10.7.09

(ainda) michael jackson: para lá do grotesco

O texto que segue é uma espécie de comentário ao comentário do Manuel S. Fonseca ao meu comentário à crónica que ele escreveu. Pareceu confuso? Não é. Eu escrevi uma crónica, o Manuel escreveu outra, eu comentei a crónica do Manuel (é só espreitar no fundo da página da crónica), o Manuel respondeu com este texto, e assim chegámos aqui.

O texto-resposta do Manuel trouxe-me à memória um episódio do meu passado. Certa vez, em conversa sobre correcções dentárias, alguém me pediu encarecidamente que, caso alguma vez eu viesse a usar um aparelho ortodôntico, corrigisse tudo o que entendesse, excepto o desalinho que apresenta um dos meus incisivos centrais inferiores. Quando perguntei porquê, respondeu-me que aquele pormenor, aquela imperfeição, era belo e que, por isso, não deveria ser apagado. Na altura esforcei-me por acreditar que as palavras eram movidas pelo afecto que vivíamos à época (entretanto extinto), mas sei-o bem (já na altura como agora o sabia) que não. Tratava-se, precisamente, de uma verbalização dessa consciência de que há pormenores – imperfeições – que nos tornam humanos, como diz o Manuel S. Fonseca na sua última crónica. E tudo porque a perfeição não é da nossa natureza e é bom que estejamos todos cientes disso.

Seja como for, nunca corrigi o tal desalinho. Acho graça ao pormenor, do mesmo modo que me habituei a descobrir beleza nas marcas da varicela, nas sardas, nas manchas senis que a idade imprime na pele. E não sei se já disse aqui, mas tenho um fraquinho por narizes imponentes. Daqui se conclui que eu não ando distante da interpretação de que uma boa parte da beleza dos homens reside na sua imperfeição. É também essa imperfeição que torna cada um de nós distinto dos demais e se há coisa que eu aprecio tanto como a liberdade é a autenticidade.

Haverá muitos modos de abordar a imperfeição, haverá muitos tons, haverá muitos contextos, haverá muitos pontos de partida. Subscrevo, por isso e em absoluto, a ideia adiantada pelo Manuel de que, ao lerem a crónica de Henri-Lévy, todas as pessoas lerão a mesma coisa, mas não da mesma forma. Talvez a nossa divergência de interpretação do texto de Henri-Lévy venha daí - o que me parece uma crítica, ao Manuel parece um louvor; o que me parece uma conotação negativa, ao Manuel parece positiva; o que me parece um mau final, ao Manuel parece uma chave-de-ouro. Como é consabido, não há uma única lente para ver o mundo, pelo que todas as representações serão admissíveis. Resta a cada um defender a sua dama.

O que me perturbou na leitura da crónica de Henri-Lévy foi o modo como toma por adquiridos factos que, além de carecerem de fontes, foram sistematicamente desmentidos. Dou a mão à palmatória: é muito provável que eu dê demasiado relevo aos factos e ao rigor e que isso se note bastante. Peço, pois, que nesse aspecto me seja concedido o desconto devido a quem padece de uma degeneração profissional. Admito que me importo imenso com a verdade, porque a concebo como uma relevante parte da ideia de justiça e a justiça é-me muito cara. Se isso me leva a pôr em causa o que é posto em causa (ou seja, desmentido) é porque estou acostumada a ver sempre duas versões da mesma história, o que quase nunca é bom, já que indicia que uma das partes está a mentir e eu não tenho uma relação lá muito amistosa com a mentira (e às vezes em meu prejuízo). São, digamos, os meus «ossos do ofício». Ademais, esta ideia é adensada pela minha firme convicção de que Wilde (e logo Wilde!) poderia igualmente ter dito «É monstruoso ver como, nas nossas costas, as pessoas dizem de nós coisas inteira e absolutamente falsas», porque se há domínio em que, por excelência, é frequentíssimo assistir a observações pouco rigorosas (tanto para o bem como para o mal), é o da apreciação do Outro. Todos sabemos que uma palavra (um boato, se preferirmos) pode construir ou destruir uma reputação num ápice.

