Rufino Gomes exerce sua profissão atualmente no Cine Humberto Mauro, no Palácio das Artes — Foto: MARIELA GUIMARAES/O TEMPO
Publicado em 28 de junho de 2014 | 03h00 - Atualizado em 28 de junho de 2014 | 03h01
Amor dos tempos do quadro a quadro
Rufino Gomes, 66, fala de sua paixão pela profissão de projecionista de cinema, atividade que iniciou em 1966
Por Natália Oliveira
Na salinha escura de projeção, ele ajeita os óculos, franze a testa e vai puxando lá do fundo da memória as lembranças do que vivenciou enquanto projecionista nos cinemas de Belo Horizonte. Como em um roteiro sem linearidade, o projecionista Rufino Gomes, 66, vai juntando as lembranças, quadro a quadro, e como em um filme, vai relatando as histórias com orgulho e alegria.
Tudo começou em 1959, quando ele, aos 11 anos, saiu de Lisboa, em Portugal, e veio de navio para o Brasil acompanhando a família. Durante a viagem, não foi a vista do mar ou do pôr do sol, o que mais lhe chamou a atenção, mas a exibição do filme “Marcelino, Pão e Vinho”, uma coprodução Espanha/Itália, de 1955, dirigida por Ladislao Vajda.
Naquele momento, ele encantou-se pelo cinema e, quando pisou em terras brasileiras, seus primeiros brinquedos foram projetores de papelão que ele mesmo fazia, e fingia exibir filmes.
“Nas salas de cinema, em vez de olhar para frente eu olhava para trás”, brincou. Era por trás da salinha de projeção que estava o sonho dele de manobrar as máquinas das cabines de exibição. Na adolescência, aos 17 anos, ele pediu a um amigo pipoqueiro que trabalhava em frente ao Cine Padre Eustáquio, que lhe apresentasse ao projecionista do cinema. O pipoqueiro então tratou de contar para o profissional sobre a paixão do jovem pelas máquinas.
Foi um ano aprendendo com o projecionista e tendo como pagamento somente a realização do sonho. “Eu não podia nem sair da cabine, porque alguns filmes eram para maiores de 18 anos, então eu não podia nem estar lá. Naquele tempo de censura tudo era muito rígido”, conta.
Foi em 1966 que ele começou a trabalhar efetivamente como projecionista no Cine Padre Eustáquio. O pequeno cinema de rua levava o mesmo nome do bairro, onde havia outros três, o Cine Progresso, o Cine Asteca e o Cine São Carlos. Naqueles tempos, Belo Horizonte era recheada de salas de exibição. Eram nelas que os jovens se encontravam para se divertir e para as paqueras.
Do alto. Na cabine escura, com o barulho das máquinas e os corredores apertados, o projecionista observava lá de cima toda essa movimentação: os casais apaixonados, o moço do serviço volante que vendia balas, pipocas e bombons, em meio às poltronas da sala, e o lanterninha que volta e meia levava um atrasado até uma poltrona livre, já que não haviam as luzinhas no chão das salas.
“Eu tenho saudades daqueles tempos. Naquela época, eu era superfeliz e via tudo colorido. Aliás, nós vemos as coisas de acordo com aquilo que estamos sentindo”, sorri. O brilho nos olhos quando fala sobre cinema, deixa claro o amor de quem dedicou a maior parte da sua vida a ele.
Seja nos cinemas de rua ou nas salas de exibição dos shoppings, Rufino sempre cuidou para que nada saísse do roteiro, mas, claro, que um dia saiu. Ele exibia um filme quando se distraiu, e a película se partiu e começou a cair pelo chão. “Eu fiquei desesperado, peguei umas fitas e comecei a colar o filme de novo, antes que atrapalhasse a exibição, já que as cenas que caíram iriam passar em breve. Eu suei a camisa, mas dei conta de colar tudo de novo”. Atualmente, já com os cabelos brancos, ele ri do acontecido, mas não esconde o sufoco que passou naquele dia.
Hoje, seu Rufino, como é conhecido no Cine Humberto Mauro, no Palácio das Artes, onde trabalha desde 2008, é uma lenda viva da história do cinema na capital. Das películas e até o que tem de mais moderno nas exibições dos filmes, ele consegue falar com propriedade.
Recentemente o Humberto Mauro ganhou um projetor digital, onde são exibidos os filmes em DVD, e ele teve que aprender sobre a nova tecnologia. Lá ainda funcionam duas máquinas que rodam película. “A película nunca vai morrer, o pessoal fala que vai acabar, mas não vai. O cinema tem que evoluir como todas as outras coisas. É por isso que ele passa para o digital. A película é muito cara, mas não importa o meio, o importante é que o cinema sempre exista para deixar as pessoas felizes e que sempre exista um amor por ele”, conclui.
A paixão pelo cinema que levou Rufino às projeções também foi um caminho para que ele arrumasse namoradas e amores. “Eu adorava sair da sala e saber que tinha a minha namorada me esperando lá fora”, contou.
Mas aquela que iria se tornar sua mulher, ele conheceu no trabalho. Todos os dias enquanto exibia os filmes no Cine Art Palácio, sala de cinema de rua que ficava na Curitiba, no centro da cidade, uma jovem que trabalhava na lanchonete levava comida para o projecionista. Aos poucos, o que era uma relação formal foi evoluindo e, nas palavras dele, foi ela quem se apaixonou primeiro. “Eu não estava tão interessado, no começo nem olhava para ela, mas a paixão foi surgindo e crescendo. Ai nós começamos a viver um amor que nos rendeu três filhos”, revela.
O amor dele pelo cinema também extrapola as cabines. Rufino coleciona máquinas de projeção e filmes em película, o que acaba fazendo da sua casa uma extensão de uma sala de exibição. “Eu coloco alguns filmes mais curtos e desenhos. A criançada adora. O cinema é vivo e chama muito a atenção deles. O tempo todo eles têm curiosidade de conhecer como são as máquinas. Eu faço a alegria deles, mas para mim isso tudo também é muito gratificante”, orgulha-se. Depois de tanto tempo na área, ele pegou gosto por um estilo de filme. “Eu gosto daqueles que nos façam pensar. É para isso que o cinema existe, para nos provocar sentimentos”, conclui.
Texto e imagem reproduzidos do site: otempo com br