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domingo, 8 de abril de 2018

Cabeleireiro Alfredo & Biquette | Tom


Com o recente encerramento do cabeleireiro Alfredo & Biquette, situado na Rua Garret, ao Chiado, Lisboa, é praticamente apagada do coração da cidade uma época de ouro do design de interiores, preconizada por este tipo de estabelecimentos comerciais, nos anos após a II Guerra Mundial.
Acompanhámos o fecho e desmontagem dos interiores deste cabeleireiro que, apesar de ter sofrido algumas remodelações ao longo dos tempos, conservava ainda a arquitectura e muitos dos objectos originais criados especialmente para o local, conferindo-lhe uma identidade própria, desde 1957, data da sua inauguração. 


Tom - Máscara/candeeiro, cabeleireiro Alfredo & Andrade, 1957. © CMP 2018. 


Tom - Máscara/candeeiro, cabeleireiro Alfredo & Andrade, 1957. © CMP 2018. 


Considerado um dos mais elegantes salões de cabeleireiro da capital, inicialmente denominado Salão Alfredo & Andrade, teve concepção de interiores da autoria de Tom, Thomaz de Mello (1906-1990), uma escolha que equivalia a uma afirmação de modernidade.
Este artista multifacetado foi um dos mais activos, desde o final da década de 1920, no desenho expositivo e de dispositivos de comunicação, tanto ao serviço do estado como de clientes privados.



Tom - Cabeleireiro Alfredo & Andrade, 1957, detalhe do arranjo da fachada. © Espólio Alfredo & Biquette, 1964. 


Tom - Cabeleireiro Alfredo & Andrade, 1957, arranjo da fachada. © Espólio Alfredo & Biquette, 1964. 




Tom, de nacionalidade brasileira, estabeleceu-se em Portugal em 1926, tendo sido, a partir de 1934, sócio daquela que é considerada a primeira galeria de arte moderna portuguesa, a UP, criada em 1932, em Lisboa, resultado de uma parceria entre António Júlio de Castro Fernandes (1903-1975) e António Pedro (1909-1966). Responsável pela gerência da UP até ao seu encerramento quatro anos mais tarde, Tom, por questões de sobrevivência comercial, opta por comprar e expor cerâmicas austríacas Goldscheider, estas peças parecem ter exercido uma forte impressão sobre Jorge Barradas (1894-1971), artista da galeria, levando-o a iniciar-se na cerâmica. Tom começa também a criar objectos a partir de peças que comprava na Feira da Ladra e transformava, expõe e vende vidros soprados a par com outros objectos decorativos e de artesanato.



Aspecto da sala de estar da residência de Tom, "Casa Pé de Vento", Estoril, 1947. Pode ver-se máscara e candelabro Goldscheider e, entre outros objectos e pinturas, a obra de António Dacosta, "A festa", 1942 (MNAC). Fotografia Estúdio Novais - Biblioteca de Arte Gulbenkian



Com uma actividade artística variada e prolífica, Tom dedica-se ao desenho e pintura, banda-desenhada, ilustração e caricatura, design gráfico e de equipamentos, criação de objectos decorativos e publicitários, tapeçaria e decoração de interiores, sendo um dos pioneiros do design industrial em Portugal. Integrando nas décadas seguintes as equipas que conceberam as representações portuguesas em exposições e feiras comerciais nacionais e internacionais, desenvolve uma apetência especial para o desenho expositivo, recorrendo a múltiplas técnicas e materiais.
Numa época em que a generalidade do equipamento era criado de raiz para cada espaço, já que a produção nacional era escassa e o mobiliário importado atingia custos incomportáveis, Tom concebeu a generalidade das peças necessárias aos interiores do cabeleireiro Alfredo & Andrade, recorrendo a manufactura portuguesa.
A excepção encontra-se em alguns detalhes decorativos, como por exemplo o puxador de porta nas imagens abaixo, de origem italiana.
Para além de desenhar a imagem corporativa da empresa, Tom utiliza algumas referências da história da arte, de modo a sugerir uma continuidade entre os conceitos passados e presentes da beleza feminina. Assim, na recepção, coloca um relevo policromado sobre madeira, recriação de uma pintura do antigo Egipto, representando os cuidados cosméticos, e por cima do balcão de atendimento uma reprodução do Retrato de Giovanna Tornabuoni, de Domenico Ghirlandaio, arquétipo do belo renascentista. 