Claro que alguém com esta perspectiva crua das coisas dificilmente poderia ter uma visão hagiográfica de Michael Jackson, pelo que neste ponto rebato o que afirmou o Manuel. Não creio ter-lhe cantado quaisquer loas, a não ser que assim se considere a minha referência ao seu papel na história da música ocidental e ao seu talento como intérprete/bailarino/inovador/universal. O que escrevi mantenho, porque nisso Michael Jackson é mesmo o que eu disse que ele era: ímpar e genial, já que não usei outro adjectivo para o qualificar que não estes. Quanto a mais, pouco me importam os pecadilhos de Jackson, se fez ou não sexo para conceber os filhos, se tomava ou não drogas para anestesiar a dor física, se fez duas ou mil operações plásticas. Procuro respeitar a palavra das pessoas (neste caso, de Jackson), principalmente quando não há provas substanciais de que estejam a mentir. O que me importa (e incomoda), e muito, é esta tendência (demasiado) humana de nos atermos (demasiado) ao estranho, ao misterioso, à imperfeição. Ainda que tenha de gastar fortunas em incenso, dificilmente a compreenderei. Continuo a achar que o grotesco tem o seu papel a desempenhar, mas que está longe de ser o protagonista da história.

[Também publicado em PnetCrónicas.]

© Marta Madalena Botelho

8.7.09

digno de tablóides no seu melhor

Bernard Henri-Lévy publicou hoje, no jornal "i", uma crónica intitulada «As três estações da via-sacra de Michael Jackson». O artigo, ao invés de filosófico e reflexivo, como tem pretensão de considerar-se, é digno de tablóides no seu melhor.

Praticamente toda a informação nele contida é falsa. E como sabemos que é falsa? Em primeiro lugar, porque foi veiculada por um certo tipo de comunicação social que jamais primou pela lisura e pela objectividade. Depois, porque nunca foram sequer indiciadas as fontes de tais informações (como poderiam, se as mesmas são falsas?). Por último, porque foram sistematicamente negadas pelo próprio Michael Jackson em vida.

Estes "boatos" que distorcem a realidade foram ainda negados por outras pessoas envolvidas, como, por exemplo, os médicos do cantor. Com efeito, não há sequer um médico (ou uma clínica) no mundo que confirme e tenha provas de ter realizado uma operação cirúrgica a Michael Jackson para além das duas - ao nariz e de reconstrução aquando do incidente que lhe provocou queimaduras graves durante a gravação de um anúncio da «Pepsi» - que o próprio sempre admitiu ter feito.

O tão falado facto de o tom de pele do cantor ter mudado ao longo da vida não tem nada de extraordinário, ao contrário do que a crónica de Henri-Lévy, tal como tantos outros artigos mal-intencionados, pretende dar a entender. A razão afecta 2% da população mundial e chama-se Vitiligo, é uma doença de pele não-contagiosa que se caracteriza pela perda da pigmentação da pele e tanto Jackson como os seus médicos afirmaram que o cantor padecia dela. Michael Jackson tentou ocultar a doença durante um longo período da sua vida e fê-lo enquanto a maior extensão da sua pele não estava ainda despigmentada. A partir de certa altura, praticamente todo o rosto foi afectado pela despigmentação, o que levou Jackson a optar pela maquilhagem (indispensável para proteger quem tem a doença) de tom mais claro. Isto justifica também o tom "de porcelana", característico dos doentes com Vitiligo, bem como as máscaras, já que a doença aumenta em larga escala o risco de cancro de pele.

É também por isso que as acusações de ódio racial de que Jackson foi alvo são apenas uma tentativa de denegrir a sua imagem, já que, inegavelmente, ele fez mais pelos negros na história da música do que anos e anos de blues e jazz. Os mais atentos certamente não precisarão de recordar «They don’t care about us» (curiosamente, uma canção também usada para distorcer as verdadeiras intenções do cantor) para confirmar o enorme comprometimento de Jackson com diversas questões sociais controversas.

