Sereias e cera: Ὀδυσσεύς
dado ao canto ou ao silêncio? – para Antonio Cicero
I
Em sua Ὀδυσσεία, Homero, entre os
versos 173 e 179, do Livro XII (“αὐτὰρ ἐγὼ κηροῖο μέγαν τροχὸν ὀξέι
χαλκῷ/τυτθὰ διατμήξας χερσὶ στιβαρῇσι πίεζον:/αἶψα δ᾽ ἰαίνετο κηρός, ἐπεὶ κέλετο μεγάλη ἲς/Ἠελίου τ᾽ αὐγὴ Ὑπεριονίδαο ἄνακτος:/ἑξείης δ᾽ ἑτάροισιν ἐπ᾽ οὔατα πᾶσιν ἄλειψα./οἱ δ᾽ ἐν νηί μ᾽ ἔδησαν ὁμοῦ χεῖράς τε πόδας τε/ὀρθὸν ἐν ἱστοπέδῃ, ἐκ δ᾽ αὐτοῦ πείρατ᾽ ἀνῆπτον:”),
canta-nos que Odisseu – este relatando em primeira pessoa ἐγὼ (eu) - corta uma
massa redonda de cera em fragmentos pequenos que são esquentados pelas próprias
mãos. A seguir, ele põe a cera nas orelhas dos seus companheiros para que não ouçam o canto das Sereias,
alerta dado por Κίρκη (Circe) que, nos versos 159 e 160, se apresenta assim:
“Σειρήνων μὲν πρῶτον ἀνώγει θεσπεσιάων/ φθόγγον ἀλεύασθαι καὶ λειμῶν᾽
ἀνθεμόεντα.” (“Primeiro ela nos mandou evitar a voz das maravilhosas Sereias e
o seu prado florido.”). A palavra grega antiga para Sereia é Σειρήν (no caso
nominativo singular, quando faz a função de sujeito). No texto analisado, a
palavra Σειρήνων está no genitivo plural, fazendo, portanto, a função de
complemento nominal, pois “a voz das maravilhosas Sereias”. É preciso compreender ainda que não se trata
de um simples aviso, mas de um oráculo, isto é, uma informação divina acerca do
destino. E Circe deixa explícito que é para evitar a morte, pois nos versos 155
a 157, Odisseu relata a necessidade de todos conhecerem o que a deusa disse,
para que não morram: ” θέσφαθ᾽ ἅ μοι Κίρκη μυθήσατο, δῖα θεάων:/ ἀλλ᾽ ἐρέω μὲν
ἐγών, ἵνα εἰδότες ἤ κε θάνωμεν/ ἤ κεν ἀλευάμενοι θάνατον καὶ κῆρα φύγοιμεν”. Percebam que o verbo grego ἀλέομαι
(ἀλευάμενοι)
significa “evitar”, “afastar”, e a palavra θάνατος significa “morte” que, no
texto, apresenta-se como θάνατον, ou seja, na forma acusativa singular cumprindo a
função de objeto direto, isto é: evitar o quê? Θάνατον! Todavia, por que Circe afirma
que Odisseu deve ouvir o canto das Sereias e os demais não? Por que ela quer
dar esse privilégio apenas ao herói de Ítaca e não a alguns de seus
companheiros, já que todos, obviamente, não poderiam ouvi-lo pois morreriam?
Seria isso uma dádiva restrita a alguns (no caso, Odisseu) ou apenas o capricho
de uma deusa apaixonada (a proximidade com a morte evidencia alguma espécie de
prazer para os deuses?)? Por que Odisseu aceita ouvir o canto das Sereias sem
ter a certeza de que os outros não ouvirão? Por que ele não tapa as orelhas,
segundo o relato de Homero? Ou ele tapou as orelhas e nem mesmo Circe, os
deuses, os companheiros e nem mesmo Homero sabia disso, já que o poeta grego
costuma chamar Odisseu de astuto, sagaz, inteligente, usando epítetos tais como
πολύτροπος (versátil, multifacetado), logo até no começo da Odisseia: “ἄνδρα
μοι ἔννεπε, μοῦσα, πολύτροπον, ὃς μάλα πολλὰ/ πλάγχθη, ἐπεὶ Τροίης ἱερὸν
πτολίεθρον ἔπερσεν”? Seria outra astúcia do personagem que, enfim, liberta-se
do seu criador e de todo o destino, até do leitor?
