Fiquei surpreendido quando ele aceitou pintar casas e ruas inteiras
para este filme. Também fizemos uma pesquisa detalhada dos interiores: o
consultório do Carlos no Rossio, por exemplo, foi filmado em Ponte de Lima,
numa casa que ainda está decorada como no século XIX. Mas a roupa — e aqui vem
outra modificação — não é a roupa do século XIX, que era horrível. Os vestidos das
senhoras tinham golas altas, eu tenho decotes. Os fatos dos homens eram
insuportavelmente ridículos. Os anacronismos estão em toda a parte, também
aqui. Aliás, a Sílvia Grabowski, que fez o guarda-roupa, trabalhou muito com o
João Queiroz. Tive a sorte de ter neste filme um grupo de pessoas que souberam
criar em conjunto.
Nos seus últimos filmes tem trabalhado com um grupo de atores mais ou menos
constante. Mas há neste filme um reencontro, com João Perry, que faz um
extraordinário Afonso e com quem não filmava desde “Um Adeus Português”. E duas
caras novas: Maria Flor a fazer de Maria Eduarda e Pedro Inês, que é um João da
Ega assombroso. Os primeiros ‘contagiaram’ os últimos?
Eu diria que tenho uma família
de atores aberta a novos elementos.
O Eça ajudou-me a uni-los. É o Eça que os contagia. A Maria Flor é brasileira,
chegou ao filme pela nossa coprodução com o Brasil, mas é curioso: o Eça sugere
no livro que a Maria Eduarda pode falar com sotaque brasileiro pela vida comum
com Castro Gomes. Ela fez um trabalho incrível. Inventou um sotaque entre o
francês, o português e o português do Brasil. O Hugo Amaro e o Pedro Lacerda
fazem um Dâmaso Salcede e um Tomás Alencar extraordinários. O Pedro Inês
é um caso engraçado, é um performer
que vive há 12 anos na Holanda. Voltou para Portugal, onde tem um
grupo rock e agora dedica-se ao teatro. Eu raramente fiz castings nos
meus filmes, mas fiz neste. Entrevistei atores maravilhosos, mas de repente
aparece-me este doido que sabia o texto todo e era o Ega! Foi uma dádiva. Ele estudara o Eça de trás para a
frente. E tem a aura dos grandes cómicos, qualquer coisa de Oliver Hardy. A
interpretação do Graciano Dias começa no tédio e acaba no drama, até o Carlos
perder a compostura e ficar um farrapo, ao passo que o Pedro Inês dá-nos um
João da Ega que entra logo a matar, que perturba tudo à sua volta cada vez que
entra e sai dos planos. Um e outro fizeram um trabalho notável.
Disse acima que João da Ega é a metade do alter-ego do Eça. Porquê?
Porque o Eça é o Carlos da Maia e é o João da Ega,
nem mais. O seu alter-ego está dividido em dois tal como foi dupla a sua vida
privada em tantos episódios. Isto é muito raro nos romances daquela época. Eça
atirou o romantismo dez anos para a frente rebentou-o. Para passar para o
Courbet, provavelmente. Nos romances da época, o incestuoso dava um tiro na
cabeça e a rapariga ia para o convento, ponto final. Aqui não, os amigos vão
passear o tédio numa viagem pelo mundo, a Maria Eduarda casa-se com um
qualquer, tem filhos e continua a sua vida. O único que morre é o velho Afono,
com o João Perry a oferecer- me uma interpretação excecional.
E o Alencar — e sem querer opor Eça a Camilo — é o passado
romântico, o negrume de Camilo?
É,
mas o Eça recupera-o. Há aquela parte final em que ele recita “A Democracia” e
os amigos abraçam-no. Mas no jantar do Hotel Central, que é uma das sequências
que mais prazer me deu filmar na vida, Alencar é arrasado. O comportamento
altera-se com a entrada dos pratos, do Poulet aux champignons ao Petit
pois à la Cohen, até chegar à javardice absoluta. Se aquele jantar começa
por falar de um fado em que fadistas e faias têm comportamentos selvagens, como
na história da Severa que o filme apanha perto do fim, pior se comportam os
nossos amigos civilizados no fim do jantar. O Eça falava disso, que “Os Maias”
são a história de um fado português. Uma história sem fim que depois o Eça
conclui com aquela ideia de ‘arraso’: os portugueses não correm nem pelo poder,
nem pelo amor, nem pela glória. Mas já para um jantarinho... correm que nem
doidos.
Ah, e o episódio do tipo que se esquece do chapéu, que espantosa cena de gag
deu ela ao fi!me...
Isso é
brilhante, é Eça puro: um
tipo à procura do chapéu que insiste em perturbar o momento mais dramático da
história. É sublime.
Lembro-me
de falar consigo sobre o poder da farsa quando fez “O Fatalista” a partir de
Diderot. A farsa também e aplicável a “Os Maias”?
Há
um comentário de irrisão que é aplicável e que se descobre nas várias camadas
do livro. O Eça é feito de pessoas complexas cheias de contradições. Temos o
direito e sempre o avesso, perpetuamente. Também tenho aprendido isso, com o
envelhecimento: tenho cada vez menos certezas. E este livro abriu-me outra
porta, isto é: permitiu-me corromper o ‘estilo Botelho’. Corromper coisas que o
Manoel de Oliveira me ensinou: que só há um ponto de vista para cada plano, por
exemplo. Há outra corrupção aqui, que é
a do Eça sobre mim, como se ele me dissesse agora: ‘Calma rapaz, não
tenhas tantas certezas sobre as coisas, deixa entrar o vento entre o campo e o
contracampo.’ Isto é novo nos meus filmes e na maneira como dirijo os atores.
Perdi o medo que tinha deles. E depois acontecem-me coisas que não sei
explicar, como aquele plano que me deu a Maria João Pinho, quando a Condessa de
Gouvarinho chega às lágrimas dentro na carruagem, no momento certo.
Há algumas cenas de cama no filme. Lembro-me da decisão de mise en scène em que o Conde de Gouvarinho põe a mão na testa ao
mesmo tempo que o Carlos apalpa a Condessa noutra divisão da casa. E há a noite
fatal, aquela em que Carlos dorme com a Maria Eduarda já sabendo que ela é sua
irmã — mas esta cena é filmada de forma radicalmente diferente, aqui não
pode haver irrisão.
Não pode e esse é o momento em que eu violo o Eça. No livro, só há uma referência,
violenta, entre o encontro sexual dos dois irmãos. Há um só encontro. Depois
vem a angústia. Eu mantenho esse encontro em suspenso. No filme, podem ter sido
vários. Quis que o desejo continuasse para Iá do tabu. A cena é filmada de
forma diferente, sim: com cinefolio a tapar os projetores, mas com
pequenos buracos para que a luz apenas ilumine pedaços, partes dos corpos.
Aquela é uma cena de política e de vísceras, não pode ser voyeurista, não pode
excitar ninguém, é uma cena de carne, de rasgões, de violação — porque Carlos
da Maia já sabe o que nós sabemos também. Nessa sequência carnal, física,
animalesca, suicida-se uma classe. E mata-se um avô. Um avô do Iluminismo e do
Progressismo que outrora fora um revolucionário e que acaba os seus dias com o
“Cândido” de Voltaire na mão, regressando à infância. Esta é a ideia do fim de
Portugal, figurada no velho Afonso da Maia, que morre preso à raiz e à terra,
na Quinta de Santa Olávia. Com ele não morre só um avô, só uma pessoa. Morre
Portugal.
Francisco Ferreira,
Expresso, 6 Setembro 2014