Tom - Recepção, cabeleireiro Alfredo & Andrade, 1957. © Espólio Alfredo & Biquette, 1957. 


Tom - Recriação de pintura egípcia, cabeleireiro Alfredo & Andrade, 1957. © CMP 2018. 


Domenico Ghirlandaio, Retrato de Giovanna Tornabuoni, 1488.


Cabeleireiro Alfredo & Andrade, porta entre a recepção e o salão, puxador de fabrico italiano, 1957. © CMP 2018. 


Cabeleireiro Alfredo & Andrade, puxador de porta de fabrico italiano, 1957. © CMP 2018. 


Tom - Interiores, cabeleireiro Alfredo & Andrade, 1957. © Espólio Alfredo & Biquette, 1957. 


Pelo menos desde os tempos da UP e de quando desenhou lambrilhas para o Pavilhão de Portugal na Exposição Universal de Paris, 1937, Tom mantinha contactos pontuais com a prática cerâmica. No entanto, em 1954, o artista aprofundará esta disciplina, realizando um conjunto de experiências na fábrica SECLA, Caldas da Rainha, peças apresentadas nos salões do SNI (Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo), no ano seguinte. Consequentemente, este será um período em que a cerâmica aparecerá como opção nos seus projectos de decoração de interiores.
Assim, quando em 1956 trabalha na concepção do cabeleireiro Alfredo & Andrade, Tom cria um conjunto de candeeiros de parede dominados por máscaras femininas em cerâmica, revisitando a gramática decorativa Art Déco austríaca, aproximando-se da produção da fábrica Goldscheider (Goldscheider'sche Porzellan-Manufactur und Majolica-Fabrik), que havia exposto na UP, novamente em voga na década de 1950.
As máscaras e bustos Goldscheider eram produzidos em série, desde a década de 1920, a partir de modelos esculpidos por prestigiados modeladores profissionais, tomando várias funções (candeeiros, floreiras, etc.), sendo esta produção regularmente actualizada, com a introdução de novos modelos.
As máscaras concebidas por Tom assumem um carácter de autor, sendo modeladas e reproduzidas manualmente em pequena quantidade, provavelmente no Estúdio SECLA. Que se saiba, foram realizadas apenas onze, unicamente para este projecto e, apesar de não estarem marcadas ou assinadas, estas peças são coerentes com as experiências realizadas pelo autor no Estúdio SECLA e com outras peças produzidas pela fábrica durante o mesmo período (ver imagens abaixo).



Tom - Máscara/candeeiro, cabeleireiro Alfredo & Andrade, 1957. © CMP 2018. 


Tom - Interiores, cabeleireiro Alfredo & Andrade, 1957. © Espólio Alfredo & Biquette, 1957. 


Tom - Máscara/candeeiro, cabeleireiro Alfredo & Andrade, 1957. © CMP 2018.


Tom - Máscara/candeeiro, cabeleireiro Alfredo & Andrade, 1957. © CMP 2018.


Tom - Máscara/candeeiro, cabeleireiro Alfredo & Andrade, 1957. © CMP 2018.



Goldscheider Keramik - Cabeça feminina, Viena, década de 1920© 1sttdibs





SECLA - Máscara feminina, candeeiro, Quinta de Santo António, Caldas da Rainha, c. 1950-55. Fotografia Margarida Araújo. 




SECLA - Cabeça feminina, base de candeeiro, Caldas da Rainha, c. 1950-55. © HPS 





Tom - Máscara/candeeiro, cabeleireiro Alfredo & Andrade, 1957. © CMP 2018.



Para o mesmo espaço, Tom concebeu candeeiros de tecto, mobiliário e equipamento específico de apoio a cabeleireiro. Desenhou também os fundamentais espelhos de formato trapezoidal que, tal como os grandes espelhos rectangulares, organizam o espaço, desmultiplicando-o em inúmeros efeitos ópticos. 
Conseguindo harmonizar com sucesso as tendências ‘espaciais’ e ‘atómicas’ do momento, que viriam a ser consolidadas na Expo58 em Bruxelas onde trabalhará no projecto expositivo do pavilhão português, com a estilização feminina Art Déco e referências da história da arte, inteligente, Tom orquestrará um espaço com o propósito de agradar simultaneamente a um público maduro e conservador, com poder económico, e também a uma frequência mais jovem, cosmopolita e moderna.   



