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28/09/2011

Jazzseen comemora os vinte anos da morte de Miles Davis



A ABOBORIZAÇÃO DE MILES DAVIS



ATO I

Pra Fernando Achiamé, porque sim.


— Ontem à noite eu telefonei pra Garibaldi, — diz Fernando Achiamé.
É terça-feira, e o Clube das Terças-Feiras está reunido no Centro da Praia, numa das mesas da praça do Canto. Reunido mas nem tanto, porque não em seu todo, nem em sua maioria, nem tampouco em sua metade: pois estamos três, só três, sentados a uma mesa do canto da praça do Canto, dois de nós, só dois, bebendo refrigerante em copos de plástico, e João Luiz Mazzi, só ele, seco e abstêmio como é do seu feitio.
— Garibaldi estava ouvindo jazz, é claro, — diz Fernando.
Aí, já nos primeiros minutos da crônica, lá vem vindo uma moça, e o narrador vê que essa moça que lá vem vindo tem quatro flores bordadas na calça jeans, duas na coxa direita, duas na esquerda. E lá vem vindo a moça com a calça florida: vindo e chegando perto cada vez mais dos olhos míopes do narrador: que aí percebe que não são flores que ela traz bordadas na calça jeans: são quatro buracos abertos em pleno tecido, mastigados de fiapos de linha, pondo à mostra nesgas da pele das coxas. Bom: no fim tudo são flores: flores de pele, flores douradas de pele, com um cheiro bom pra inalar com os olhos: isso se você é sócio do Clube das Terças em pleno exercício da função de personagem de uma crônica chauvinista como esta.
— Ouvindo sabem quem? — diz Fernando.
— Pelo tom da pergunta, já sei que não era Art Pepper, — diz João Luiz. Que está vestindo uma camisa do programa O Som do Jazz, com a efígie de um giga-saxofone impressa nela.
A moça de jeans dobra a esquina de uma loja e lá vai indo, sem pressa alguma, consumindo com os olhos as mercadorias que vegetam nas vitrines. O mês é janeiro, mas a moça tem jeito mais de Márcia que de Januária; e se é gostosa assim em janeiro, imagine quanto mais em março.
— E não era mesmo, — diz Fernando. — Era sabem quem? Miles Davis.
Dito isso, Fernando saboreia um gole de seu refrigerante.
— Não acredito, — diz o narrador. — Garibaldi não vai com os cornos de Miles Davis.
— Pois era Miles Davis, — sustenta Fernando. — E se você não acredita, pode perguntar a Garibaldi, que olha ele vindo bem ali.
O narrador não precisa ter olhos de lince pra identificar, mesmo ao longe, a figura singular de José Garibaldi Magalhães; posto em movimento sobre suas longas pernas de Dexter Gordon, lá vem ele rumo à praça, trazendo uma mão no bolso, outra fora, e uma pasta amarela na mão de fora. Lá vem ele e, no que vem, mete um olho na bunda de Márcia, a moça de jeans, agora parada diante da vitrine de uma loja de lingerie, absorta na leitura de alguns parágrafos de calcinhas e sutiãs. Dá pra ver que Garibaldi gostou do que viu: só pelo jeito do beiço, que engrola ¾ de sorriso, dá pra ver que gostou do que viu — e olha que nem chegou a ver flores de pele d’ouro em campo azul de calça jeans de moça. Nem por isso, tampouco, se chega à moça pra dar-lhe uma cantada ou pra pedi-la em casamento. Também, são múltiplos os apelos em seu caminho: já avistou, lá da gávea do olhar, os três companheiros do Clube das Terças, sentados, nós três, a uma mesa cá adiante. Três companheiros x dois ouvidos cada um = seis ouvidos no total. Em largas passadas num instante Garibaldi está no meio de nós; aí saca do bolso a mão direita como uma garrucha e nos aperta as mãos.
— Chegou bem na hora, Garibaldi, — diz o narrador, — porque tem nego te caluniando feio por aqui.
Garibaldi senta na berlinda e cruza as longas pernas. Está calmo e destemido, e:
— É mesmo? Estão dizendo por acaso que eu sou veado?
— Pior, — diz o narrador. — Estão dizendo que você anda ouvindo Miles Davis.
Garibaldi abre sobre nós um longo bocejo de maraçapeba; depõe sobre a mesa a pasta amarela, aliás bojuda de tanto sei lá o que que tem dentro dela; e depois:
— Mas é a pura verdade. E que que tem? Miles Davis era um músico de jazz como outro qualquer, até trair a causa e defectar pro inimigo.
— Um músico como outro qualquer! — exclama o narrador. — Ah se Rogério Coimbra estivesse aqui pra ouvir isso!
— E quais os cds de Miles Davis você tem, — isto Fernando, — além, é claro, daquele que você me emprestou, Porgy and Bess, que eu achei uma boa merda?
— Sabe que você me deixou muito feliz, — diz Garibaldi, — achando esse disco uma boa merda? Pois eu também acho. E só não me desfaço dele por motivos didáticos, porque esse disco é a prova cabal de que não se deve confiar em tudo que os críticos e Rogério Coimbra dizem sobre Miles Davis.
— Mas que outros cds de Miles Davis você tem? — insiste Fernando.
— Não são muitos, — informa Garibaldi, e põe-se a nomeá-los com a ajuda de alguns dedos: — Birth of the Cool, de 1949-50, que dizem que é dele; Collectors’ Items, com Charlie Parker tocando tenor, de 1953; Miles Davis at Carnegie Hall, de 1961, com a orquestra de Gil Evans; e Someday My Prince Will Come, também de 1961, que eu acho que é o canto de cisne de Miles Davis. Depois disso ele não fez mais nada que meus ouvidos puristas possam digerir.
Someday My Prince Will Come é o único disco de Miles Davis que eu tenho, — diz João Luiz.
— Eu tinha Musings of Miles, lembra, Lady Mazzi, — diz Garibaldi, — mas não tenho mais. Fiquei com esse cd mais de dez anos, e não devia ter ficado com ele nem dez minutos.
— Até que não é um disco tão ruim assim, — diz João Luiz. — É uma gravação feita com quarteto, que é uma formação pouco utilizada por trompetistas, se não me engano só duas vezes Miles Davis utilizou essa formação. E nesse disco você não ouve aqueles cacoetes musicais que ele adquiriu mais tarde. Aí ele não chega a exagerar na sonoridade cool, tanto que nem usa surdina. O ano de gravação é 1955, e 1954-55 foram os melhores anos da carreira de Miles Davis. Walkin’, de 1954, e Dig, de 1955, são discos que eu até seria capaz de comprar.
— Eu, por mim, — diz Garibaldi, — durante mais de dez anos me esforcei pra gostar desse cd, mas não houve jeito. Sempre achei a música ali sem graça, sem vida, sem cor, sem porra nenhuma. Aí vendi por dez patacas pra Paulinho Silva.
— E qual disco de Miles Davis você estava ouvindo ontem, Garibaldi? — diz o narrador.
— Um porrilhão, — diz Garibaldi.
— Um porrilhão? — diz o narrador. — Mas por que esse interesse repentino pela obra jazzística de Miles Davis, Garibaldi?
Garibaldi dá uma olhada de esguelha nas unhas da mão esquerda pra então:
— Camaradas, estou embarcando na canoa acadêmica. Estou tentando escrever um ensaio pra explicar, de forma lógica e científica, o sucesso assombroso de Miles Davis, e digo assombroso porque vai além, muito além, da taprobana dos méritos dele.
— Que sucesso assombroso de Miles Davis? — rebate o narrador. — Veja uma mesa como esta, com quatro amantes do jazz sentados em volta, e nenhum dos quatro dá muito valor à música de Miles Davis. Cem por cento de rejeição ou, pelo menos, de indiferença. Como é que você vem falar de sucesso de Miles Davis?
— Meu amigo, — diz Garibaldi, — não me venha com sofismas estatísticos. Você sabe muito bem que Miles Davis é o músico mais famoso do jazz, a ponto de se ter tornado um emblema do próprio jazz. Estou elaborando uma teoria pra ver se consigo explicar por a + b como foi possível acontecer tal coisa. Porque ele não tem, na minha humilde opinião, categoria pra isso.
— Ah, é, Garibaldi? — diz Fernando, com sua veia de historiador pulsando de curiosa. — E o que é que você pode adiantar pra nós dessa teoria?
Garibaldi hesita um segundo, dois, três. Depois decide e, decidido:
— A apresentação do problema eu já escrevi, e por mero acaso está até aqui comigo. Querem que eu leia pra vocês?
