A imprensa divulga, com veemência, debates acerca das biografias não-autorizadas. O que se quer com esta nota é levar o leitor a compreender os aspectos jurídicos implicados no embate travado entre o direito à privacidade e o direito à liberdade de expressão, ambos garantidos pela Constituição Federal de 1988. De acordo com a Constituição/88, vê-se:
A Constituição garante em seu artigo 5º, inciso X, que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
Assegura, no mesmo artigo, a liberdade de manifestação do pensamento, vedado o anonimato; a liberdade da expressão da atividade intelectual e de comunicação, independentemente de censura ou licença, e o acesso de todos à informação.
Diz também, no artigo 220, que a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação não sofrerão qualquer restrição, sob qualquer forma, processo ou veículo.
Ora, percebe-se facilmente que há aqui um choque normativo, com as normas constitucionais a defender direitos que se podem opor, numa mesma ação, sem que nenhuma, puramente, tenha valor mais que a outra, pois pertencem ambas à Constituição Federal de 1988. Como então resolver este aparente estorvo?
Quando esses direitos constitucionalmente assegurados entram em conflito e estabelecem o pano de fundo de alguns processos judiciais, “a solução não se dá pela negação de quaisquer desses direitos. Ao contrário, cabe ao legislador e ao aplicador da lei buscar o ponto de equilíbrio onde os dois princípios mencionados possam conviver, exercendo verdadeira função harmonizadora”, afirmou a ministra Nancy Andrighi, no julgamento do REsp 984.803.
Segundo o professor Miguel Reale "(...) o juiz constitui norma para o caso concreto toda vez que houver lacuna na lei, assim como nos casos em que lhe couber julgar por equidade." *
Ainda se deve lembrar de que todo Ordenamento Jurídico possui outras fontes de Direito, tais como a Jurisprudência, a Doutrina e o Direito Consuetudinário. Portanto, cabe ao juiz, em face de choque normativo (que dá entre as partes), buscar uma solução jurídica adequada para o caso concreto. Apenas no caso concreto o direito (das partes) pode ser construído (sob o devido processo legal) e não em abstrações precárias. O exercício judiciário mostra, há muito, como questões ambíguas ou ásperas podem ser resolvidas, dentro da legalidade, com aspectos axiológicos, com legitimidade.
Norbeto Bobbio esclarece: "Quando um órgão superior atribui a um órgão inferior um poder normativo, não lhe atribui um poder ilimitado. Ao atribuir esse poder, estabelece também os limites entre os quais pode ser exercido. Assim como o exercício do poder de negociação ou o do poder jurisdicional são limitados pelo Poder Legislativo, o exercício do Poder Legislativo é limitado pelo poder constitucional."** Isso evidencia que a Constituição tem supremacia sobre toda a legislação infraconstitucional.
Explicitada desde já a supremacia da Constituição, atenta-se para o que diz o Código Civil (2002):
CC - Lei nº 10.406 de 10 de Janeiro de 2002
Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.
Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.
Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.
A CF garante a inviolabilidade da vida privada. Portanto, mesmo com a revogação dos artigos 20 e 21 do Código Civil, aqueles que entenderem violados os seus direitos de intimidade, imagem poderão ajuizar ações. A produção exasperada e a revogação de leis não solucionam a questão das biografias, que traz conflito entre editoras, imprensa e biografados, e, pior ainda, reduz a literatura ao relato de uma vida, o que é bem retrógrado em termos criativos, embora possa ter interesse histórico. Deve-se opor a essa redução da literatura. E não à liberdade de expressão e ou ao direito de intimidade.
Assim, prévia proibição não condiz com o Direito. Esse choque normativo não foi atentado previamente pelo legislador constituinte originário, deixando, portanto, para o Judiciário decidir, baseando-se em vários aspectos e noutras fontes do Direito. Ou como afirma Oliver Wendell Holmes:
"The life of the law has not been logic: it has been experience."*** Oliver Wendell Holmes
*REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. Rio de Janeiro: saraiva, 2002, 168.
** BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: UnB, 2006, p.53.
*** HOLMES, Oliver Wendell. The path of the law and the common law. New York: Kaplan, 2009, p. 31.