Tom - Interiores, cabeleireiro Alfredo & Andrade, 1957. © Espólio Alfredo & Biquette, 1957. 


Interiores do cabeleireiro Alfredo & Biquette, pouco antes do seu encerramento. © CMP 2018.



Tom - Detalhe do tecto, cabeleireiro Alfredo & Andrade, 1957. © CMP 2018.



Tom - Interiores, cabeleireiro Alfredo & Andrade, 1957. © Espólio Alfredo & Biquette, 1957. 


Interiores do cabeleireiro Alfredo & Biquette, pouco antes do seu encerramento. © CMP 2018.


Tom - Interiores, cabeleireiro Alfredo & Andrade, 1957. © Espólio Alfredo & Biquette, 1957. 


Tom - Interiores, cabeleireiro Alfredo & Andrade, 1957. © Espólio Alfredo & Biquette, 1957. 


Tom - Consola, cabeleireiro Alfredo & Andrade, 1957. © Espólio Alfredo & Biquette, 1957. 


Walter Bosse - Cinzeiro/mão, Bosse/Baller Co., Viena, década de 1950. © 1sttdibs


Da selecção de objectos decorativos pode destacar-se, sobre a prateleira de vidro da consola, na imagem acima, um cinzeiro em bronze, em forma de mão estilizada, muito próximo do modelo criado por Walter Bosse (1904-1979), para a Companhia Hertha Baller. Designer e ceramista vienense, Bosse, que colaborara, a partir de 1926, com a já referida fábrica Goldscheider, começa a trabalhar em bronze no final da década de 1940, criando mais tarde uma série de peças produzidas e difundidas nos anos seguintes pela Bosse/Baller Co., com a designação "Linha Preto e Ouro", de que faz parte este cinzeiro e muitas outras pequenas figuras de animais. No entanto, o mais provável será que a peça sobre a consola seja de manufactura portuguesa, talvez proveniente da fábrica Barbeitos, Lisboa, conhecida pelo fabrico de figuras estilizadas em bronze polido, à maneira dos designers austríacos Walter Bosse e de Karl Hagenauer (1898–1956).



Tom - Móvel de apoio, cabeleireiro Alfredo & Andrade, 1957. © CMP 2018.


Tom - Contentor de apoio com rodas, cabeleireiro Alfredo & Andrade, 1957. © CMP 2018.


Tom - Interiores, cabeleireiro Alfredo & Andrade, 1957. © Espólio Alfredo & Biquette, 1957. 


Tom - Candeeiros de tecto, cabeleireiro Alfredo & Andrade, 1957. © CMP 2018.


Tom - Candeeiro de tecto, cabeleireiro Alfredo & Andrade, 1957. © CMP 2018.


Interiores do cabeleireiro Alfredo & Biquette, durante a sua desmontagem. © CMP 2018.



Em 1969, o cabeleireiro passa a denominar-se Alfredo & Biquette, por alteração da sociedade que o constituía. Esta  designação e sociedade mantiveram-se até início de Abril de 2018, aquando do encerramento do estabelecimento. 


Tom - Logotipo do cabeleireiro Alfredo & Biquette, 1969. © CMP 2018.


Pela sua localização e qualidade, o salão reunia uma clientela seleccionada, frequentadora assídua do Chiado. A partir da segunda metade da década de 1960, uma das clientes habituais foi a editora dinamarquesa Snu Abecassis (1940-1980). A fundadora das Publicações Dom Quixote, em 1965, com escritórios situados na Rua da Misericórdia, nas imediações do Chiado, encomendou ao cabeleireiro, c. 1969-70, alguns penteados cujas imagens iriam ilustrar uma publicação desta editora, pioneira no tratamento de questões do universo feminino e da condição da mulher. 



Alfredo & Biquette - Penteado para ilustração de uma publicação da editora Dom Quixote, c. 1969-70. © Espólio Alfredo & Biquette.

Alfredo & Biquette - Penteado para ilustração de uma publicação da editora Dom Quixote, c. 1969-70. © Espólio Alfredo & Biquette.


