A manufactura Faianças de S. Roque, em Aveiro, foi criada em 1955 pelo ceramista João Lavado (1905-?), então sócio da Fábrica de Louças e Azulejos de S. Roque, dedicando-se exclusivamente à produção de louças decorativas e utilitárias.
João Marques de Oliveira, celebrizado no meio da cerâmica aveirense como João Lavado, afirma-se como pintor cerâmico na fábrica Aleluia. Nascido no ano da fundação desta empresa, aí inicia o seu percurso profissional aos 14 anos de idade, como aprendiz, depois de ter frequentado a Escola Comercial e Industrial Fernando Caldeira, em Aveiro, onde foi aluno de Gervásio Aleluia.
Ambos os filhos de João Aleluia (1876-1935), Carlos e Gervásio, foram professores nesta escola, aí recrutando, após devida formação, muitos dos trabalhadores que ingressavam na fábrica, contribuindo assim para a melhoria da qualidade de execução das peças produzidas.
O processo de aprendizagem de João Lavado evolui durante a sua estadia na fábrica Aleluia, experimentado e aprimorando as várias técnicas das artes cerâmicas, em especial a pintura artística de louça e azulejo. Chega à posição de mestre pintor c.1934, um ano antes da morte de João Aleluia, que deixará a fábrica nas mãos dos seus dois filhos. Em 1945, Lavado sairá da Aleluia, onde o seu lugar de responsável pela secção de pintura artística de azulejo será ocupado por Lourenço Limas (1912-1979). A sua saída tem o propósito de se envolver num novo projecto, integrando a Fábrica de S. Roque, fundada no final da década de 20, por Manuel da Silva e Justino Pereira Campos, localizada no canal de São Roque, unidade que virá a fechar portas em 2002.
Na sua fundação, a responsabilidade criativa e artística da Faianças de S. Roque ficará a cargo de João Lavado, desde a concepção das peças até ao seu acabamento, tanto no que diz respeito ao desenho e modelação, como à pintura. Cria várias linhas para produção em série, que conjugará com a produção de peças únicas e a resposta a encomendas específicas.
Será na segunda metade da década de 50, que João Lavado criará uma linha decorativa a aplicar em formas convencionais, que ficará conhecida como linha Picasso. Nesta época era popular a expressão "à Picasso", usada para designar tudo aquilo que fosse considerado moderno, extravagante, abstracto ou que apenas constituísse uma ruptura com o tradicional. Esta designação será também usada por outras fábricas de faiança, para identificar as linhas de desenho moderno ou inovador.
A pintura da linha Picasso era composta por uma paleta de cores fortes sobre branco com filetagem a preto. As pinceladas largas a vermelho, amarelo e verde, introduzem um ritmo na superfície exterior das peças, numa abordagem modernizada das clássicas estrias ou riscas verticais. Esta paleta de cores tornar-se-á uma das imagens de marca das Faianças de S. Roque, sendo curioso referir o cunho nacionalista desta combinação cromática, embora aplicada sem tal simbologia. Os interiores das peças eram esmaltados a amarelo vivo, característica até então pouco usual na louça de mesa produzida em Portugal, no entanto, já vista em alguns serviços fabricados para exportação, pela SECLA, Caldas da Rainha.
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Faianças de S. Roque - Taça com prato, linha Picasso. © CC
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Faianças de S. Roque - Taça com prato, linha Picasso. © CC |
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Faianças de S. Roque - Taça com prato, linha Picasso, marca de fábrica. © CC |
Como normalmente acontecia, muitos operários pintores especializavam-se na pintura de determinadas peças, atingindo uma perícia técnica que lhes permitia uma rapidez de execução capaz de melhor rentabilizar a produção. Assim aconteceu com Flamínio dos Reis (n.1933), responsável pela pintura da maior parte das peças da linha Picasso, a tal ponto que quase ficaria conhecido pela alcunha de Picasseiro.
Concluindo o 4º ano da Escola Comercial e Industrial Fernando Caldeira, tendo como mestre João Lavado, Flamínio dos Reis ingressa na indústria cerâmica desde cedo, onde ocupará diversas posições ao longo dos tempos. Trabalhou como decorador, pintor, chefe de vendas e empresário, mantendo na actualidade o cargo de mestre pintor na
Oficina da Formiga, em Ílhavo.
Vindo da empresa António Gomes Gonçalves da Vitória Lda., mais conhecida por Jarreto, Flamínio dos Reis, deu entrada na Faianças de S. Roque, em 1952, aos 19 anos, aí permanecendo até 1964. A linha Picasso é criada pouco tempo após a sua entrada, sendo-lhe destinada a execução da pintura, foi durante a sua permanência na fábrica que a linha se desenvolveu e foi comercializada. Em 1965, regressa à Jarreto, no ano seguinte trabalhará na Prantos & Moreira, Lda. e, entre 1966 e 1977, na Faianças da Capôa, Lda. Estabelecer-se-á por conta própria até 1979, ano em que se tornará sócio da Argilart - Artesanato e Decorações, Lda, onde permanecerá até 2005.
Na imagem abaixo podemos ver uma sala de pintura da Faianças S. Roque no início da década de 60. De pé ao centro, João Lavado retocando um prato e sentado Flamínio dos Reis pintando peças da linha Picasso.
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Faianças de S. Roque - Várias peças de louça utilitária, linha Picasso. Olx |
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Fachada do antigo edifício da Faianças de S. Roque, Aveiro, 2012. © CMP |
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Faianças de S. Roque - marca de fábrica. © CMP |
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Faianças de S. Roque - marca de fábrica. © CMP |
A marca de fábrica que vulgarmente a parece carimbada nas peças da linha Picasso é circular, tendo no centro a representação da cabaça com ou sem o bastão, insígnias de S. Roque. Na moldura exterior tem inscrito "Faianças de S. Roque, Lda - Aveiro".
Actualmente a linha está a ser revisitada pela Oficina da Formiga, onde Flamínio dos Reis dá continuidade ao seu trabalho como pintor. As peças são inspiradas na produção de S. Roque, dela diferindo nos formatos e sobretudo porque a pintura é aplicada sobre um revestimento total a vidrado branco, ao contrário das peças Picasso originais, caracterizadas pelos seus interiores amarelo vivo.
A Oficina da Formiga é um projecto criado em Ílhavo, em 1992, com a intenção de recuperar e reproduzir formatos e motivos decorativos de louça utilitária, oriundos na segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX, provenientes de desaparecidas unidades industriais das regiões de Aveiro, Coimbra, Lisboa, Alcobaça, Caldas da Rainha e Gaia.
Os motivos decorativos usados na produção da Oficina são baseados em elementos naturais, tradicionais e folclóricos, sobretudo peixes, aves e flores. Recriados a partir de uma recolha de peças encontradas em casas particulares, antiquários, feiras de velharias, livros ou museus. As formas são também de base tradicional e os processos de conformação, pintura e vidragem são manuais, utilizando as mesmas técnicas usadas desde o século XIX.
CMP* agradece a colaboração de Jorge Saraiva e do mestre Flamínio dos Reis, Oficina da Formiga, por todos os esclarecimentos prestados e pela preciosa informação e material documental disponibilizado, sem os quais esta publicação não teria sido possível.