A referência à câmara de oxigénio onde, supostamente, o cantor dormia só pode ser considerada leviana, já que foi desmentida pelo próprio (como se o ridículo não bastasse já para a pôr em causa!). Quanto ao formato do rosto e às mudanças que o mesmo foi evidenciando ao longo do tempo, compare-se com o de sua mãe e talvez as diferenças não sejam assim tão grandes (mesmo no que toca ao nariz).

Outro aspecto incompreensível da crónica de Henri-Lévy é a afirmação que Jackson tinha horror ao ser humano. Ele, como nenhuma outra figura pública da sua dimensão (haverá alguma, além de Madonna?), sempre se quis rodeado de gente. Escolheu as crianças porque não o criticavam, porque não o viam como objecto a explorar para fazer dinheiro às custas de fotografias ou como um bom alvo para uma difamação através de um artigo de jornal. Escolheu o seu mundo (Neverland) porque só ali se sentia em paz, longe dos olhares curiosos e maldosos que em tudo o que fazia buscavam oportunidade para o acusar, criticar, atingir. Quem poderá censurá-lo por isso?

Sobre a concepção dos filhos, todos parecem saber mais do que o próprio Jackson e a mãe das crianças. Mesmo não tendo que o fazer (chega a ser ofensivo pôr a questão em causa), ambos afirmaram repetidamente que as crianças foram concebidas naturalmente, através de relações sexuais. De resto, não consta que o cantor tivesse algum problema nesse aspecto, atendendo a que foi casado duas vezes e outros relacionamentos mais ou menos sérios lhe foram conhecidos.

Em suma, de uma ponta à outra, a crónica de Henri-Lévy está baseada em inverdades e afirmações nunca confirmadas, em menções infundadas, em considerações que roçam o insulto, daquelas que o hábito de ler em certo tipo de "imprensa" já quase nos anestesiou a indignação, mas que não deixam de ser chocantemente lamentáveis quando publicadas noutros suportes e subscritas por certos nomes.

Michael Jackson, como todos os seres ímpares e geniais, será sempre um bom tópico de reflexão sobre o ser humano, especialmente no que respeita à possibilidade de ultrapassar a própria dimensão da materialidade e da temporalidade e de se tornar eterno. Por isso, a maior evidência do tremendo erro em que incorreu a crónica de Henri-Lévy é a frase com que a mesma termina. Afirmar que alguém como Michael Jackson morre só pode ser visto como ingenuidade. Uma ingenuidade de certo modo só equiparável à crença em todas as incorrecções em que o resto do texto se ancorou.

[Ver e ouvir: Michael Jackson. «They don't care about us». 1996. Versão não censurada (contém cenas de violência).]

[Também publicado em PnetCrónicas.]