No exterior, apesar da manutenção da sobriedade do traçado da fachada, a intervenção de Tom, adicionando alguns elementos distintivos, foi suficiente para criar uma articulação com os estabelecimentos comerciais circundantes.
O salão de cabeleireiro situava-se num primeiro andar sobre as históricas Casa Pereira, mercearia fina fundada em 1930, e a Instanta, loja de fotografia fundada em 1937.  Das suas solarengas varandas podia ver-se a entrada da Rua Ivens e, a partir de 1963, a Casa da Sorte, desenhada pelo arquitecto Francisco da Conceição Silva (1922-1982), com painéis cerâmicos de Querubim Lapa (1925-2016). 
Por agora, conserva-se a vista, já que o uso será outro e o futuro também.



Fachada do cabeleireiro Alfredo & Biquette. © CMP 2018.


Tom - Elemento decorativo da guarda da varanda, cabeleireiro Alfredo & Andrade, 1957. © CMP 2018.


Querubim Lapa - Fachada da antiga Casa da Sorte, actual pastelaria Alcôa, vista do cabeleireiro Alfredo & Biquette. © CMP 2018.


Interiores do cabeleireiro Alfredo & Biquette, durante a sua desmontagem. © CMP 2018.



CMP* agradece todas as imagens cedidas e informações prestadas pelos proprietários dos cabeleireiro Alfredo & Biquette. Agradece também ao coleccionador HPS a cedência de imagens de peças da sua colecção.









domingo, 31 de julho de 2016

"Decorativo, apenas?" Júlio Pomar e a integração das Artes





A exposição "Decorativo, apenas?" Júlio Pomar e a integração das Artes reúne um significativo número  de obras de Júlio Pomar (n.1926), nunca antes mostradas em conjunto, essencialmente resultantes de intervenções em arquitectura e da sua colaboração com a indústria. Realizadas a partir dos finais da década de 1940, estas obras abrangem uma enorme diversidade de técnicas, da cerâmica ao vidro, passando pela tapeçaria, a pintura, a gravura, a escultura ou o alumínio batido. Dando a conhecer aspectos menos divulgados da obra de Júlio Pomar, as intervenções em arquitectura, são mostradas através de desenhos preparatórios e documentação fotográfica e técnica, revelando alguns trabalhos entretanto desaparecidos.

Propondo uma leitura sistematizada do trabalho de um artista, na sua articulação com os usos quotidianos e as técnicas artesanais e industriais, esta mostra representa um importante passo para a legitimação das artes aplicadas do século XX, em Portugal, como matéria de investigação, contribuindo para o seu reconhecimento por um largo espectro de público.  A visitar no Atelier-Museu Júlio Pomar, até 4 de Setembro de 2016, 



"Decorativo, apenas?" Júlio Pomar e a integração das Artes, Atelier-Museu Júlio Pomar, Lisboa. © CMP


"Decorativo, apenas?" Júlio Pomar e a integração das Artes, Atelier-Museu Júlio Pomar, Lisboa. © CMP



O título da exposição recupera o título de um artigo de Júlio Pomar, Decorativo, apenas?, publicado na revista Arquitectura, nº 30, Abril de 1949, parte de um conjunto de textos de reflexão crítica, escritos pelo pintor para várias publicações da especialidade. Alguma desta produção escrita, essencial à compreensão do pensamento do artista sobre o desígnio das artes decorativas após a II Guerra Mundial, integra o acervo documental exposto, podendo parcialmente ser consultada no local.



Revista Arquitectura, nº 30, Lisboa, Abril de 1949, detalhe. © CMP



"Decorativo, apenas?" Júlio Pomar e a integração das Artes, Atelier-Museu Júlio Pomar, Lisboa. © CMP


A propósito, Cerâmica Modernista em Portugal [CMP*] entrevistou a historiadora da arte e curadora responsável pela exposição, Catarina Rosendo [CR]. Sublinhando assim, a importância da curadoria em projectos deste tipo, onde a informação documental e a investigação, são essenciais à contextualização da obras, bem como à sua selecção e montagem, sendo a função do curador imprescindível para uma visão esclarecedora sobre o assunto tratado, como é o caso.



CMP*: Como surgiu a ideia e a proposta para fazer a exposição?

