Para não esquecer...

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REENCONTROS

Andámos no Liceu de Faro juntos. Éramos da mesma turma. Tentámos lançar um
jornal no Liceu. Havia um jornal, A CENTELHA, que o professor Calçada (o
melhor professor que tive) queria substituir por OSSÓNOBA. Na sugestão de
nomes surgiram nomes muito originais como cágado (abstenho-me de dizer o
nome do sugerente...). Do grupo faziam parte esse meu colega, o Passarinho, o Zé
Cabecinha, eu, entre outros. Eu inscrevi-me na crítica de cinema na mira de umas
entradas de borla... o que não veio a acontecer... para bem da crítica de cinema.
Estou a falar de 1971?

Viemo-nos a reencontrar nos anos 90. Ambos juristas, ele um magistrado de
prestígio, eu um advogado de província e provinciano. Há anos que não
estávamos juntos. Ele numa instância jurídica europeia, eu às voltas do direito
mais comezinho.

Jantámos na terça-feira. Claro, centrámos as recordações nos anos de brasa do
PREC (o período mais louco e fascinante da nossa história, pelo menos a recente),
das RGAs, do Barroso, João Isidro Arnaldo Matos, etc. Ele do PCP eu do MRPP.

Lembrámo-nos de todos os pormenores, episódios, histórias. Lembrámos a
maçonaria, os anarquistas. Os livros que lemos. A vantagem de sermos velhos é
recordarmos, com nitidez, factos ocorridos há cinquenta anos.

O jantar foi na minha casa. Às tantas, notei que as mãos lhe tremiam -- "parkinson",
disse ele. Achei-o velho e cansado. Foi umas cinco vezes à casa de banho. Pensei
"ainda não estou assim", sem consciência da falta desta. Desde março ando com
uma ferida no pé (pé diabético, dizem os médicos), um tumor nos intestinos, etc e
tal.

Ele deve ter um ano menos. Achei-o alquebrado. Por falta de espelho, achei-me
melhor que ele.

Despedimo-nos combinando não nos perdermos de vista.

A vantagem da velhice é podermos recordar a juventude como um filme que
acabamos de ver. A desvantagem é que não me lembro o que jantámos.

escrito por Carlos M. E. Lopes

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JULGAMENTO

Havia pouco que estava na profissão. O caso envolvia alguns milhares de contos. Assustei-me. Pedi ao meu patrono, o Dr. José Correia, que me acompanhasse no julgamento. Ele foi. O meu “camarada” José Correia. A “coisa” começou mal, eu via que as nossas testemunhas não diziam aquilo que se passava. Depois, a coisa compôs-se. Finalmente comecei a ver que teríamos ganho de causa. O meu patrono, velha raposa salazarista -- e eu comunista, tinha obtido as respostas o que queria.

Uma das nossas testemunhas era o presidente da Câmara Municipal da Vila. O Dr. José Correia propôs-me “vamos prescindir do testemunho do Presidente?”. 

Eu abusador, disse “Não. Só no fim. Enquanto estiver aqui, não vai fazer asneiras na Câmara”.

E ninguém, até hoje, me agradeceu…

escrito por Carlos M. E. Lopes

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MEMÓRIAS SOLTAS * XXXIV. A Igreja de Santo Estêvão

[este texto é dedicado a duas pessoas: José da Conceição Estêvão Lopes e Ezequiel da Anunciação Estêvão Fernandes. Eles sabem porquê (e eu também)]


No meio do barrocal algarvio ergue-se, imponente, bela, imaculada, soberba, branca, a igreja de Santo Estêvão. O mais importante templo que a humanidade já construiu. 

As suas duas torres, simétricas e altivas, são como duas espadas enterradas, verticalmente, na terra. Firmes, elegantes, extraordinárias.

A importância desta igreja percorre a História e foi inspiração para artistas, músicos, escritores, marinheiros, pintores, caçadores, guerreiros, filósofos, homens de Estado.

Desde logo, Taj-Mahal. Onde foram os arquitetos buscar aquela cor branca? À igreja de Santo Estêvão! 

O homem de Alcala de Henares onde foi buscar aquela frase com que inicia o seu  livrito... “En un lugar de la Mancha, de cuyo nombre no quiero acordarme” era o quê? A igreja de Santo Estêvão! Ele não se queria recordar do nome porque não lhe convinha. E para um espanhol de perto de Madrid tudo era La Mancha. Os ciúmes eram muitos e a soberba não o deixava ver.

Jimenez, quando comparava a sua igrejita em Moguer com a Giralda não o faz com a igreja de Santo Estêvão porquê? Por uma razão simples: a igreja de Santo Estêvão tem duas torres e as outras só têm uma…

E qual a diferença entre as catedrais de Sevilha, a Sagrada Família de Barcelona, a Notre-Dame de Paris, as catedrais de Milão, a Basílica de São Pedro, a Catedral de Colónia, Santa Sofia, Bruges, Chartres, e etc e tal e a igreja de Santo Estêvão?  Todas elas têm um aspeto encardido e a igreja de Santo Estêvão é alva, pura, linda.

A baleia de Neville não era cinzenta, mas o reflexo das torres da igreja de Santo Estêvão no Oceano que, por razões da refração da luz, parecia cinzenta.

Ortega y Gasset não disse, nunca, que o homem é ele e a sua circunstância, mas sim “a beleza é a igreja de Santo Estêvão e a sua envolvência”. 

A Persistência da Memória, de Salvador Dali, baseou-se em quê? No relógio da torre de Santo Estêvão. Dali era genial, mas foi ao ver a torre da igreja de Santo Estêvão que teve aquele lampejo de genialidade.

Madame Bovary seria menos propensa àqueles desejos carnais se tivesse ido à missa à igreja de Santo Estêvão.

Se Benjamin Britten tivesse ouvido o sino maior da igreja de Santo Estêvão, nunca teria produzido war requiem, um som agudo e sem alma. Só no Requiem de Mozart se atinge uma dor e profundidade que se aproxima do som sublime debitado por aquele sino.

