O jardim do Campo Grande é um espaço com uma tradição secular na cidade de Lisboa. Ocupando uma área de 1200 metros de comprimento por 200 metros de largura, nas imediações do Museu Bordalo Pinheiro e do Museu da Cidade, entre o Bairro de Alvalade e a Cidade Universitária, poderia funcionar como local de lazer aprazível, não fosse o estado de deplorável degradação em que se encontra.
Há vários anos vítima de negligência e vandalismo, o parque viveu épocas de notável eficiência no desempenho das suas funções ao serviço dos habitantes da cidade, especialmente após a remodelação, nos Anos 40, a cargo do arquitecto Francisco Keil do Amaral (1910-1975).
Desde 1945 até ao final da década, Keil do Amaral concretiza uma vasta produção arquitectónica, dominada pela encomenda pública e municipal. Este período incluiu a quase totalidade das intervenções nos parques de Lisboa, nomeadamente Monsanto, Parque Eduardo VII (incluindo a Estufa Fria) e o Campo Grande.
Estas obras, tipificando uma enorme diversidade de soluções, reflectem as condicionantes da época.
Em tempos de enorme contenção orçamental, Keil do Amaral, um dos primeiros arquitectos portugueses a revelar uma plena consciência moderna, projectou espaços e equipamentos economicamente viáveis, duráveis e simultaneamente conseguindo evitar, mesmo nas obras públicas, a estética totalitária e conservadora muitas vezes associada ao Estado Novo.
O que acontece, tanto em Monsanto, definido ainda em vida por Duarte Pacheco (1900-1943), como no Campo Grande, onde o arquitecto planeou sobre a matriz anterior uma maior densidade de vegetação e uma grande variedade de percursos, tornando o espaço mais aprazível e funcional.
Para este espaço, que tanto lhe interessava talvez pela escala mais humana, virá ainda a projectar um restaurante construído junto ao lago, em 1948, hoje destruído, uma casa de chá, hoje votada ao abandono, onde figura um painel de azulejos de Júlio Pomar (n.1926) e Alice Jorge (1924-2008) , datado de 1950, e já na década de 60 a piscina infantil, uma das suas obras favoritas, actualmente também condenada à ruína.
Obras da Piscina Municipal do Campo Grande, c.1963. Foto de Artur Goulart AML |
A Piscina Municipal do Campo Grande, dedicada apenas ao público infantil como várias outras obras de Keil do Amaral, originalmente uma iniciativa do ministro Duarte Pacheco, foi inaugurada em 1964 pelo então Presidente da República Américo Tomás (1894-1987) e pelo Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, entre 1959 e 1970, António Vitorino França Borges.
O equipamento começa por ter um enorme sucesso durante os anos seguintes, para entrar em decadência no final dos Anos 70, foi ainda reutilizado durante a década de 80 como piscina-escola concessionado a um clube desportivo, para acabar condenado à destruição, quer pelo abandono, quer pelos actuais planos da Câmara Municipal de Lisboa, entidade que não tem demonstrado qualquer respeito pelas obras de referência edificadas durante o século XX.
Piscina Municipal do Campo Grande, 1966. Foto de Armando Serôdio AML |
Piscina Municipal do Campo Grande, 1966. Foto de Armando Serôdio AML |
Fazendo jus às práticas da época e ao especial relevo que a utilização de revestimentos cerâmicos decorativos e/ou funcionais adquirem na obra de Keil do Amaral, o artista plástico João Segurado (n.1920) é convidado a elaborar um painel em azulejos destinado a figurar na entrada do edifício das piscinas.
João Lopes Segurado, já com obra pública, havia ganho, em 1963, o Pémio Sebastião de Almeida de cerâmica, atribuído pelo Secretariado Nacional de Informação (SNI), órgão responsável pelas políticas culturais do regime.
O painel, actualmente praticamente destruído como se pode verificar pelas imagens abaixo reproduzidas, foi realizado na Fábrica de Cerâmica Viúva Lamego e trabalha de uma forma expressiva e abstractizante temas aquáticos e marinhos, numa composição dinâmica dominada por uma paleta de cores frias e fortes efeitos texturais.
João Segurado, painel da Piscina Municipal do Campo Grande, 1965. Foto de Armando Serôdio, 1967 AML |
Painel da Piscina Municipal do Campo Grande, 1965. © CMP 2011 |
Com aprendizagem nas oficinas da Viúva Lamego, tendo trabalhado com Eduardo Leite, pintor tradicionalista de grande competência técnica. João Segurado assumiu um papel relevante no movimento de renovação da cerâmica em Portugal, fazendo parte de uma geração de artistas com formação cerâmica, onde estão incluídos, Manuel Cargaleiro (n.1927) e Querubim Lapa (n.1925).
O trabalho de Segurado demarca-se da obra do mestre, sobretudo da temática historicista e neo-barroca patente nos azulejos a azul e branco do revestimento da Capela das Almas no Porto, de 1929, e dos painéis decorativos do Salão Nobre da Câmara Municipal de Cascais, ambos realizados na Viúva Lamego.