CR: Surgiu de um interesse mútuo, meu e do Atelier-Museu, pela produção de Júlio Pomar no campo das artes decorativas. Em 2013, altura em que fui convidada a comissariar uma exposição no Atelier-Museu, estava especialmente interessada nas artes decorativas do período neo-realista. Por causa da investigação para a minha tese de doutoramento, andava a trabalhar questões relacionadas com a mudança de paradigma artístico conduzido pelos artistas neo-realistas e/ou partidários da figuração, no período balizado entre o imediato pós-guerra e meados da década de 1950. Apercebi-me da importância que as artes decorativas aí tiveram, não só na sua prática como na sua teorização, por parte de artistas e arquitectos entre os quais se contou Júlio Pomar, e que foram associadas a questões como a integração das artes, o questionamento da herança deixada pelos primeiros modernismos, o estatuto do artista e a reelaboração de uma ideia de arte mais consentânea com as exigências socioculturais do pós-guerra. Verifiquei o grande vazio que ainda existe, no contexto museológico e expositivo português, em torno das artes decorativas deste período, pelo que dar início ao levantamento da produção de Júlio Pomar nesta área podia ser um passo relevante para alterar a situação e, ao mesmo tempo, dar a conhecer uma vertente menos conhecida do trabalho deste artista.



"Decorativo, apenas?" Júlio Pomar e a integração das Artes, Atelier-Museu Júlio Pomar, Lisboa. © CMP



Júlio Pomar - Painel decorativo para o Restaurante Vera Cruz, Lisboa, 1952, detalhe. © CMP



Júlio Pomar - Painel decorativo para o Restaurante Vera Cruz, Lisboa, 1952, detalhe. © CMP



"Decorativo, apenas?" Júlio Pomar e a integração das Artes, Atelier-Museu Júlio Pomar, Lisboa. © CMP


Júlio Pomar - Base para candeeiro, Cerâmica Bombarralense Lda., 1950. © CMP


Júlio Pomar - Jarra, Estúdio SECLA, Caldas da Rainha, 1956. © CMP



CMP*: Quais foram os critérios curatoriais que presidiram à sua organização?

Estabeleci dois ou três grandes critérios. O primeiro foi dar mais ênfase, nos objectos expostos, aos anos 1940-50, pois são os anos em que Júlio Pomar se dedica com mais empenho às artes decorativas, no âmbito da prática mas também da reflexão, como é patente em boa parte do que escreveu na altura. Ainda assim, optei também por incluir na exposição trabalhos mais recentes, não só porque ainda não tinham sido integrados na produção decorativa do artista, como parte ainda não tinha sido mostrado no Atelier-Museu. O segundo critério foi evidenciar as colaborações e parcerias criadas no âmbito da realização das obras de carácter decorativo, seja com arquitectos, com vidreiros e ceramistas ligados à indústria, com promotores e encomendadores, e mesmo com os fotógrafos da época. A exposição, sendo centrada em Júlio Pomar, apresenta uma constelação de autores, como Victor Palla e Bento de Almeida, Keil do Amaral, Artur Andrade, Conceição Silva, Celestino Castro, Artur Pires Martins, Alberto Pessoa, Hernâni Gandra e João Abel Manta, Raul Hestnes Ferreira, Mário Novais e Alice Jorge, centros produtores como a Cerâmica Bombarrelense Limitada, o Estúdio Secla, a Fábrica Sant’Anna, a Fábrica Cerâmica Viúva Lamego, a Manufactura Tapeçarias de Portalegre, a Fábrica-Escola Irmãos Stephens, espaços de divulgação como as revistas Arquitectura, Vértice, Mundo Literário e Seara Nova, e redes de cumplicidades partilhadas com Manuel Torres, Ernesto de Sousa, Querubim Lapa, entre muitos outros. O terceiro critério, que é o mais visível nas soluções de montagem escolhidas, pretendeu anular a distinção entre “artes maiores” e “menores”, algo que está implícito na noção da integração das artes e, de um modo geral, no ímpeto decorativo da geração modernista do pós-guerra ligada ao neo-realismo. Muito mais do que eleger, para a exposição, os exemplares máximos de uma qualidade estética afim da noção de “obra-prima”, quis ensaiar uma forma de expor a realidade artística, tecnológica e social de um dado momento histórico, ou se se quiser, de explorar as imagens que nos chegam hoje de um dado tempo. Para isso, misturei intencionalmente, no mesmo plano de visão, objectos decorativos de uso quotidiano como jarras, pratos e tapeçarias, desenhos, pinturas, originais, múltiplos, fotografia de autor, fotografia documental, desenhos de arquitectura, memórias descritivas e minutas de contratos. Nestes últimos três casos, infelizmente, tive de recorrer a reproduções de alta qualidade, pois o Arquivo Municipal de Lisboa não emprestou os livros de obra, à excepção do referente à Escola de Vale Escuro, que contém o desenho original, de Pomar, do mural depois elaborado e que é estilisticamente bastante diferente do resultado final.