Napoleão produziu aquela frase famosa... séculos de história vos contemplam, supostamente aos seus soldados, foi proferida ao sair da sacristia da igreja de Santo Estêvão e quando, abrindo a braguilha, se encostou à parede da igreja e aí, encostando o seu instrumento (como dizia o Marlon Brando) de três centímetros e meio, para se aliviar da pressão mictórica. 

E foi na Pedra da Verdade, arrimada à igreja da Santo Estêvão que o Corso, bruto, rude, xucro, escreveu a carta a Josephine que revolucionou a indústria dos perfumes e hábito de higiene das francesas “Josephine, chego dentro de duas semanas. Não te laves”. Esta a frase que revolucionou a indústria titubeante dos cheiros e, sobretudo, a bien-être. Quanto ao hábito higiénico então iniciado, mantém-se.

O sorriso irónico da Mona Lisa deve-se a terem-lhe mostrado uma pintura da Notre Dame de Paris e afirmarem-lhe “é mais bonita que a igreja de Santo Estêvão!”. 

O brilho que se vê na moça de brinco de Jan Vermeer é o da igreja de Santo Estêvão. Nenhuma pedra brilha por si só, sem uma luz que lhe incida. E aquela luz não engana ninguém: é a da luz da igreja de Santo Estêvão! 

Acham que o êxtase de Santa Teresa de Bernini se deveu à espada do anjo a trespassá-la? Nan! Alguém tem um êxtase orgástico ao seu perfurado por uma espada? Não! Atrás do anjinho estava o desenho da Igreja de Santo Estêvão! O mesmo com Caravaggio.

Colombo, vindo de Palos de la Frontera, ao avistar a igreja de Santo Estêvão hesitou. “Não é possível encontrar tamanha beleza na Índia…”. E não encontrou!  Ao regressar, encostou na praia do Homem Nu, caminhou, a pé, da Torre de Aires até Santo Estêvão para render uma sentida e profunda homenagem à Igreja que o tinha maravilhado. Disto não reza a história, pois o alentejano não quis fazer alarde e não queria que o Fernando e a Isabel, os reis de Espanha, sonhassem com tal preito (a ciumeira, amigos, a ciumeira…).

E o Ulisses, meu Deus, o Ulisses não esteve tantos anos perdido, ao contrário do que o livrito diz. Não! Ele veio do Mediterrâneo, encalhou na Torre D´Aires e, do terraço, ficou cinco longos anos a admirar aquelas torres. Qual Grécia, qual meia Grécia! Tamanha beleza nunca se tinha visto. E se não fosse Penélope já ter a lã gasta, ainda o veríamos, hoje, no Fialho a banquetear-se com umas ameijoas abertas ao natural.

Alice, portuguesa de Santo Estêvão, tinha sido empregada do homem. Alice morreu e Beethoven veio ao funeral. Quando ouviu o sino maior da igreja ficou extasiado, rendido, fascinado com aquele som. E assim saiu a quinta sinfonia. Sublime, mas o génio do surdo não se tinha despertado sem aquele som grave e profundo. Isto no início do século XIX.

Raskolnikov nunca teria matado a velha se tivesse avistado a igreja de Santo Estêvão. Nem Karenine caído em amores proibidos. 

A História, a grande História, teria sido diferente se os seus protagonistas tivessem tido a oportunidade de conhecer a igreja de Santo Estêvão, a única igreja que, depois de soarem as badaladas de quaisquer horas, as repete dois minutos depois e o ponteiro das horas, mandrião, assinala uma hora antes… 

Churchill, outro invejoso e com a mania das grandezas, pronunciou que “a igreja de Santo Estêvão é a mais feia das igrejas, tirando todas as outras”. O homem gostava destes paradoxos sem sentido. Mas nunca pintou a Igreja de Santo Estêvão. Livra! Do que nos livrámos!

A passarola de que o Saramago fala, não foi jogada no Rossio, foi de cima da Igreja de Santo Estêvão! O Gusmão vivia perto do Poço das Bruxas, recolhido, com muita fé, beato, e arranjou aquela geringonça com canas da ribeira da Asseca.

O coronel Buendía ainda seria vivo, se tivesse avistado a Igreja de Santo Estêvão. Se Llosa conhecesse a Igreja de Santo Estêvão, a catedral teria saído do seu livro mais famoso. Os moinhos de vento eram as torres da Igreja de Santo Estêvão que o Sancho avistou primeiro da Torre D´Aires. A melancolia do Proust nasceu da impossibilidade de visitar aquela Igreja de que tanto se falava. Hugo, que palmilhou sessenta quilómetros para ir ver a sua amada a Dreux, estava preparado para ir a Santo Estêvão, a pé, mas foi apunhalado pelo corcunda de Notre Dame quando se aprestava a iniciar a caminhada, com um mapa Michelin nas mãos. Foi na sacristia da Igreja de Santo Estêvão que Yourcenar surpreendeu Adriano debaixo de um soldado, e não na Igreja do Santo Anjo. A indiferença de Meursault perante o mundo derivou de não ter dinheiro para visitar aquela magnífica Igreja. Pessoa, o poeta-filósofo, referia-se a quê quando escreveu o sino da minha aldeia? Pois claro! O Álvaro de Campos, que havia nascido em Tavira, disse tais coisas sobre a sonoridade do sino da Igreja de Santo Estêvão, que o homem foi, todo lampeiro, escrever “o sino da minha aldeia/…/Cada tua badalada/soa dentro da minha alma”.

Tudo isto, e muito mais, haveria para contar, mas estão-me a chamar para a consulta, aqui, na Avenida do Brasil. Querem experimentar um latex novo. Até já.

escrito por Carlos M. E. Lopes

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MEMÓRIAS SOLTAS * XXXIII. António Feijão

Os anos de brasa de 1974/75/76 têm momentos de grande fulgor.

Um dia, nas escadinhas da Rua da Galeria, frente à Câmara, em Tavira, havia um cartaz, escrito e feito por mim, do MRPP. Aquele canto era um nosso canto desejado e privilegiado. Na loja do Cunha e Dias.

Às tantas, uma empresa de divulgação da corrida de touros de Vila Real de Santo António começou a colar um cartaz da Corrida de Touros, por cima do nosso cartaz. 

