Imagem postada pelo blog Máquina de Cinema, com o fim de ilustrar o presente artigo.
Foto reproduzida do Google.
Publicado originalmente no site do Estadão, em 05 de agosto de 2007.
O cinema na alma.
Por 25 anos, ele desfilou Bergman, Antonioni, Buñuel, Godard
na tela...
Laura Greenhalgh - O Estado de S.Paulo.
Coincidência não é ficção. Mesmo quando beira o improvável,
como a perda de dois dos maiores diretores de cinema no século 20 na última
segunda-feira, um na Suécia, outro na Itália. Pois Ingmar Bergman e
Michelangelo Antonioni morreram assim, como que fazendo uma molecagem com a
platéia, precedida de um pacto com Deus. Encerraram a fatura de suas vidas com
horas de intervalo entre um último suspiro e outro. Tanto dia para morrer e
eles se foram no mesmo comboio. Gran finale.
Mais previsíveis são as coincidências que aproximam a vida
do Nelson da história do Alfredo, personagem central de Cinema Paradiso. Tanto
que um programa de TV, anos atrás, fez uma entrevista apressada com o Nelson,
sapecou a trilha do Ennio Morricone ao fundo e cravou: ele é o Alfredo
brasileiro. Ora, ora. Não que o Nelson evite ser comparado com o personagem
interpretado por Phillipe Noiret, no filme de Tornatore. É que o Nelson, com
esse jeito interiorano de ser, falante e encabulado ao mesmo tempo, entende um
bocado de cinema. Mais que o adorável Alfredo. Saca umas coisas incríveis, pede
licença para declarar "Eu amo a sétima arte" e, com propriedade,
comenta a comparação que fizeram pra cima dele: "Pode até ser
interessante, mas corre o risco de ficar piegas."
Então, combinemos. O Nelson não é o Alfredo. Mas nós, ou
seja, toda uma geração de freqüentadores e curtidores de cinema, viramos
"Totó" nas mãos do Nelson. Acabamos por nos assemelhar ao garotinho
que projetava olhares de emoção e descoberta na tela, enquanto, da cabine,
Alfredo projetava fitas com beijos censurados. Porque Nelson Soares de
Carvalho, 65 anos, o senhor da foto ao lado, não só nos revelou Bergman e Antonioni,
mas também Fellini, Kurosawa, Malle, Buñuel, Godard, Gavras, Pasolini, Resnais,
Wertmüller, Truffaut, Monicelli, entre tantos grandes diretores. Durante quase
três décadas, ele foi o projecionista do Cine Bijou, ainda hoje o mais lembrado
cinema de arte de São Paulo. "Antigamente, falava-se ?operador de cabine?.
Depois é que inventaram o termo ?projecionista?, mais chique. A própria
expressão ?cinema de arte? veio mais tarde. Primeiro dizíamos ?cinema classe
A?".
De 1971 a 1996, Nelson "morou" na cabine do
cineminha da Praça Roosevelt, no centro da cidade. Por ele circularam artistas
e intelectuais de São Paulo, universitários ávidos por derrubar a ditadura, uma
diversificada fauna urbana, hippies, desocupados, padres, senhoras bem
vestidas, meninas de colégio, olheiros da repressão (vai ver até que algum era
cinéfilo), fora os famosos moradores das redondezas. Quem, por exemplo? Até o
vendedor de frutas do pedaço, ainda hoje com banquinha na ativa, é capaz de
lembrar: Marília Gabriela, Ignacio de Loyla Brandão, Jardel Filho, Jacinto
Figueira Jr., o Homem do Sapato Branco, a cantora Leni Everson...moradores da
praça, sim senhor. Jô Soares, além de devorador das massas do Gigetto, também
circulava no pedaço e não raro acomodava o corpanzil bem abastecido nas
poltroninhas vermelhas do Bijou. Idem para a atriz Dina Sfat, ok, sem
corpanzil, mas com uma beleza que faz o Nelson suspirar ainda hoje: "Vinha
sempre aqui. Às vezes com o marido, Paulo José. Adoravam cinema."
A praça era lugar de bacanas e descolados na passagem para
os anos 70 e o cinema vivia em boa companhia. Quase na esquina com a Consolação
ficava o restaurante Baiúca, com móveis pé-de-palito, bar elegante e um piano
teclado por Moacyr Peixoto, em torno do qual cantaram moçoilas como Claudette
Soares e Ellis Regina - que tal? Ainda na praça, o cabeleireiro da moda
(Jacques Janine) e uma doceira parisiense no estilo (a Vendôme). Pois no
quartier, informa-se a quem não tem idade para saber, ficava o Bijou, inaugurado
em 1962 por Harry Wilhoit, um ex-funcionário da Universal, supostamente
francês, que um belo dia sumiu da praça e do Brasil.