Júlio Pomar - Jarras (Gato e Gato Siamês), Estúdio SECLA, Caldas da Rainha, 1956. © CMP


Júlio Pomar - Travessa, Estúdio SECLA, Caldas da Rainha, 1956. © CMP


Júlio Pomar - Jarra (Burro), Estúdio SECLA, Caldas da Rainha, 1956. © CMP


Júlio Pomar - Garrafas, Estúdio SECLA, Caldas da Rainha, c. 1957. © CMP



Júlio Pomar - Estudo para Arroz, têmpera sobre aglomerado de madeira, 1953. © CMP



CMP*: Quais foram as descobertas mais importantes que fizeste, ao longo dos dois anos de investigação que prepararam a exposição? 

CR: A investigação decorreu durante dois anos, mas não ocupou a totalidade desse tempo, muito longe disso! Durante este período, realizei sobretudo trabalho de campo, a partir das pistas fornecidas pela bibliografia disponível e por informações obtidas junto de Júlio Pomar e de Alexandre Pomar, e contei com a colaboração de Pedro Faro, que é também historiador da arte e trabalha no Ateliê-Museu. Na realidade, visitámos juntos praticamente todos os museus, instituições e casas particulares que localizámos no processo de pesquisa. As descobertas mais interessantes não se prendem tanto com as obras em si, algumas delas surpreendentes enquanto objectos estéticos, mas com o mapeamento do seu contexto de produção e das suas inerentes redes de cumplicidades. Apercebi-me que, apesar de começar a desenvolver-se um coleccionismo especializado neste tipo de peças, há muita coisa ainda na posse dos proprietários originais ou dos seus herdeiros directos o que, no campo da produção decorativa mais doméstica, pode colocar problemas quanto à sua preservação, isto porque se algumas pessoas reconhecem o valor patrimonial destes trabalhos, e agem em conformidade, outros nem sequer sabem que têm em casa peças únicas ou o nome do seu autor. Também verifiquei que algumas das obras feitas para fachadas de edifícios já foram destruídas ou desfiguradas e que a ignorância e falta de interesse em cuidar de um património por vezes esteticamente distante do que hoje em dia se valoriza continua a ser a responsável por muitas destas situações. O caso do mural para a Moradia Ribeiro da Cunha, no Restelo, que foi destruído em 2000, parece-me o caso mais gritante, pois de todas as colaborações com a arquitectura, esta pareceu-me, de entre a produção conhecida de Pomar, aquela que com maior eficácia respondia aos critérios da integração das artes explorados na época.


"Decorativo, apenas?" Júlio Pomar e a integração das Artes, Atelier-Museu Júlio Pomar, Lisboa. © CMP



Júlio Pomar - Prato (Peixes com retrato de Alice Jorge), Cerâmica Bombarralense Lda., 1954. © CMP



Júlio Pomar - Prato, Cerâmica Bombarralense Lda., 1951. © CMP


Júlio Pomar - Bela Aurora, Manufactura Tapeçarias de Portalegre, 1983 a partir de cartão de 1949. © CMP


Júlio Pomar - Bela Aurora, Manufactura Tapeçarias de Portalegre, 1983 - 1949, detalhe. © CMP




CMP*: O que distingue ou caracteriza os trabalhos de artes decorativas de Júlio Pomar? 