O António Feijão, irrequieto, inconformado e corajoso, chamou a atenção do “marmelo” que se aprestava a colar o cartaz da corrida de touros sobre o cartaz do MRRP, em cima de uma escada. 

Disse o António “queres descer sozinho, ou tiro-te a escada?”. 

O rapaz, envergonhado, desceu da escada e não colou o cartaz. 

O António era assim: voluntarioso, corajosos e convicto.

escrito por Carlos M. E. Lopes

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MEMÓRIAS SOLTAS * XXXII. O juiz

Havia o hábito nas feiras, mercados e festas, no Algarve do sotavento pelo menos, do jogo do “gaitinha”. Tal jogo consistia num dado que, sacudido num copo, era lançado e destapado. Em frente havia um retângulo com os números de um a seis, em duas filas, de um a três e de quatro a seis. Os homens da banca jogavam o dado. Se saísse o número onde o amigo apostasse, ganharia 5 vezes o que tinha apostado. Daí que, o banqueiro anunciasse, “com cinco, vinte cinco”. O jogo era clandestino, ainda que, às vezes, obtivessem uma licença, na GNR, para jogar. Como se sabe, o Estado sempre gostou de ser o maior batoteiro…

No fim do estágio, fui chamado pelo amigo Cansado, escrivão do Tribunal de Tavira, para defender, oficiosamente, um cidadão que tinha sido apanhado com a banca do gaitinha numa festa.

Dirigi-me ao tribunal e aí deparei-me com o cabo Sol. Disse-lhe que precisava de falar com o arguido em privado, pois ele não poderia ouvir a conversa. O cabo Sol, com a delicadeza que se lhe reconhecia, disse-me "E a segurança”? Eu retorqui “o problema é seu, eu posso falar em privado com o arguido".

Lá falei com o homem e ele disse-me que estava a ver o jogo do gaitinha e que, de repente, aparecem dois guardas à civil. Os outros fugiram, mas ele ficou. Eu aconselhei o homem a contar isso na audiência.

Ao ouvir os garbosos soldados do GNR, eles disseram que há muito perseguiam o arguido e que, nesse dia, foram à civil, e apanharam-no em flagrante, com a banca.

Eu, perante os depoimentos dos GNR fiquei convencido de que os soldados estavam a dizer a verdade.

Nas alegações finais, como é hábito e nada havia a dizer, pedi justiça.

Foi aí que eu conheci um juiz (AA, assim se chamava), que perguntou ao último GNR “quanto apreenderam ao arguido?” Aí o GNR balbuciou “200 escudos”.

Sentença do meritíssimo: “Absolvido! Com 200 escudos não se joga à batota”.

O juiz era batoteiro.

escrito por Carlos M. E. Lopes

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MEMÓRIAS SOLTAS * XXXI. Cervejaria Académica

Havia a cervejaria América, na Rua de Entre Campos, que desembocava na Avenida dos Estados Unidos da América. Às sextas, nos anos oitenta (não me fo** com o século passado!), o povo (moi-même e muitos outros) ia lá comer um bitoque e beber umas canecas. Quando o dinheiro não dava (e raramente dava) bebiam-se umas canecas e mandava-se vir uma dose de batatas fritas. Encharcavam-se as batatas com ketchup e a malta regalava-se. Nesse tempo, ainda não havia batatas fritas congeladas. Bons tempos! Os alimentos não tinham prazo de validade e o azeite das batatas tinham feito as 24 horas de Le Mans...

escrito por Carlos M. E. Lopes

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MEMÓRIAS SOLTAS * XXX. Jamaica

No início dos anos oitenta estava na moda o bar Jamaica, no Cais do Sodré, quase em frente ao mítico Texas. Cais do Sodré onde, presumo, o Mário Cesariny se entregou à Marinha portuguesa depois de um desgosto de amor. Pelo Jamaica se dizia que se poderia encontrar o Saldanha Sanches e a Maria José Morgado e outros famosos. 

Um dia zarpamos da Afonso Lopes Vieira, de Alvalade, para o Jamaica. Chegados à porta, fizemos contas. Contas feitas, rigorosas, certinhas. Foi só fazermos e arrancamos, rua do Alecrim a cima, fomos para a Trindade. Perdi a possibilidade de conhecer um bar da zona do Cais do Sodré. 

Cumprida a missão na Trindade, lá fomos em direção a Alvalade. Claro, com paragem obrigatória nas traseiras do Diário de Notícias para comprar o jornal com notícias fresquinhas. 

escrito por Carlos M. E. Lopes

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MEMÓRIAS SOLTAS * XXIX. Momentos

O homem seguia, curvado, à minha frente. Caminhava com dificuldade. Saía do Pingo Doce e levava um saco de plástico na mão. Pareceu-me pão, uma baguete francesa, pré-cozida. Ia um pouco forçado, era obeso e com um metro e oitenta, mal medidos. No cocuruto o cabelo rareava e era grisalho, barba rala e por fazer. Passei-lhe à frente. Vi-lhe a cara. Olhos vagos, semblante sério. As comissuras dos lábios apontando para baixo. Ar triste, cansado, de quem desistiu de tudo e não espera nada. Blusão verde-azeitona, calças de ganga, vulgares. A camisa saía-lhe, um pouco, das calças. Aparentava ter setenta anos. Se tivesse tido alegrias na vida, não transparecia. Caiu-lhe a carteira das mãos. Tentou apanhá-la. Não conseguiu à primeira. À terceira, apoiando-se num carro do estacionamento, recuperou-a. Tinha posto o joelho em baixo. Viu-se aflito, mas lá se ergueu, com muita dificuldade e um esgar de dor. Via-se que as pernas não lhe respondiam. Pareceu-me ver uma lágrima a rolar-lhe no rosto.

Segui-o, algum tempo. Dirigiu-se, vacilante, a um carro estacionado no parque da mercearia. Sacou do telecomando. O carro deu aquele estalo próprio da abertura. O carro era um castanho claro. Eu pensei "este carro é igual ao meu!'. O velho entrou, ajeitou-se no banco, olhou-se ao espelho e, só então, exclamei "este velho sou eu!".