O artista desenvolve uma linguagem verdadeiramente moderna, para a qual contribui o facto de ter sido bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian. Foi autor de várias intervenções públicas, como os painéis em trencadís para a urbanização de habitação social, da autoria de Nuno Teotónio Pereira (n.1922) e António Pinto de Freitas, no bairro Olivais Norte, em 1957, ou o painel aplicado no Centro de Artes Plásticas dos Coruchéus, Alvalade, em 1970, ambos em Lisboa.
Painel da Piscina Municipal do Campo Grande, 1965, detalhe. © CMP 2011 |
Painel da Piscina Municipal do Campo Grande, 1965, detalhe. © CMP 2011 |
Painel da Piscina Municipal do Campo Grande, 1965, detalhe. © CMP 2011 |
Painel da Piscina Municipal do Campo Grande, 1965, detalhe. © CMP 2011 |
Painel da Piscina Municipal do Campo Grande, 1965, detalhe. © CMP 2011 |
Painel da Piscina Municipal do Campo Grande, 1965, detalhe. © CMP 2011 |
Painel da Piscina Municipal do Campo Grande, 1965, detalhe com assinatura. © CMP 2011 |
Painel da Piscina Municipal do Campo Grande, 1965, detalhe com assinatura. © CMP 2011
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Apesar do estado deplorável em que se encontra, esperamos que as imagens sejam elucidativas da riqueza plástica da obra e sobretudo da sua necessidade premente de conservação, só com uma intervenção urgente será possível a sua salvação.
Num painel de 1961, pertencente à colecção do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, pode reconhecer-se uma composição semelhante à utilizada no painel das piscinas.
O autor trabalha elementos abstractos de forma dinâmica, organizados numa faixa horizontal, como que num ensaio da sua obra futura. Nesta pintura, composta por setenta e dois azulejos e intitulada Noite de Lua, a paleta de cores é mais soturna, evocando uma atmosfera nocturna pontuada por elementos de forma lunar. Aqui as texturas são mais suaves, enquanto no painel da Piscina do Campo Grande, elas aparecem mais intensas e contrastantes.
João Segurado, Noite de Lua, azulejos policromados, 1961. Col. CAM-JAP. © CMP |
João Segurado, Noite de Lua, 1961, detalhe. Col. CAM-JAP. © CMP |
João Segurado, Noite de Lua, 1961, detalhe. Col. CAM-JAP. © CMP |
João Segurado, Noite de Lua, 1961, detalhe com assinatura. Col. CAM-JAP. © CMP |
Esta obra esteve exposta na mostra O tempo em (re)construção: A colecção de cerâmica do CAM - Fundação Calouste Gulbenkian, inaugurada a 7 de Julho de 2011, no Museu Nacional do Azulejo.
Nas imagens abaixo reproduzidas, pode observar-se a utilização do tijolo de barro vermelho no exterior do edifício e do azulejo de cores planas e luminosas na zona dos balneários, soluções de igual modo usadas no Parque Infantil do Monsanto, especialmente na área da piscina, onde um ecrã de tijolo situado entre o espaço do balneário e o espaço da piscina, assume simultaneamente o valor de separador e elemento de ligação.
A obra de Keil do Amaral como a de vários outros arquitectos seus contemporâneos, faz uso dos materiais cerâmicos, tão baratos quanto resistentes, explorando os seus valores decorativos e funcionais de forma inteligente e equilibrada.
Piscina Municipal do Campo Grande, 1964, vista parcial. © CMP 2011
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Piscina Municipal do Campo Grande, 1964, vista parcial. © CMP 2011 |
Piscina Municipal do Campo Grande, 1964, vista parcial do interior. © CMP 2011 |
Piscina Municipal do Campo Grande, 1964, vista parcial. © CMP 2011 |
Piscina Municipal do Campo Grande, 1964, vista parcial do interior. © CMP 2011 |
Piscina Municipal do Campo Grande, 1964, detalhe do interior. © CMP 2011 |
Piscina Municipal do Campo Grande, 1964, vista parcial do interior. © CMP 2011 |
É impossível ignorar estado actual do edifício das piscinas, uma ruína repleta de Graffiti.
O problema dos Graffiti tem afectado profundamente o espaço urbano, quer em edifícios habitados, quer desabitados. No entanto, quando se trata de edificado com valor patrimonial a preservar o caso torna-se particularmente grave.
O caso da Piscina Municipal do Campo Grande é apenas um entre centenas, testemunhos da incapacidade ou falta de vontade de implementar estratégias eficientes de combate a este flagelo.
Todo o parque do Campo Grande, desde o edifício do Centro Comercial Caleidoscópio, à casa de chá, incluindo a escultura da autoria de Canto da Maya (1890-1981), está pejado de Graffiti, o que acontece precisamente devido à incúria e abandono a que foi votado.
O que poderia ser um agradável local de lazer está transformado num espaço deprimente e sujo, espelho de um poder autárquico que deixa a cidade ao abandono.
O confronto com a memória de um parque desenhado tendo em atenção todos os detalhes, onde as plantas estavam cuidadas e a edificação e obras de arte preservadas, torna ainda mais penoso um passeio no Campo Grande.