© Marta Madalena Botelho

7.7.09

a mim também me incomoda

cartoon de José Bandeira no DN de 03/07/2009 sobre este assunto

3.7.09

fidelidade

Certo dia, por acaso, enquanto espreitava a grande janela da internet, ela encontra um blogue. Não sabe porquê, mas não resiste a lê-lo de fio a pavio. Na barra lateral procura, ansiosa, um endereço de correio electrónico e naquela noite escreve ao autor explicando-lhe como desenvolveu uma afinidade intelectual consigo. Ele responde, usando o mesmo tom de fascínio pelo e-mail dela: a prosa tão igual, tantos pontos em comum, tantos gostos similares! Segue-se uma intensa troca de e-mails repletos de palavreado inflamado e recheado de segundos sentidos.
Passado algum tempo, ele sugere que se encontrem ao final da tarde, num café pacato, mas trendy, ou, em alternativa, nos jardins de um museu. Bebem cafés, comprometem-se um com o outro sem dizer palavra, desejam-se. Pouco tempo depois, cautelosamente, escolhem um hotel - local neutro, para que as memórias sejam apenas ténues e se desvaneçam com o tempo. Vão para a cama um com o outro e gostam.
Ensaiam ambos uma despedida necessariamente rápida - ao estilo do cinema francês - o que tem muito maior impacto porque, pelo menos, um deles é casado. Reparam agora que, sobre isso, do outro nada sabem, mas com os lençóis ainda amarrotados sobre a cama não lhes parece o momento adequado para questões do género. Talvez por e-mail a pergunta venha a surgir, depois.
Em direcções opostas da mesma rua, um faz o caminho para casa a pé, o outro apanha um táxi. Ambos dão por si a reparar nas luzes da cidade onde entretanto anoiteceu.
Nos dias que se seguem, a afinidade diminui, o entusiasmo esmorece, o encanto some-se, os e-mails rareiam. Há um rosto do outro lado do monitor e algumas ideias pré-concebidas estavam a anos-luz da realidade. Agora há a consciência disso, que antes era uma mera possibilidade que se acreditava remota. Lembram-se que certo dia foram para a cama um com o outro, mas hoje parece-lhes terem gostado menos do que lhes pareceu na altura.
Um dia, as visitas aos blogues um do outro passam de escassas a nenhuma. Mesmo assim, ele não apaga o link do blogue dela, ela não apaga o link do blogue dele. Foram para a cama, talvez não tenham gostado assim tanto, mas não apagam dos respectivos blogues o link do blogue do outro.

De certo modo, é isto a fidelidade na blogosfera. Aliás, talvez seja mesmo só isto.

© [m.m. botelho]

2.7.09

demencial

Que, em Portugal, a elevação verbal não era propriamente o forte nos debates parlamentares, já se sabia à saciedade. O único reduto do bom senso parecia ser o da linguagem corporal dos deputados e do governo, mas a partir de hoje até isso mudou.
Em pleno debate quinzenal sobre o estado da nação, após a interpelação feita por Jerónimo de Sousa sobre a situação das Minas de Aljustrel, e durante a resposta do Primeiro-Ministro, após Bernardino Soares, à margem dos microfones, ter dito que Pinho teria ido à vila alentejana «dar um cheque», o Ministro da Economia, Manuel Pinho, dirigindo-se à bancada parlamentar do Partido Comunista, imitou, fazendo uso dos dois dedos indicadores e da sua própria cabeça, dois chavelhos apontados na direcção do líder parlamentar do PCP.
Os que acompanhavam o debate em directo e são mais incrédulos, como eu, ainda tentaram admitir que Manuel Pinho estava a imitar um Teletubbie ou a dizer que o que lhe apetecia mesmo era comer espetadas, mas dando-se o caso de não haver crianças na câmara da Assembleia da República e ser ainda hora do lanche, parece pouco provável que assim fosse.
O momento foi captado em fotografia (a que ilustra este texto é de Nuno Ferreira Santos para o Público) e em vídeo e rapidamente difundido pela internet e não deixa muita margem para dúvidas. Resta perguntar o que terá passado pela cabeça do Ministro da Economia, para além dos evidentes chavelhos. Um momento, no mínimo, demencial.

[Também publicado em PnetCrónicas.]

© Marta Madalena Botelho

22.6.09

cristiano ronaldo não é português

Noventa e quatro parece ter sido o número que mais andou nas bocas do mundo na passada semana e tudo por causa de Cristiano Ronaldo. A quantia paga pelo Real Madrid deixou uns boquiabertos, alguns orgulhosos e outros tantos invejosos. Se é muito ou pouco dinheiro depende da perspectiva.

Não sei por que carga de água é frequente achar-se que todo o português adora futebol e, por isso, defende as cores da sua selecção e vibra com os campeonatos, jogadores, treinadores e adjuntos com a mesma intensidade, isto é, imenso. Já nem as mulheres, dantes salvaguardadas desta visão linear das coisas, estão a salvo. Agora até delas se espera que saibam quem é o guarda-redes da Académica, o árbitro do jogo contra a Suécia e o nome do estádio em que vai disputar-se a final da taça EUFA.