(Para o meu melhor amigo).

escrito por Carlos M. E. Lopes

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MEMÓRIAS SOLTAS * XXVIII. Ator

Corriam os anos 80. Uns jovens tinham acabado o curso de cinema. Ganharam um prémio (mil contos?). Vieram por aí abaixo. Pararam em Tavira. O prémio obrigava-os a fazer um filme (curta, como é óbvio. Não poderia ser, com aquele orçamento, uma ópera chinesa). 

O argumento era simples. Três amigos desalvoraram de suas casas e queriam passar o ano em Espanha. Fui escolhido para entrar. Fazia de padrasto de um dos miúdos. Tinha de fazer que dormia (um esforço tremendo), levantar-me, ir à casa de banho e deparar com uma mensagem na testa, escrita, como despedida, pelo meu enteado.

A produção foi inexcedível. Aprontou duas ou três cervejas para o artista que, se não dormiu, esteve lá perto. Um trabalho insano e de grande esforço intelectual. Safei-me bem.

Ao depois havia que recuperar os moços que tinham sido apanhados na praia a quererem escapulir-se para Espanha. Aí acompanhei a mãe do petiz, fazia-me de desinteressado do que poderia acontecer ao moço. A coisa correu bem.

Brando telefonou-me, quando viu o filme, e disse-me, textualmente, “estiveste melhor do que eu com a Schneider no Último Tango. Em mim ninguém acreditou na cena da manteiga, mas tu estiveste soberbo a dormir. Congratulation, Carlos”.

O filme decorria no Natal. Na cena da praia contava a produção com alguns soldados da GNR, comandados pelo Capitão Ferro, comandante, ativos na busca, com cavalos e cães. Houve um pormenor que só se descobriu aquando da exibição. Sendo inverno, os garbosos guardas da GNR estavam de manga curta. As cenas foram filmadas de verão…

Eu, a fazer que dormia não significava que estivesse a representar, pois era uma atividade que me é natural. O Álvaro Regueira fazia de bandido. Também não se pode dizer que estivesse a representar…

O filme ganhou um prédio no festival de curtas de Vila do Conde. E ganhou por ser bom? Não. O júri frisou bem que o filme não era bom, mas o Cavaco era primeiro-ministro e a Zita, secretária de Estado para o audiovisual... Esta estava presente e, ao ver a Fernanda, exclamou “olha a Fernanda”. A única espectadora que conheceu um dos intervenientes. A hoje presidente da Câmara de Almada foi quem anunciou a nulidade do filme.

A coisa compôs-se e do filme e deste ator ninguém mais falou. O realizador, acho que há pessoas que o conhecem, chama-se Marco Martins. Nunca vi o filme. 

escrito por Carlos M. E. Lopes

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MEMÓRIAS SOLTAS * XXVII. Congresso Regional

Decorria o ano de 1977 e havia absoluta necessidade de realizar o Congresso Regional. Os camaradas afadigavam-se. Havia que levar a cabo a magna reunião dos verdadeiros comunistas. Não confundir com os revisionistas do partido do Barreirinhas Cunhal. Reuniões, atrás de reuniões, o povo derrotava a linha negra do renegado Sanches e a sua camarilha. De resto o camarada M. havia iniciado esse combate. Um dia, numa reunião, começou a abrir e a fechar as gavetas da secretária. “que fazes M.?” “procuro a linha negra!”. Aquilo era mesmo a sério. Defendeu também a compra de um autocarro para o partido com tantos volantes como lugares para passageiros. “M. para quê tantos volantes, móss?” “para rompermos por todas as frentes, diabe!”.

Passadas semanas, reunia solenemente o Comité Regional. Finalmente o secretário Regional ia ler a comunicação a apresentar na reunião magna. Sentado no topo da mesa, com as folhas do informe nas mãos, o camarada JV começou a debitar. A partir de certa altura o camarada começou a hesitar, a mexer muito nos papéis e a dizer muitos “portanto”. Era “portanto” para aqui, “portanto” para ali. O camarada AC, achando que a conjunção era em barda, acabou por deitar uma olhadela para os papéis do camarada secretário. Acabou a reunião. O camarada secretário regional não tinha tido tempo de escrever o relatório... e as folhas que “lia” estavam em branco!

escrito por Carlos M. E. Lopes

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MEMÓRIAS SOLTAS * XXVI. Greséus

Terra quase analfabeta, onde me sinto bem, sem qualquer interesse social, histórico, cultural ou outro, Santo Estêvão é a minha terra. Nasci lá, gosto da minha aldeia.

O português não é coisa que se cultive. A “engreja”, “greséus”, “fox” e tantos vocábulos que, só muito mais tarde, descobri que não coincidiam com o que a norma achava correta. Eu dizia “fê,bê,i”, até que um colega de Liceu, o Carlos Bastos, me disse, "diz-se 'Efe,bê,i'". E eu que adorava comprar livros do “fè, bê, i” no bar Jopinhal, com aquele tresandar a peixe frito, em Faro (Largo da Palmeira?).

Em Santo Estêvão, na Primavera, comiam-se “greséus”. Na minha casa, mais fina, “griséus”. Só quando fui estudar para Faro aprendi que aquilo se chamava ervilhas, nome consensualmente usado na capital do Algarve. Claro, senti-me atrasado, serrenho, inculto. E comecei a designar a leguminosa por ervilha. Não é preciso ver o Zelig do Woody Allen para saber que devemos encarnar quem nos rodeia.

Eu detestava os griséus, ervilhas, greséus. Acontece que um dia fui a França; chegados a Lacrouzette, no Tarn, Place Jean Nadal, fomos recebidos pela mulher do Irinée. Uma excelente cozinheira. Era noite e a fome era mais que muita. Vai daí vejo a senhora de roda do tacho. Eu já me babava, perante a hipótese de um pitéu francês de alto gabarito. Veio o tacho para a mesa e... que vejo eu? Ervilhas com salsichas frescas! Comi, claro, com o estômago a dar voltas. Pois... sabem o melhor? Passei a adorar ervilhas!

escrito por Carlos M. E. Lopes

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MEMÓRIAS SOLTAS * XXV. O "Luta Popular"

Ninguém podia duvidar do empenho nosso em fazer a revolução e da convicção em que a Revolução deveria avançar a todo o vapor. Mudar a vida e a sociedade era a nossa missão, empenho, desejo. Entregamo-nos a esse objetivo com o empenho que os vinte e poucos anos permitem. O Partido precisava de nós e o nosso desejo é que a coisa não falhasse por nossa causa. Não havia outra vida nem desejo. O Partido acima e antes de tudo. Havia que deixar tudo e todos, afazeres profissionais e quaisquer outras tarefas. Esse era o grande objetivo: manter vivo o único jornal marxista-leninista-maoista da Europa capitalista. A coisa não estava fácil.