VULCÕES DE EMOÇÃO
No final dos anos 60, Wilhoit vendeu o Bijou para Francisco
Coelho, dono de cinemas no Brás e na Penha, e voltou para a Europa. Conta-se
que nos primórdios, Wilhoit e a mulher, Teresa, comandavam pessoalmente a
salinha de 137 lugares. Ela vendia o bilhete, ele o recolhia à entrada. Desde
sempre o Bijou fez a opção pela qualidade. São Paulo tinha cinemas palacianos,
como o Marabá, o Marrocos, o Olido, com platéias imensas, lustres, espelhos,
escadarias, exibindo a produção de Hollywood para as massas. Já o Bijou, metido
a besta, ficava com os planos heterodoxos de Resnais, os vulcões emocionais de
Bergman, os silêncios de Antonioni, a visceralidade de Kurosawa.
Corta! Melhor interromper a história neste ponto, sem
engatar nos 25 anos em que o Nelson ficou na cabine do Bijou, zelando pela
projeção de filmes que fizeram cabeças e mudaram vidas. Porque a história de
amor desse homem com o cinema, sem concessão à pieguice, começou lá trás, na
cidade de Jales, interior de São Paulo. Flash back: o casal era pobre e tinha
dez filhos. Destes, três morreram. Mariinha se foi aos 3 anos, dizem que ficou
doente porque brincou com um gato. Eliseuzinho morreria mais tarde, como o pai,
de enfarte do miocárdio. Celso, radialista, intelectual da família, admirado
por todos, morreu dormindo, como Bergman. Nessa prole, Nelson é o filho que aos
11 anos foi buscar trabalho para ajudar a mãe. "Eu carregava tabuleta para
anunciar o que estava em cartaz nos cinemas de Jales, até que um dia me jogaram
na cabine. Aprendi na marra e fazia serviços gerais: varria o cinema, trocava
lâmpadas, buscava os filmes na estação...". Jales deveria ser um barato: o
gerente do primeiro cinema da cidade, o Santa Helena, era um certo Aguinaldo
que, na Semana Santa, acelerava o projetor a manivela para fazer mais sessões
do filme A Paixão de Cristo, melhorando a arrecadação. Digamos que inaugurou o
Cristo chapliniano, apressadinho, sob vaias da platéia. "Ô Aguinaldo, pára
de correr. Pára, homem! Uuuuu!!!". Ovídio, operador do cinema concorrente,
foi o primeiro chefe do Nelson. Pôs o garoto diante de dois projetores 16 mm,
deu instruções e passou a deixá-lo sozinho na cabine. Ovídio descia para
prosear e lá ficava o Nelson, entregue a filmes como Imitação da Vida, uma
espécie de desfibrilador de emoções.
É curioso: Nelson lembra muito bem do primeiro filme que
projetou na vida, em 1953, mas não lembra da última sessão de cinema que
comandou no Bijou. O primeiro filme chamava-se O Filho do Sol, rodado na
Califórnia, cenário deslumbrante para o caso de amor da filha de um general com
um índio chamado Olho D?Água - o general tinha lá suas razões, o mocinho era um
canastrão, tremendo mala-sem-alça de cocar. "A fita tinha Jon Hall como
protagonista", cita Nelson, tentando azeitar a pronúncia. "Falar
idiomas eu não falo. Mas entendo francês, inglês, italiano, espanhol. Minha
cabeça ficou assim, um montão de sonoridades". Não prosseguiu nos estudos.
Parou na primeira série do ginásio, veio para São Paulo com a família em busca
de vida melhor e acabou se enfurnando em outras cabines. "Não estudei
porque não tive tempo. Minha literatura é o cinema."
Depois de perambular na Capital atrás de trabalho, deram-lhe
um bico no restaurante O Laçador, no Brás, mas logo calhou de ser chamado para
teste nos cinemas da empresa Serrador. Tinha de colocar os rolos na máquina,
ter noção de enquadramento, sincronismo, controle de imagem e som, um troço
complicadíssimo porque a qualidade da projeção dependia de acertos manuais. E
ainda precisava controlar um tal carvão, que não podia gastar, nem queimar, nem
nada. Nelson não tremeu na base. Nunca. Assim como Humphrey Bogart se deu bem no
set, Nelson se deu bem na cabine. "Jamais cochilei em projeção. Fui
pegando tanta prática que, independentemente dos projetores que me dessem,
punha a fita no lugar certo só guiado pelas engrenagens, não precisava ficar
olhando o quadro, checando numerinhos, nada. Fazia passagem de uma máquina pra
outra no pé."
O primeiro emprego em São Paulo foi no Cine Paulista, da Rua
Augusta, nos anos 60. Lá, fizeram-lhe uma maldade. Operadores veteranos
largavam tudo nas costas do novato. Daí o Nelson começou a caprichar na cabine.
Limpou as lentes. Passou Kaol nas peças. Poliu espelhos refletores. Resultado:
a projeção ficou uma beleza, o público comentava, o dono da sala passou a
elogiar o novo funcionário. Pois os operadores, enciumados, resolveram sacanear
o colega deixando queimar os carvões de propósito. Apagão na tela. "Fui
demitido, mas perdoei o pessoal", diz o Nelson, que tem uma ligação com o
espiritismo.