Sucede que, daquilo que me é dado a conhecer, há muitos portugueses – e portuguesas, claro! – que não fazem sequer a mais pálida ideia das regras do jogo. Outros há, como eu, que até sabem as regras (e que até já praticaram a modalidade!), mas de bom grado trocam um jogo de futebol, mesmo que recheado de estrelas ou uma final de uma importante competição, por hora e meia de uma boa soneca. Regra geral, estas confissões em público dão logo direito a ser fulminado por diversos olhares vindos de todas as direcções, sendo certo e sabido que o momento do insulto acontece quando a/o pobre fulminada/o confessa achar todas as manifestações de nacionalismo folclórico, a começar pelas relacionadas com a bola, uma grande treta. Já me aconteceu, por isso sei bem do que estou a falar. Não fosse eu senhora de bons reflexos e pés rápidos e quem sabe o meu carro não teria um risco de uma ponta à outra à conta de uma observação do género.

Há quem diga que, de acordo com as regras do bom nacionalismo, português que é português deveria rejubilar intensamente com o facto de Cristiano Ronaldo ter sido o jogador mais caro de sempre. Aliás, há até quem diga que cada português deveria sentir-se ele próprio merecedor de alguns euros dos noventa e quatro milhões que o Real Madrid pagou pelo jogador porque, afinal de contas, Ronaldo é português, é "nosso", logo, o seu valor também.

Parece-me que não é preciso ir daqui a Badajoz (a alusão à cidade espanhola é pura provocação) para perceber o quão iludidos estão. A não ser que Ronaldo nunca se esqueça de que é português para contrariar isso com todas as forças, não estou mesmo a ver em que é que a nacionalidade tenha ajudado.

É óbvio que se há factor que conduziu Cristiano Ronaldo ao elevado patamar onde está, esse factor é com certeza a sua tendência para contrariar esta bonomia tão lusa. No fundo, tudo o que ele faz é esforçar-se por ser o mínimo português possível. Atrever-me-ia até a dizer que, provavelmente, nem sequer gosta de fado! Porém, a grande diferença está nisto: está consciente das suas capacidades e não está à espera que os outros façam aquilo que só depende dele. Isto é ser português? Não, pelo contrário!

Conforme o ponto de vista, noventa e quatro milhões de euros pode ser muito ou pouco dinheiro pela compra de um jogador como ele. Para mim, por exemplo, Ronaldo está a ser mal pago. Bem vistas as coisas, o seu esforço é redobrado, o que, em consequência, deveria ser pago a dobrar. Além de ter de se empenhar em ser um excepcional jogador, todos os dias tem de contrariar os seus genes portugueses, o que deve ser altamente desgastante, senão mesmo heróico!

É uma evidência: mais do que os pés e a criatividade de Cristiano Ronaldo, a sua capacidade de ser pouco português é que o levou onde ele chegou. Isso vale muitíssimo mais do que noventa e quatro milhões de euros. Isso vale muito mais do que qualquer clube de futebol poderia comprar. Isso é impagável.

[Também publicado em PnetCrónicas.]

© Marta Madalena Botelho

18.6.09

«juridiquês»

Chegou-me às mãos, por correio electrónico um texto de fina lavra, atribuído à oratória de um causídico. Nestes tempos em que se discute a existência, a necessidade e a prevalência do «juridiquês», pareceu-me oportuno partilhá-lo por aqui.

«Diz a lenda que um advogado ao chegar em casa, ouviu um barulho estranho vindo do seu quintal. Lá chegado, constatou que um ladrão tentava levar os seus patos de criação.
O Advogado aproximou-se, vagarosamente, do indivíduo e, surpreendendo-o ao tentar pular o muro com seus amados patos, disse-lhe:
- Oh, bucéfalo anácrono! Não te interpelo pelo valor intrínseco dos bípedes palmípedes, mas sim pelo acto vil e sorrateiro de profanares o recôndido da minha habitação, levando meus ovíparos à sorrelfa e à socapa. Se fazes isso por necessidade, transijo; mas se é para zombares da minha elevada prosopopéia de cidadão digno e honrado, dar-te-ei com a minha bengala fosfórica bem no alto da tua sinagoga, e fá-lo-ei com tal ímpeto que te reduzirei à quinquagésima potência que o
vulgo denomina "nada".