Lisboa convocou-nos para uma reunião sobre o assunto, para nos fazer ver a importância da tarefa. Do Algarve fomos três: o Quim, o Alberto e eu. Um de Faro, outro de Loulé e outro de Tavira

[os locais e nomes, à exceção do meu, são fictícios, até porque as figuras envolvidas desempenham cargos políticos importantes ou são intelectuais de referência e podem não querer recordar um passado que eventualmente tenham repudiado].

Saímos do Algarve no comboio da noite, o correio. Chegámos a Lisboa bem cedo. Galgámos, a patas, até à Avenida Álvares Cabral. Aí estivemos em reunião, a manhã toda. Ao almoço, subimos até ao jardim da Estrela (já sem leão) e banqueteámo-nos com um lauto almoço: uma bola de Berlim e muita água da bica disponível. A ideia era fazer crer que o estômago estava cheio. 

Continuámos à tarde. Voltámos no correio. Mas o regresso não foi pacífico nem calmo. A partir de certa altura, o camarada de Loulé começou a meter-se na casa de banho ou fingia dormir no lugar destinado às bagagens. E, apesar de intransigentes defensores da classe operária e dos trabalhadores, o camarada louletano evitava o revisor. A razão era simples. No Terreiro do Paço, o camarada, honesto, em vez de pedir bilhete para Loulé, pediu um bilhete de cento e vinte escudos, que era o dinheiro de que dispunha. O bilhete só dava para pouco mais de metade da viagem, daí em diante havia que evitar o revisor.

O camarada Alberto chegou ao destino, sem problemas, mas não conseguimos impedir que o Luta Popular deixasse de ser diário.

escrito por Carlos M. E. Lopes

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MEMÓRIAS SOLTAS * XXIV. Cinema Palhinha

Era um acontecimento. Ao domingo, de tempos a tempos, havia cinema na aldeia. O salão era o armazém do Zé Vitorino, à curva, à esquerda, na descida de Santo Estêvão em direção a Tavira. Foi nesse armazém, onde se guardavam alfarrobas, havia barris, fardos de palha, uma vaca e um burro que vi, me emocionei, chorei e ri a ver cinema. As Pupilas do Senhor Reitor, Cantiflas, Joselito, Camões… eu sei lá o que vi… 

Ao entrar, havia a máquina de projetar. O gerador estava na rua. Ainda não havia luz elétrica. À esquerda, o ecrã, por cima do monte de alfarrobas. As primeiras filas eram bancos corridos, para os moços. A seguir, cadeiras com costas, para as mulheres. À direita, quando se entrava, havia umas manjedouras com o burro e a vaca, na parede, de frente para a parede de projeção, uns fardos de palha, em escadinha, que serviam de bancos para os homens. A disposição era semelhante à da igreja. Os moços à frente, as mulheres a seguir e os homens cá atrás. Os homens geralmente estavam alheados do filme, fumavam em cima dos fardos e bebiam aguardente de figo. De chapéu na cabeça, habitualmente.

O filme desenrolava-se -- e lembro-me dos choros, com baba e ranho, no filme Camões e, sobretudo, no filme La Novia, em que António Prieto nos fez chorar desalmadamente. O empresário, por vezes, prestava-se à explicação do enredo. “Então o rapaz encontra a rapariga e vê-se logo que gostou dela e…”

Nunca os meus pais foram comigo ao cinema. Durante a tarde, uma carrinha com altifalante percorria a freguesia a avisar o pessoal de que iria haver cinema. À noite, eu ia com o Fernando Brito. A maior ambição era poder ir para os fardos de palha, estar ao pé dos homens. Com alguma luta, lá conseguia. A moça que mais chorava era a Anabela Encarnação.

Depois, bom... depois era subir aquela estrada, uns trezentos ou quatrocentos metros até chegar à aldeia e a casa, encostado ao Fernando, e deitar-me. Os sapatos estavam cheios de palha. Espalhavam-se pela cama, com colchão também de palha. O mesmo se passava com quem em cima dos fardos tinha estado. 

O Fernando Brito, claro, com o espírito que o caracterizava, batizou “O Cinema Palhinha”. Ficou na memória. Inesquecível.

escrito por Carlos M. E. Lopes

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MEMÓRIAS SOLTAS * XXIII. O Saco

No final dos anos setenta, princípios de oitenta, já casado, voltei a estudar. Fiz o propedêutico e candidatei-me ao curso de direito a Lisboa e Coimbra ou sociologia em Lisboa e Coimbra. Fiquei em direito, em Lisboa.

Os três últimos anos, fi-los em Lisboa, tendo para o efeito arrendado um quarto na Rua Ator Vale e depois em Alvalade, na Rua Afonso Lopes Vieira.

Havia um casal que eu e um familiar meu, também estudante à época, visitávamos com alguma regularidade. Eu ia para ver os jogos do Benfica e aproveitava para tirar a barriguinha da miséria. A D. L era uma excelente cozinheira e transformava as sobras em pitéus. 

Também íamos lá buscar consumíveis que a família mandava. Laranjas, chouriço Revilla, bolachas Cuétara, roupa lavada. Às vezes, combinava com esse familiar e íamos juntos ou encontrávamo-nos lá. Lá chegados, o marido da senhora ainda não estava em casa. A D. L punha-nos à vontade "há aí whisky, estejam à vontade. Se não estiver aberta, abram e há mais". E havia. Modestos, dizíamos “D. L bebemos desta que já está aberta”. Era uma Swing, geralmente. Ao sairmos, já depois da meia-noite, a Swing balançava ainda, mas vazia.