CR: Há algumas características das artes decorativas de Pomar que estão também presentes na obra de outros artistas da sua geração com semelhante filiação estética, desde logo as colaborações com arquitectos, com os quais estes artistas partilhavam sentimentos e práticas mais ou menos evidentes de oposição ao regime, e também a opção, clara no caso das produções cerâmicas e vidreiras para uso doméstico, pela peça única e feita à mão, ou seja, pela realização de originais mesmo quando a técnica em si mesma continha potencial reprodutivo. Isto vai contra algumas convicções expressas pelo próprio Pomar, na altura, acerca da importância da exploração da reprodução e do múltiplo possibilitada pelas artes decorativas e na consequente maior disseminação das linguagens artísticas modernas pelo quotidiano das pessoas, mas liga-se também, muito possivelmente, aos preços mais elevados atingidos por estas peças originais por comparação com os múltiplos, numa altura em que a venda de obras de maiores dimensões e com maior valor de mercado, como a pintura, estava fortemente constrangida, quer devido ao gosto mais tradicional do coleccionador-padrão quer devido às escassas oportunidades que estes artistas tinham de expor as suas obras.
Mas há duas ou três características na produção decorativa de Pomar que merecem ser destacadas. Uma delas é a grande liberdade com que o artista experimentou diferentes materiais e técnicas, o que é sobretudo visível nas colaborações com os arquitectos e no âmbito da integração das artes. Entre as tapeçarias e os painéis de azulejos, estes últimos de desenho livre ou de estampilha, e além de pinturas a óleo e painéis amovíveis realizados sob encomenda, há uma vasto leque de outras opções abordadas pelo artista, como pintura a fresco, desenhos feitos com pequenos mosaicos de cerâmica vidrada, murais em pasta de marmorite, esgrafitos incisos em estuque e em rebocos de cimentos coloridos, vitrais, estudo de cor para fachadas e altos-relevos e esculturas em cimento patinado, cerâmica e alumínio batido. Em segundo lugar é muito significativo que as obras de Pomar dentro do campo da integração das artes tenham acontecido, quase todas, já depois de o artista ter realizado uma intensa reflexão escrita, publicada em diversa imprensa de referência da época, sobre as artes decorativas, a integração das artes e o questionamento da própria noção de “decorativo”. É também muito interessante e sobretudo enriquecedor para a abordagem ao conjunto da obra de Pomar verificar de que modo diversas soluções estilísticas e temáticas vão sendo ensaiadas em diferentes suportes e através de técnicas diversas. O famoso “Ciclo do Arroz”, por exemplo, não existe apenas na pintura, mas também num conjunto de pequenas estatuetas decorativas em barro cozido. Outro exemplo é a forma como os esgrafitados realizados sobre superfícies como cimentos ou estuques aparecem mais tarde em desenhos e serigrafias de contornos muito lineares a agudos, como se tivessem sido incisos também. Ou o modo como os animais formam uma extensa galeria temática que não se circunscreve apenas aos famosos tigres representados na pintura, mas preenche boa parte da produção cerâmica ligada a objectos de uso quotidiano como pratos e jarras.


"Decorativo, apenas?" Júlio Pomar e a integração das Artes, Atelier-Museu Júlio Pomar, Lisboa. © CMP


Júlio Pomar & Alice Jorge - Jarras, Fábrica Irmãos Stephens, Marinha Grande, 1956. © CMP


Júlio Pomar - Peças em alumínio batido, anos 1950. © CMP


Júlio Pomar - Galo, Cerâmica Bombarralense Lda., 1951. © CMP



CMP*: No contexto da integração das artes, quais as principais diferenças que encontras entre as propostas preconizadas pelo SNI e as produzidas pela geração de Júlio Pomar?

CR: Não julgo que seja possível falar de “integração das artes” no caso das opções decorativas defendidas e promovidas pelo SPN/SNI, mesmo tendo em conta a enorme eficácia de todo o aparato visual, de uma unidade estilística notável e ainda hoje claramente reconhecíveis, presente na comunicação e propaganda das acções governativas, fossem elas culturais ou não. Mas no âmbito das artes decorativas em sentido mais estrito, as diferenças são muito eloquentes, e não é por acaso que artistas como Pomar se empenham, justamente, em rever o conceito de decorativo e de decoração. A distinção mais imediata a fazer é entre uma ideia concreta de portugalidade promovida pelos artefactos eleitos pelo SPN/SNI para exprimir uma cultura material nacional de contorno rurais e pitorescos, que culmina no programa ideológico contido no Museu de Arte Popular, uma das últimas criações de António Ferro, em 1948, e um certo cosmopolitismo procurado pelos artistas (e arquitectos) da geração de Pomar, ligado a movimentos interdisciplinares de entre-guerras, como a Bauhaus e o neoplasticismo, interessados na arquitectura modernista escandinava e norte-americana, leitores de Le Corbusier, defendendo a dimensão projectual do desenho, atentos à questão da forma-função e, de um modo geral, à criação de objectos procurando uma coerência plástica que resultasse, antes de mais nada, da eficácia estética e funcional com que eles se relacionavam com tudo o que estivesse à sua volta, desde a envolvente arquitectónica aos novos modos de vida que, aos poucos, o pós-guerra obrigatoriamente introduziu também num país relativamente neutro como Portugal. Esta oposição entre portugalidade e cosmopolitismo implica uma questão que é de primeira importância para se compreender muito do que estava em causa nas lutas estéticas e ideológicas dos artistas desafectos do regime e permite pensar de outro modo temas neo-realistas como a questão forma-conteúdo e o problema da ilustração: é que enquanto a arte popular promovida pelo Estado Novo pretendia, de forma inequívoca, contribuir para modelar os comportamentos individuais à imagem da ideologia política em curso, as artes decorativas tal como defendidas pela geração do pós-guerra defendiam um realismo que partia de uma dinâmica muito mais observacional e de reacção ao que se passava à sua volta.