Então, o ladrão, confuso, diz:
- Senhor Doutor, eu levo ou deixo os patos?»

Resta saber se seriam estes os «tiques de linguagem para criar sofismas de Advogado» a que o Governador do Banco de Portugal, Dr. Vítor Constâncio, se referia na passada segunda-feira, durante a sua audição perante a Comissão Parlamentar de Inquérito ao Sistema Bancário («caso BPN»)...

© Marta Madalena Botelho

9.6.09

um nome não faz a diferença

placa toponímica da Praça Dr. Oliveira Salazar, em Odemira, existente há largos anos.
[fotografia de Luís Bonifácio]

CComo muitos, também eu achei inusitada a escolha do dia 25 de Abril para a inauguração da Praça António de Oliveira Salazar em Santa Comba Dão. Com tantos dias no calendário foi, dir-se-ia, provocatório fazer coincidir uma homenagem a Salazar com o dia em quem se cumpriam 35 anos sobre o princípio do fim de uma era tão negativamente marcada pelo seu espectro.

Porém, coincidências de datas à parte, devo dizer que não me perturba minimamente que Santa Comba Dão tenha atribuído a uma praça o nome de um filho da terra. Há que compreender as razões que levaram a isso e, para tanto, convém não esquecer que Salazar não foi só o odioso presidente do Conselho que instaurou uma ditadura antiliberal e anticomunista em Portugal, mas também um conterrâneo daquelas gentes (já que nasceu no Vimieiro, uma freguesia do concelho de Santa Comba Dão) e, ainda, um brilhante professor de Direito e um notável académico na sua área (formou-se com 19 valores em Direito, em Coimbra, onde foi regente da cadeira de Economia e Finanças Públicas e se doutorou com apenas 29 anos). Embora a memória colectiva e mais recente tenda a realçar apenas o que Salazar tinha de negativo - e era tanto! - é redutor e mesmo injusto ignorar isto, correndo-se o risco de, como dizem os ingleses, deitar fora o bebé com a água do banho.

Posso até compreender que se apelide o gesto dos santacombadenses de provinciano, embora me pareça muito mais tacanho e vergonhoso promover a general alguém que foi julgado e condenado (e só posteriormente amnistiado) por ter sido líder de uma organização terrorista responsável por ataques bombistas que mataram dezassete pessoas. Muito mais provinciano me parece que essa mesma pessoa tenha adquirido o estatuto de personagem de grande relevo histórico, com honras de aparição em tudo quanto são filmes e documentários sobre a revolução dos cravos como se do único elemento do MFA ainda vivo se tratasse...

Retomando o tema: ao contrário de alguns, não creio que atribuir o nome Salazar a uma praça seja sintoma de que se vivem tempos "salazaristas" em Portugal, embora reconheça que, aqui e ali sempre se poderiam descortinar alguns traços "salazarentos" nos tempos que correm (recordemos o não muito distante autoritarismo de uma certa directora regional de educação do Norte que, sem apelo nem agravo instaurou um procedimento disciplinar a um professor a propósito de uma piada e, ainda, os dois momentos de grande elevação parlamentar em que um primeiro-ministro respondeu a um deputado «não seja ridículo» e a outro «esteja mas é caladinho»).

Em todo o caso, afigura-se tão legítimo existir uma Praça Salazar em Santa Comba Dão como uma Praça Marquês de Pombal em Lisboa. Se o primeiro foi inegavelmente um ditador, o segundo, ao assumir o papel de «mão invisível» do Absolutismo em Portugal, não o foi menos.

No fundo, impõe-se perceber porque é que tais praças foram nomeadas Salazar e Marquês de Pombal, se para exaltar os ditadores, se para homenagear algumas qualidades que (queira-se ou não, goste-se ou não) ambos terão demonstrado. A mim parece claro que foi pelo segundo motivo e, se assim é, o rigor impõe que se o diga, tal como o respeito pelos valores democráticos exigem que se aceite que a realidade é tão rica quanto o pensamento dos homens e que nela há lugar tanto para os que exaltam os defeitos de Salazar como para os que lhe exaltam as virtudes. Façamo-lo e não serão nunca os nomes das praças deste país a fazer a diferença, mas sim, sempre e só, os seus cidadãos.