Um dia, fomos a casa da D. L buscar um saco. Como eram coisas minhas, alombei com o saco, pesado. Fomos a pé. A casa ficava na Rua Sousa Viterbo, perto do Alto de S. João. Seguimos para a Graça, Limoeiro, Sé. Eu lá ia mudando de mão, pois o saco pesava. E lá íamos conversando de política. Sempre muito entusiasmados. As pegas do saco faziam-me doer a mão. Eu mudava constantemente de mão. 

Eu não consigo fazer duas coisas ao mesmo tempo: ou tomava conta do saco ou da conversa. Tanto eu como o meu familiar tínhamos sido do MR, pelo que tínhamos algumas leituras políticas coincidentes, ainda que ele já fosse do PSD. Deitávamos governos abaixo, com paixão e denodo. Quanto mais andávamos, menos atenção dava à conversa. 

Conheço pessoas que conseguem fazer duas coisas ao mesmo tempo. Diz-se que Clinton lia relatórios complexos, enquanto via um jogo na televisão. Guterres, também. Marcelo deve fazer três sacanices ao mesmo tempo. Disseram-me que tem que ver com o cérebro. Se biológico, estou safo…

Chegados ao Rossio, já não havia Metro. Eu já não sentia as mãos. Subida dolorosa da Avenida da Liberdade. Sempre com animada conversa, a que eu não podia dar a atenção devida. Fontes Pereira de Melo -- e eu, derreado. O meu familiar, livre e leve. Nem perguntou se eu precisava de ajuda, antes afivelava um habitual e natural sorriso cínico. Saldanha. Atacamos a Avenida da República. Eu, desesperado. 

Frente ao Campo Pequeno, paramos. Ele morava na Avenida 5 de outubro e eu, no Bairro de Alvalade. Despedimo-nos. Foi então que o cretino me disse “dá-me o saco, que o saco é para mim”. Pensei estrangulá-lo, revi as lições de direito penal num ápice. Não encontrei álibi. Não há álibi para os trouxas. Estou arrependido de não o ter estrangulado. Hoje, seria feliz, tinha lavado a minha honra e já estava cá fora. 

escrito por Carlos M. E. Lopes

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MEMÓRIAS SOLTAS * XXII. o Ernesto abstémio

O meu pai contava, sabendo o que dizia.

Ernesto era um pacato cidadão da minha aldeia, melhor, da minha freguesia. Vivia no campo, com uma tira de terra onde semeava alguns alqueires, tinha meia dúzia de oliveiras, uma dúzia de alfarrobeiras, tantas outras figueiras e outras tantas amendoeiras. Coisa magra, mas que lhe permitia ser proprietário. A vida era passada com dificuldades inerentes aos proventos, mas que lhe permitiam alguns devaneios de homem do campo. A sua Leopoldina lá cirandava, em casa, fazia a comida, o pão, costurava, gostava do seu Ernesto. Ernesto que, à falta de meios para custear a boda, havia “fugido” com a Leopoldina numa sexta à tarde, já lá iam quinze anos. O pai dera-lhe aquela courela, como filho único, e o pai da Leopoldina, passada a zanga, contribuíra com algum dinheiro. O casal viva bem com os homens e com Deus.

Aos domingos, o Ernesto e a Leopoldina iam à missa, ministrada pelo padre Arsénio Águas, que vinha da Luz de Tavira. Nada faria prever que algo perturbasse a vida de um casal normal, numa freguesia normal, com uma vida normal.

O Ernesto lá ia à aldeia aos funerais, como era hábito, no seu fato escuro, camisa branca e gravata cinzenta. Fato que haveria de levar quando morresse. E nesse fato, com gravata com nó feito no dia do casamento pelo Justo, o alfaiate da Luz, ia ao mercado de Tavira todos os meses.

Havia uma coisa de que a Leopoldina não gostava. Sempre que o Ernesto ia ao Mercado, a Tavira, o Ernesto regressava bêbado. Isso não podia ser. Aquela atração por baco, ela haveria de  lhe pôr cobro. 

Um dia, a Leopoldina pensou e fez. "Hoje vou com ele e nunca o hei de largar. Hoje não irá beber". E assim fez. A Leopoldina andou de braço dado com o seu Ernesto durante todo o mercado. A coisa prometia e o Ernesto não bebeu uma gota de qualquer bebida durante o mercado. Mas o Ernesto… chegou a casa bêbado. A Leopoldina nada disse. Aguardou pelo outro dia, pois o Ernesto não estava em condições.

No outro dia, a Leopoldina perguntou “oh Ernesto, ontem andaste sempre comigo e, quando chegaste a casa, estavas bêbado. O que se passou?”. O Ernesto foi sincero e disse: “mas não viste quantas vezes fui mijar?”.

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MEMÓRIAS SOLTAS * XXI. o meu tio Joaquim

O meu pai tinha dois irmãos. Um irmão, o Joaquim, e uma irmã, a Adília. O meu pai tratava os irmãos por você, não que fosse beto afetado de Cascais, mas porque era mais novo quase vinte anos do que eles. Os meus tios tinham uma filha cada. Eu era o único macho na família. O meu tio vivia a cinquenta metros da minha casa. Eu fui estudar para Faro, “passear os livros” como se referiam a quem estudava, na altura, com algum desdém. E o meu tio Joaquim, pelo Natal, fazia questão de esperar o fim de semana para combinar a matança do porco. A mim cabia-me puxar pelo rabo do bicho. Eram só homens. A minha prima Amélia não se aproximava e a minha tia Dionísia só aparava o sangue que comíamos cozido, com vinagre e salsa.

Combinada a matança com quinze dias de antecedência, num domingo, lá aparecia o matador, a princípio o marido da minha tia, o Macário, e depois o Leonor Cachopeiro, mais o Fernando Brito, eu e o meu tio. Mais tarde, juntou-se o marido da minha prima Amélia, genro do meu tio, que veio perturbar a minha qualidade de convidado especial. Mas, afinal, nada perturbou, continuei a ser fulcral naquela história.

De manhã juntávamo-nos na oficina do meu tio. Havia sempre uns fritos e aguardente de figo. O Leonel, figura principal da cerimónia, bebia uns cálices. O Leonel era pedreiro, um excelente pedreiro de pedra. Dos melhores da zona. Magro, relativamente alto, com nariz proeminente, era sempre alvo da chacota do pessoal. Eu gostei sempre do Leonel. Hei de contar uma aventura em Lisboa com ele.