II
Passemos, agora, para a intrigante e
instigante versão do mito contada por Franz Kafka em “Das Schweigen der Sirenen”.
Kafka afirma que “um sich vor den Sirenen zu bewahren, stopfte sich Odysseus
Wachs in die Ohren und ließ sich am Mast festschmieden”(para se proteger das
Sereias, Odisseu tapou, com cera, as orelhas e fez-se atar ao mastro). Neste
primeiro relato kafkiano, temos uma diferença substancial do relato homérico,
pois o escritor grego disse que Odisseu não tapou as orelhas com cera, mas que
chegou a ouvir o canto das sereias amarrado ao mastro. Vejamos: “ὣς φάσαν ἱεῖσαι
ὄπα κάλλιμον: αὐτὰρ ἐμὸν κῆρ/ ἤθελ᾽ ἀκουέμεναι, λῦσαί τ᾽ ἐκέλευον ἑταίρους/ὀφρύσι
νευστάζων: οἱ δὲ προπεσόντες ἔρεσσον.” (então elas falaram, enviando a sua linda
voz, e o meu coração foi feliz em ouvi-la, e eu disse aos meus companheiros que
me soltassem, acenando-lhes com as minhas sobrancelhas; mas eles prostraram-se
em seus remos e remaram). Como poderia saber Odisseu que a voz das Sereias era
mesmo bela, se não a ouvisse? Como saber que não era uma armadilha de Circe,
senão ouvindo tal ὄπα κάλλιμον (bela voz)? É
preciso compreender outro fato importante: as Sereias fazem questão de afirmar
que sabem de todas as coisas que acontecem “ἴδμεν δ᾽, ὅσσα γένηται ἐπὶ χθονὶ
πουλυβοτείρῃ” (verso 191, Livro XII). Se sabem de todas as coisas, certamente
estavam “cons-cientes” de que Circe havia ajudado o seu estimado guerreiro, o
astuto Odisseu. Se sabiam da cera e da proteção, insistiriam em cantar ou
manter-se em silêncio? Conta-nos Kafka que “der Sang der Sirenen durchdrang
alles” (o canto das sereias penetrava tudo). Parece agora haver um grande
paradoxo, já que Circe disse que a cera protegeria a todos. Para Kafka, a arma
mais poderosa das Sereias não é o seu canto, mas o seu silêncio: “nun haben
aber die Sirenen eine noch schrecklichere Waffe als den Gesang, nämlich ihr
Schweigen. Es ist zwar nicht geschehen, aber vielleicht denkbar, daß sich
jemand vor ihrem Gesang gerettet hätte, vor ihrem Schweigen gewiß nicht” (agora,
todavia, as Sereias têm uma arma ainda mais terrível do que o canto, ou seja, o
seu silêncio. Pode não ter acontecido isso, mas é concebível que alguém tenha
se salvado de seu canto, certamente não do seu silêncio.). O problema
epistemológico que resulta disso é que Kafka não diz exatamente qual seria o
poder desse silêncio, como ele agiria para que ninguém escapasse. Se ninguém
escapou para relatar tal silêncio, como Kafka poderia saber disto? Homero não
se atreve a tanto em sua ingenuidade brilhante. Para escapar desse labirinto de
sentidos complexos, Kafka utiliza-se justamente das características que Homero
dera a Odisseu. Assim relata, ao fim da sua pequena história, que “Odysseus,
sagt man, war so listenreich, war ein solcher Fuchs, daß selbst die
Schicksalsgöttin nicht in sein Innerstes dringen konnte. Vielleicht hat er,
obwohl das mit Menschenverstand nicht mehr zu begreifen ist, wirklich gemerkt,
daß die Sirenen schwiegen, und hat ihnen und den Göttern den obigen
Scheinvorgang nur gewissermaßen als Schild entgegengehalten” (Odisseu, diz-se,
era tão astuto, uma raposa tão ardilosa que até a Deusa do Destino não
conseguia penetrar em seu íntimo. Talvez, embora seja difícil compreender sob
os ditames da razão, ele pode ter percebido que as Sereias estavam silentes, e
meramente se opunha a elas e aos deuses tendo como escudo o ato dissimulado
supradescrito.). Ao que parece, em uma pesquisa de seus textos disponíveis,
Kafka não mais tentou ouvir a voz da Sereias. Não as cita em nenhum texto mais.
Silenciou-as em si.
Adriano Nunes