DANÇANDO NA CABINE
Novo teste, contrato prometido nos Cines Can-Can e Moulin
Rouge, mas eis que o chamaram para substituir Fausto, operador do Bijou, que
saía em férias. E foi assim que, em 1971, Nelson entraria na cabine que mais
amou na vida, amor de 25 anos de convívio e uma saudade perene. "Não me
casei. Os amigos falam ?Nelson, você precisa de uma mulher?, mas fui me
acostumando à solteirice e me doei para o cinema. No tempo do Bijou, se tive
dois Natais foi muito. Eram cinco sessões diárias, a primeira às 14 horas, a
última à meia-noite. Dizem que operador é o peão do cinema, mas prefiro pensar
que é o artista escondido."
Francisco, o segundo dono do Bijou, manteve a programação
"classe A" numa época fecunda do cinema estrangeiro, particularmente
do europeu. Pode-se dizer que o cineminha da Roosevelt deu mais espaço para as
produções de fora do que para a nacional, no tempo em que pontificavam por aqui
nomes como Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Cacá Diegues, Arnaldo Jabor
- "e Nelson Pereira dos Santos, como ele é bom", agrega o xará,
seguro de suas predileções. Mais tarde, Francisco resolveu fazer uma segunda
salinha ao lado, com 116 lugares, que chamou de Bijou-Sérgio Cardoso. Levou
para a cabine a "philipinha", versão menor da "philipona".
Quer dizer, Nelson passou a comandar dois projetores Phillips, um em cada cinema,
num corre-corre danado. Quando ficava sem ajudante, pedia ao Dimas, porteiro do
Bijou, para controlar o carvão numa sala, enquanto corria para a outra, dando
início à projeção. Ficava de lá para cá, mas não tirava o olho das telas. Nem
desgrudava da história. Em Amarcord, clássico de Fellini, permitia-se dançar na
cabine ao som da trilha insuperável de Nino Rota. "Pensavam que eu era
louco ou bichona", diverte-se. Lembra de minúcias de O Ovo da Serpente,
filme que flagra, numa Berlim arrasada pela 1ª Guerra, a gênese do nazismo:
"Há uma cena... o sujeito leva o charuto à boca calmamente, solta a
baforada e dá uma risadinha. Aí tem Bergman!" As reminiscências brotam.
"E aquela cena do sujeito na bicicleta, no Lacombe Lucien, do Louis Malle?
" Ou então: "Sabe o que é filmar uma árvore, o vento batendo nela e
fazer com que entendam que você está tratando da memória? É o Bergman em
Morangos Silvestres."
Era um filmaço atrás do outro, público não faltava -
formavam-se filas na rua, gente esperando pela próxima sessão - e os censores
da ditadura poucas vezes criaram caso, apesar de a programação do Bijou
turbinar o espírito de contestação da rapaziada. Os arapongas chiaram mesmo foi
para dar alvará ao filme Mimi, o Metalúrgico, de Lina Wertmüller. Esse negócio
de metalúrgico, greve, protesto ainda iria render no Brasil.
Trancado numa cabine e sem tempo para viver outra coisa,
Nelson procurou a bebida. Foi fundo. "Cheguei a ser internado para me
desintoxicar", confessa. Pois foi a possibilidade de perder o Bijou que o
salvou do alcoolismo. Uma noite, na solidão da cabine, conseguiu dizer ao maço
de Arizona que levava no bolso da camisa: "Não vou mais te fumar."
Parou com tudo. Mas o centro da cidade, não. Continuou a se degradar. Grandes
cinemas cederam aos filmes pornôs, outros fecharam portas ou viraram igrejas
evangélicas. O restaurante, a doceira e o cabeleireiro se foram. Universitários
da USP ganharam o câmpus distante. Gente fina mudou de itinerário, moradores de
rua chegaram nos becos, o público sumiu. Salas de exibição nasciam nos
shoppings e as casas ganhavam videocassetes, DVDs. Ah, a geração downloading
não vai entender jamais como era bom se abrigar no Bijou, em plena tarde, e
sair de lá outra pessoa.
Os anos 90 foram duros pro Nelson. Ele não aprovou quando o
cinema teve que dividir as salas com grupos de teatro que passariam a arrendar
o espaço, lá permanecendo. "Cheguei a fazer projeção para cinco pessoas,
uma tristeza... Seu Francisco me dizia ?Nelson, desiste, não tem mais aqueles
filmes, os tempos são outros?. Duvidei. Se o cinema do shopping era bonito, a
gente tinha que melhorar o Bijou. Aposto que o público voltaria!"
Última tomada! Hoje Nelson é um sem-cinema. Desempregado,
dribla problemas de saúde decorrentes dos anos de cabine. Incomoda-o a maldita
hérnia.Tenta viver com R$ 700 por mês, morando num fundo de casa do ex-patrão.
Luxo, só um: economizou até comprar um aparelho de DVD e iniciar sua coleção de
fitas. Tem 142. Vive para rever. A médica do INSS disse-lhe outro dia:
"Seu Nelson, o senhor não tem nada." Ao que ele respondeu:
"Aparentemente.".
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