Na cerimónia era gabado quem matasse o porco mais rápido. O Fernando Brito, gozão, quando o Leonel denotava alguma dificuldade dizia sempre “Leonel, tenho a caçadeira no carro, queres que a vá  buscar?”. Para o Leonel, aquelas palavras eram autênticas facadas. Abanava a cabeça como se não entendesse o que se passava, sendo ele um exímio matador de porcos. O porco, depois de longa agonia, lá morria, não sei se do ferimento se de solidariedade para com o Leonel, para não o deixar mal visto.

De seguida, abria-se o porco e o Fernando Brito, subtilmente, espetava a faca no coração do cevado e apontava para o Leonel “estás a ver, Leonel? Não falhaste!”. O Leonel inchava na sua vaidade e dizia “eu bem me parecia que lhe tinha dado com o toque”. 

Seguia-se a comezaina. Sangue, cachola guisada e febras. As febras começaram a entrar na ementa depois do aparecimento do genro do meu tio, o João Martins, mais pródigo do que o meu tio. Dessa gente toda, só eu estou vivo. A última a partir foi a minha tia Dionísia, o ano passado. A minha prima Amélia não fazia parte desta história.

escrito por Carlos M. E. Lopes


 


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MEMÓRIAS SOLTAS * XX. o suicídio da Maria

Maria é casada com Nic. Eu fui ao casamento, há talvez cinquenta anos. É um casal discreto, com duas filhas. Ela é de uma família da aldeia. Ele, pedreiro, vivia nas redondezas quando casou com a Maria.

Um dia, foi viver para perto do casal um outro casal que construiu a sua casa perto da casa da Maria e do Nic. Tal casal tinha uma filha muito bonita, vistosa, desempoeirada. Vivia por Lisboa. Era bailarina, livre, sem namorado sequer. Tinha uns olhos verdes deslumbrantes. As casas estavam separadas por uma estrada. O Nic começou a sentir alguma atração pela filha da vizinha. A filha começou a responder aos olhares lânguidos do vizinho dos pais com meios sorrisos. O Nic achou que era uma aceitação de corte. A vizinha, batida, brincou com Nic. Este não se apercebeu. Começou a sentir-se um galã de cinema. Passava muito tempo à porta de casa para poder vislumbrar a vizinha. Esta sorria-lhe e baixava a cabeça. Para Nic era uma aquiescência sem qualquer dúvida. O Nic começou a alardear entre os conhecidos que andava a “papar” a vizinha de Lisboa. A “coisa” foi-se espalhando, começou a ser falada na aldeia. Nic sentia-se confiante e audaz. Ajudava a vizinha a tirar as coisas do carro, quando ela chegava de Lisboa. Conversava, conversava. Sempre com um sorriso maroto no olhar. A vizinha gostava do jogo. Já espalhava as proezas que fazia por cima e por baixo. Umas orgias imaginativas.

Quem não gostou foi a mulher, a Maria, quando a mãe lhe confidenciou o que se falava pela aldeia. A Maria gostava do seu Nic, de quem tinha três filhos. O Nic mantinha-se irredutível nas suas proezas, surdo aos apelos da mulher. Queria lá saber! Aquilo era tão bom… Com quase cinquenta anos de casado o Nic, de repente, sentia-se audaz, com êxito em relação ao sexo feminino, capaz de proezas na alcova de envergonhar gente nova. Ainda por cima uma finória de Lisboa e uma artista. O Nic andava eufórico, sem reparar na tristeza da sua Maria. Queria lá saber! Aquilo era tão bom… sobretudo o êxito entre amigos e conhecidos. O Nic não reparou nas proporções que o caso estava a tomar e, nem sequer, via a tristeza, amargura e desespero da sua Maria.

Um dia, sem se esperar, a ambulância passou na aldeia em direção à casa de Nic. Que se passava? A Maria, desesperada, havia engolido uma caixa de comprimidos, para pôr termo à sua vida e não sofrer mais. Ambulância, mãe, pai, filhos, mesmo o seu Nic, causa daquele ato de desespero, vizinhos todos num alvoroço. “Esperemos que se salve”. Lá foi para o Hospital de Faro, mal, muito mal, entre a vida e a morte. Fizeram-lhe lavagem ao estômago, puseram-na a soro nos cuidados intensivos. Maria arrebitou, esteve lá dois ou três dias. Regressou amarelada, débil, fraca de pernas, com espasmos. Salvou-se. Dificilmente teria morrido daqueles comprimidos. Eram de vitamina C. Tão só.

Os vizinhos venderam a casa, a filha nunca mais apareceu a visitar o Nic, foi pregar a outra freguesia.  De todos os que ouviram as histórias do Nic, só duas pessoas acreditaram nelas: O Nic e a Maria. Ela agora tem-no de corda curta, ele, por outro lado, está velho.

escrito por Carlos M. E. Lopes

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ANALFABETO

Eu ia a sair de casa, com os livros debaixo do braço, quando tropecei numa mosca poisada no poial da porta e comer um pastel de nata. A mosca era minha conhecida há dias, era a Lúcia, provavelmente estava já entradote na idade. Nem se mexeu, tinha perdido a sensibilidade depois de ter sido atacada pelo Covid19. Caí, claro, espalhando pelo chão os livros que levava, bem apertados junto ao peito numa pasta, daquelas sem fecho e com o Infante D. Henrique na capa.

Saltei para cima do sapo que me esperava à porta. Após três saltos, fui projetado das costas do batráquio e quase ia partindo as costelas no chão. Eu não tinha posto o cinto de segurança. Aselhice minha. É por estas e por outras que há tantos acidentes com estes transportes.

Fui a pé para a escola. Antes de atravessar a rua passa por mim, veloz, a tartaruga Miquela. “Aonde vais tão depressa?” “Vou a casa do Alfredo, disseram-me que tem um charco muito bonito no seu quintal, da chuva que caiu ontem à noite. Vou dar um mergulho”. As tartarugas, com menos de vinte anos, não vão à escola, como vivem muitos anos, só entram na escola nessa idade.