Júlio Pomar - Prato (Gafanhoto), Cerâmica Bombarralense Lda., 1948. © CMP


Júlio Pomar - Prato (Pelicano), Estúdio SECLA, Caldas da Rainha, c.1955-56. © CMP


Júlio Pomar - Prato (sobre poema de Armindo Rodrigues), Cerâmica Bombarralense Lda., 1951. © CMP


Júlio Pomar - Prato (sobre poema de Armindo Rodrigues), Cerâmica Bombarralense Lda., 1951. © CMP



CMP*: Como vês a questão da integração das artes no pós o 25 de Abril e na actualidade?

CR: Não posso falar com grande propriedade dessa questão, pois não sou especialista nem em artes decorativas nem na muito complexa, e estimulante, questão da integração das artes. O meu interesse por este tema não é tanto um ponto de partida que me conduza a investigar, por exemplo, diferentes períodos e manifestações desta área artística, mas o ponto de chegada de várias perguntas que a dado momento dirigi à própria história da arte e que me conduziu a uma ideia de modernismo posta em questão durante os anos 1940-50 e ao modo como os artistas e os arquitectos daquele período compreenderam que a noção de “decorativo” era um excelente pretexto para iniciar uma série de revisões à ideia e à prática da arte e da arquitectura.


Júlio Pomar - Escultura, c. 1949-51. © CMP


Júlio Pomar - Prato, Cerâmica Bombarralense Lda., 1949. © CMP


Júlio Pomar - Prato, Estúdio SECLA, Caldas da Rainha, 1956. © CMP



CMP*: Prevês outros projectos curatoriais relacionados com artes decorativas, indústria ou integração das artes? 

CR: Pessoalmente, não tenho para já nenhum projecto muito definido nestes âmbitos, o que não quer dizer que não gostasse de investigar e conhecer melhor as produções de outros artistas deste período. As artes decorativas são um campo fértil em Portugal, onde praticamente tudo está por fazer, e aqui incluo também o mobiliário, que já começa a ter algumas sistematizações, em grande parte e felizmente devido à quantidade de arquitectos e designers que se encontram a realizar investigações para doutoramentos, e de alguns galeristas e antiquários que estão eles próprios a fazer ou a encomendar pesquisas sobre a produção nacional do pós-guerra, também para melhor conhecerem e valorizarem os seus artigos. Para além das importantes sistematizações oriundas da história da arte que já existem há algumas décadas, enquanto não se descer ao detalhe e começar a trabalhar monograficamente as vertentes decorativas de artistas mais conhecidos por outras áreas artísticas, não se poderá avançar muito mais no conhecimento deste campo de trabalho tão estimulante para a compreensão da cultura de um dado momento.



"Decorativo, apenas?" Júlio Pomar e a integração das Artes, Atelier-Museu Júlio Pomar, Lisboa. © CMP


"Decorativo, apenas?" Júlio Pomar e a integração das Artes, Atelier-Museu Júlio Pomar, Lisboa. © CMP



Júlio Pomar - Prato, Estúdio SECLA, Caldas da Rainha, 1956. © CMP



"Decorativo, apenas?" Júlio Pomar e a integração das Artes, Atelier-Museu Júlio Pomar, Lisboa. © CMP





Agradecimentos: Catarina Rosendo; Sara Antónia Matos; Pedro Faro; Atelier-Museu Júlio Pomar.