Adriano Nunes: "Ilha das Flores" - crítica
Em 1989, Jorge Furtado escreveu e dirigiu um dos mais instigantes documentários, o curta-metragem "Ilha das Flores" (http://www.youtube.com/ watch?v=KAzhAXjUG28&feature=you tube_gdata_player). Sucesso de crítica e público em todos os lugares em que foi exibido, esse pequeno grande filme venceu importantes prêmios nacionais e internacionais.
Com uma linguagem predominantemente metalinguística, o filme narra fatos cotidianos e históricos, com um viés irônico e educativo, para demonstrar categorias de valores sociais e, ao mesmo tempo, fazer uma crítica ao sistema de mercado e câmbio capitalista. Mas é insustentável querer reduzi-lo a matizes apenas econômicos.
Impregnado de sequências de definições (repetidas, como se para alertar o público sobre a conclusão aparentemente fácil, ou mesmo, para preparar sua ratoeira shakespeariana ao desvendar o humano) e colagens de imagens, num ritmo marcado, poético, o autor desmascara a realidade e assombra-nos, com essa repetição convulsa de que o ser humano é dotado de "telencéfalo altamente desenvolvido e polegar opositor', como se infiltrado nesse dito estivesse o seu oposto. Implicitamente se vê o conceito aristotélico de que o homem é um animal político.
Como base central para o desenvolvimento de sua crítica à miséria humana, Jorge Furtado explora o itinerário que faz um tomate, desde o seu plantio até o seu uso por seres humanos que o recolhem do lixo de um lugar chamado "Ilha das Flores" o qual quase não tem flores, mas uma miríade de lixo, um depósito para o que é sujo e fétido.
Hoje ao rever essa impactante película, notei as influências de Alain Resnais e de Kurt Vonnegut, já tão divulgadas pelo próprio diretor, mas tinha algo mais. E esse algo a mais, por eu ser poeta, é que me perturbou. Senti a presença de Manuel Bandeira ali, com o seu magno poema "O bicho" que transcrevo abaixo:
O bicho
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
Rio, 27 de dezembro de 1947
BANDEIRA, Manuel. "Belo Belo". In: Estrela da Vida Inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007.
Ao fim, surpreendo-me novamente. Eis que há um trecho de "Romanceiro da Inconfidência" de Cecília Meireles:
"...Liberdade, essa palavra
que o sonho humano alimenta
que não há ninguém que explique
e ninguém que não entenda..."
Adriano Nunes