Lá fui eu para a Escola. Ao chegar, vi as janelas encerradas. Um corvo, que por ali estava, informou-me: “Hoje não há escola, a professora está doente”, crocitou e fez um sorriso suspeito.

No outro dia, fui repreendido por ter faltado à escola. Expliquei que tinha as janelas fechadas e que o Corvo me tinha dito que não havia escola pois a Srª Profª estava doente.

“Qual quê?! Foste enrolado pelo corvo, o Analfabeto? Como sabes, ele é muito inteligente e não quer que os outros aprendam para não serem mais espertos do que ele. As janelas estavam fechadas porque a Profª Adriana ia passar um filme de animação e era necessário não haver luz para melhor se verem as imagens”.

Fiquei com tanta raiva do corvo que nunca mais lhe falei e, sempre que o ouvia a falar, sempre o combatia e denunciava “não acreditem no corvo, é mentiroso e invejoso”.

Nisto, uma voz bateu-me nos ouvidos e eu…acordei.

-- Carlos Manuel, acorda, são horas de ires para a escola. -- E logo naquele momento em que me preparava para dar uma sova no Analfabeto.

escrito por Carlos M. E. Lopes



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MEMÓRIAS SOLTAS * XIX. os anarquistas

O ano de 1975 foi, provavelmente, o ano mais rico, em termos políticos, que tivemos em Portugal. O famoso PREC, que vai de 11 de março a 25 de novembro de 1975, foi um período louco, esfuziante, alegre, em termos políticos. Tudo era possível. O “sejamos realistas, exijamos o impossível” veio tarde, mas em força. Havia um corrupio de gente de fora para “cheirar” a revolução portuguesa. Lembro-me de dois polícias italianos, do PCI, virem mais de uma vez passar o 25 de abril a Portugal. Lembro-me de uns franceses, nossos camaradas, que passaram pela minha casa com o Emanuel Nunes, mais tarde secretário de Estado do Sócrates, ter vindo com eles a Santo Estêvão.

Mas andava eu por Lisboa e ia comer, como era óbvio, à cantina velha. Entre aulas (poucas) e RGAs estas ganhavam em número de horas lá passadas. Em medicina no Campo de Santana, em anfiteatros no Hospital de Santa Maria, na Faculdade de Direito e na Faculdade de Letras, eu corria todas.

Na faculdade de letras pontuava o Prof. Lindley Cintra, um homem sabedor que, na altura, viveria com Isabel Hub Faria, também ela professora. Lindley Cintra citava a revolução cultural, Mao Tsé-Tung e sei lá que mais. Há quem diga que se tinha passado por causa do seu amor.

Na Faculdade de Direito Durão Barroso punha em respeito o PCP. No anfiteatro 1, saltava para cima da mesa e arengava às massas. O meu antigo colega do Liceu de Faro, o António Cluny, não tinha margem de manobra. Foi ali, na Faculdade de Direito, que mais incidentes conheci numa AG. “Ponto de Ordem à Mesa”, “Moção”, “Resolução”. Eu sei lá... Incidentes, manobras dilatórias, formas de boicotar a reunião, discutir o acessório para impedir a discussão do essencial. Um mundo e uma escola.

Entretanto surgiram os anarquistas. Na cantina nova, na avenida das Forças Armadas, apareceu uma frase. Constava que Álvaro Cunhal tinha sido torturado na prisão e que lhe tinham esmagado os testículos, tendo ficado sem eles. Vai daí os anarquistas escreveram “Cunhal, na aula de educação sexual, apanhou falta de material” (longe estava ainda o Nuno Melo). A UEC, zelosa e intransigente na defesa do seu património e dirigente, apagou com tinta preta a palavra "Cunhal". Os anarquistas escreveram então “por favor não encostar o cu à parede”.

Na altura, havia um soldado que estava preso, julgo que no âmbito das manifestações e recusas em embarcar para as colónias. Era o Etelvino de Jesus, militante (ao que julgo) do MRPP. Havia então uma palavra de ordem pintada por todo o país “Libertação imediata para o soldado Etelvino de Jesus”. Os anarquistas que, em novembro, começaram a organizar uma manifestação para janeiro ou fevereiro, distribuíram profusamente panfletos na Cantina Velha com a seguinte palavra de ordem “libertação imediata da sardinha em lata”.

Tempos loucos, esses.

escrito por Carlos M. E. Lopes

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MEMÓRIAS SOLTAS * XVIII. faculdade de direito

Corria o ano de 1981 ou 1982, já não sei. À saída das aulas os alunos foram confrontados com um grande texto, em papel cenário de metro e meio de largura e uns seis ou sete metros de comprimento espetado à saída da faculdade de Direito, mas do lado de dentro, em que um professor denunciava o comportamento indecoroso de outro, não o poupando em adjetivos pouco abonatórios. Citando de cor, pois à altura nem telemóveis havia, entre outras coisas o professor/denunciante dizia ter grande consideração e respeito pelo pai, o qual tinha sido um bom professor e bom pai. Tinha sido o seu pai professor de alemão do denunciado, mas havia uma coisa que não perdoava ao pai: não ter conseguido fazer dele um homem.

A coisa, mais coisa menos coisa, foi assim. Achei duro, violento, até, o texto. De uma grande crueza e frontalidade. O professor denunciado era caracterizado por alguma cobardia e perfídia. A história veio a confirmar alguns adjetivos com que foi mimoseado o denunciado. De resto, uma pessoa muito conhecida. O denunciante acabaria por ter sido “corrido” da faculdade de Direito, o segundo lá continuou até à reforma, encabeçando um conjunto de professores que acabaram por “correr” com alguns dos melhores professores que havia na Faculdade de Direito. Lembremos que até Freitas do Amaral, um perigoso esquerdista, saiu não muito contente com o ambiente que então se vivia.

O Professor denunciado é constitucionalista, mas não conheço qualquer contributo dele para o constitucionalismo português, ao contrário de Jorge Miranda, Gomes Canotilho e Vital Moreira, só para citar os famosos de então.

Ah, o denunciante era António Garcia Pereira. O denunciado, Marcelo Nuno Rebelo de Sousa.

escrito por Carlos M. E. Lopes

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