Dedicado ao grande poeta "Tripa Seca"
Como eu gostaria da liquidez dessas palavras curvas, a traçar as geometrias da cidade grande, tantas rotas paralelas, senhores dos homens, nas cidades da abundância, e, em seu redor, as figuras da turbulenta rotina, pávidas, como se cada uma delas fosse o espectro de um ritual renascido, e cada um de nós, ávido, em busca de cada um dos momentos de luz, com aquele rumor do mar da baía maravilhosa, a cidade dos atlantes, três vezes eleita a capital do mundo, e mil vezes desfeita em auroras de pó por entre os deuses, e nós, como figuras ilustres, caminhando pelas marés das gentes, cada cidade nova é um paraíso e um olhar de infância que não mais voltará, e eu, com o pavor dos dias curtos, o iludir das estações, tão próprio dos trópicos, e a palavra "capricórnio" soava como uma cornamusa rolada pelas espumas de guanabara, e nós, com o olhar rolante, a deslizar pelos milhões de anos da paisagem curva, em cada esquina do granito, um novo tótem de longos tempos desfazados. Como ousar falar de civilização num fundo de bigornas e morros gémeos?..., as alternâncias da cor do mar, a clamar os sobressaltos daquela infinita natureza, e, quando a água tombava, cálida como a distantíssima Castália Fonte, não havia memórias clássicas, mas tão só o paraíso exuberante de nomes outrora perdidos, e a vontade de modernidade a impor-se perante os nossos olhos turvos, de costas voltadas para a esfusiante realidade, como se quiséssemos mergulhar num tempo ausente, antes das pegadas oceânicas dos selvagens profanados, abandonados nestas costas do verde reluzente, espelhos de água, neblinas a talhar os cumes, e, entretanto, era todo aquele vertiginoso cair do sol de Capricórnio, e eu levantava o peito e tentava enfrentar a cidade, imensa, e irrepetível, caput mundi, com as suas corolas de pedra dos milhões de eras ancestrais, aquela curva irrepetível, de pedras lapidadas, cujas luzes se acendiam contra o esfusiante crepúsculo, para mim, confundido, o pobre errante dos civilizados nortes, e o sol, esquálido e esplendoroso, a desafiar-me, com o seu poente às avessas, tombando sobre a terra, e deixando a baía inquieta, copacabana em espelho de prata, e os olhos dos incautos, a tentarem descortinar aquele feitiço que me fazia medusar nas areias, e já aí eu sorria, perante o rapaz que me oferecia a pedra das estrelas, e eu a repetir-lhe uma qualquer irrelevância da cidade polida que me fizera fugir, e ele corrigia-me, sim, pois, é isso mesmo, obsidiana, mas como nunca existira nestes brasis, coisa rara, do extremo norte, onde a terra se cruza, amapá e fronteiras da guiena, vulcões míticos, que traziam consigo falsas memórias e milhares e milhares de quilómetros e de horas clandestinas, para, agora, a mim, com dois mil anos de civilização em cima, e mais, muitos, para trás, milhares de outros, das memórias do crescente fértil, o europeu dos tiques débeis, a ver estendida, dádiva da noite e do mar, o testemunho dos milhões de éons, e, subitamente, como se alguma realidade suportasse chamar-se almirante gonçalves, toda a minha direita se erguia na traça daquela rua culminada em arco de melão, violando as luzes paralelas da baía inteira, no seu sufoco ordenado, e impunha os luzeiros da Cauda do Pavão, a insubordinada favela, a mais maravilhosa vertigem da vista dos pobres, que me libertava do verniz da abundância falsa, do homem do ocidente que fingia histórias, e me arrancava da Terra e me lançava em espaços mais sublimes, ó, numes do chão profundo, pois era ali chegada a hora profunda dos Céus abundantes do Sul, e a esplendorosa Canopus, ao fundo, a dizer, eu sou primeiro, no Luzeiro do Meridião, e o poderosíssimo Centauro, com Rigel à cabeça, e o Escorpião que marcava a esteira láctea, e aquelas manchas difusas da confusão, infinitos aglomerados, marcados de miríades de estrelas, e o centro, mesmo, de toda a esfera celeste, cintilante e cálido, bem alto, acima da minha cabeça, a marcar-me um marco sólido, o tempo das coisas ígneas e palpáveis, e a mesma rocha negra e reluzente que eu agora, magicamente, "pedra de estrelas", segurava numa mão, por demais, transfigurada.