[Também publicado em PnetCrónicas.]

© Marta Madalena Botelho

8.6.09

gosto tanto deste vídeo...


... realizado por Marco Morandi.
Dustin O'Halloran. «Opus 23».
Do álbum «Piano Solos Vol. 2» [2006].

7.6.09

os (des)curados

A novela começou no dia 2 de Maio, um sábado soalheiro, com a publicação de uma reportagem no jornal «Público», onde o presidente do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos, José Marques Teixeira, afirmou que um psiquiatra poderia dar resposta a um homossexual que lhe pedisse ajuda médica para mudar de orientação sexual. Em síntese, dizia que era possível alterar, no sentido de curar, a orientação sexual de alguém.

No seguimento desta notícia, várias organizações solicitaram ao bastonário da Ordem dos Médicos que se pronunciasse sobre o assunto. O psiquiatra Daniel Sampaio, por sua vez, escreveu, uma semana mais tarde, uma crónica na revista Pública tecendo ferozes críticas às palavras de José Marques Teixeira e deu início a uma petição, exigindo também uma clarificação por parte da cúpula da Ordem e do Colégio da Especialidade de Psiquiatria sobre o que fora noticiado.

Uns dias mais tarde, a 14 de Maio, o bastonário respondeu por escrito às organizações dizendo, entre outras coisas, que a orientação sexual não é uma doença (1). A seguir, o bastonário defende a liberdade de qualquer pessoa para aceitar ou negar a sua orientação sexual e procurar o auxílio de um médico quando a sua sexualidade lhe causar sofrimento. O médico deveria, então, ajudá-lo a definir a orientação que pretende. Luís Nunes remata dizendo que a alteração da orientação sexual de um doente não constitui uma violação ética. Esqueceu-se foi de discorrer sobre o facto de ser possível fazê-lo.

A mim o assunto parece-me tão simples quanto isto: sequer equacionar que se possa reverter, tratar, curar (ou qualquer outra expressão com significado semelhante) a orientação sexual homossexual implica pressupor que se trata de uma doença. Aliás, considerar a elaboração de um plano terapêutico e de um acompanhamento médico com o único propósito de modificar a orientação sexual de alguém, como fez o bastonário, é tratar essa característica como se fosse uma patologia. Todavia, já há muito se concluiu que não é doença, não é patologia, logo, não é curável nem passível de nenhuma intervenção como aquela que é subentendida das palavras do bastonário e do presidente do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos, cuja posição não pode senão causar a maior das estupefacções.

Já a ignorância, essa, é susceptível de tratamento. Dizem que com umas leituras e com um bocadinho de decência intelectual a coisa vai. É só mesmo uma questão de querer.

Marta Botelho

(1) «A APA (American Psychiatric Association) retirou a homossexualidade do seu «Manual de Diagnóstico e Estatística de Distúrbios Mentais» (DSM) em 1973, depois de rever estudos e provas que revelavam que a homossexualidade não se enquadra nos critérios utilizados na categorização de doenças mentais. Psicólogos e sexólogos chegaram à conclusão de que a homossexualidade é uma variante sexual normal.» (v. SILVA, Rita – «O que é a homossexualidade», in Homofobia: Causas e Consequências. Versão electrónica em http://homofobia.com.sapo.pt).

[Sugestão: ler ao som de «Fuck You», de Lily Allen, do álbum «It's not me, it's you» (2009).]


[Também publicado em PnetCrónicas.]

© Marta Madalena Botelho

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» O âmbito do direito de autor e os direitos conexos incidem a sua protecção sobre duas realidades: a tutela das obras e o reconhecimento dos respectivos direitos aos seus autores.
» O direito de autor protege as criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, por qualquer modo exteriorizadas.
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