— Lê, Garibaldi, — diz Fernando, acomodando-se melhor no regaço da cadeira pra melhor escutar o sábio de galocha.
Garibaldi abre a pasta amarela, retira de seu bojo duas folhas de papel, passa um olho crítico no que tem ali, reavaliando o seu próprio trabalho, aprova-o com um aceno de cabeça e um trejeito de lábio — leitor já viu todo esse teatro antes em algum capítulo anterior — e, abrindo aspas:
— “A aboborização de Miles Davis, por José Garibaldi Magalhães”.
— Já gostei do título, Garibaldi, — diz Fernando. — Tem alguma coisa a ver com Cinderela?
— Claro que não, Lady Achiamé, — diz Garibaldi, à beira de ofendido. — Tem a ver com os imperadores romanos, que eram incluídos entre os deuses quando morriam. Só que, quando o imperador Cláudio morreu, o filósofo Sêneca escreveu uma paródia de apologia que intitulou Apocolocintose, que em grego quer dizer aboborização. É isso que eu quero fazer com Miles Davis, desmistificar o bruto, desendeusá-lo, trazê-lo de volta ao seu tamanho natural como figura do segundo escalão do jazz, que pra mim ele não passa é disso. Pra mim, ele está abaixo de Louis Armstrong, de Duke Ellington, de Coleman Hawkins, de Lester Young, de Charlie Parker, de Dizzy Gillespie, de Thelonious Monk, de Charlie Mingus. Esses são os gigantes: os inventores, os fundadores, os criadores, os inovadores em sentido amplo. Miles Davis está no mesmo nível de Count Basie, de Lennie Tristano, de Dave Brubeck, de Gerry Mulligan, de John Coltrane e de Ornette Coleman. Está entre os que também contribuíram, mas em escala menor, pra evolução do jazz, ou até pra contravolução do jazz, no caso de alguns deles.
— Peraí, Garibaldi! — intervém João Luiz. — Dizer que Miles Davis era um músico do mesmo quilate de Count Basie, Lennie Tristano, Dave Brubeck e Gerry Mulligan deve ser gozação de sua parte. Pra mim Miles Davis estava, no mínimo, um nível abaixo desses aí e de outros tantos.
Surpreendemo-nos surpresos diante de um João Luiz mais realista que o rei. Antes que se possa dizer qualquer coisa, porém, chega à margem da mesa uma das moças que trabalham na Work Chop, a lanchonete de Alcides Vieira:
— Vão querer mais alguma coisa, meninos?
— Tem suco gástrico nessa lanchonete de vocês? — pergunta Garibaldi.
— Tem não, amor, — diz a moça. — Só de laranja.
— Suco de caixa d’água eu não quero, — diz Garibaldi, referindo-se ao suco de laranja pré-fabricado que algumas lanchonetes, entre elas a de Alcides, mantêm em custódia num recipiente de plástico, em estado de permanente convulsão. — Eu gosto do meu suco feito na hora. Então me traz um chocolate quente com um pão de queijo.
Lá se vai a moça com seu boné vermelho na cabeça. De volta à pauta, Garibaldi:
— Meu ensaio tem uma epígrafe, porque está na moda ensaio acadêmico com epígrafe. Vou ler a epígrafe: “Miles Davis tem várias maneiras de tocar: uma é lenta, mortiça, amordaçada; outra é lépida, acre, esganiçada; e outra é maviosa e teatral; e eu não gosto de nenhuma delas.” Isso foi escrito nos anos 60 por Philip Larkin, um poeta e crítico inglês. E se esse cara foi tão bom poeta como foi crítico, quero ler a poesia completa dele.
— Poeta e crítico? — diz o narrador. — Igual a você, Garibaldi.
— Pobre de mim, não sou nem uma coisa nem outra, — diz ele, ainda por cima sincero; aí, reabrindo aspas: — “Recentemente um amante de jazz da cidade de Vitória foi apresentado a um professor norte-americano chamado Spears. Sempre que é apresentado a um norte-americano, seja professor ou seja o quê, nunca deixa de mencionar sua paixão pelo jazz, na esperança de achar um interlocutor com quem trocar idéias sobre o assunto. Foi o que fez ao ser apresentado a esse professor norte-americano chamado Spears. Também gosto muito de jazz, disse o professor. Gosto muito de Miles Davis.’’
— Aposto que esse amante de jazz é você, Garibaldi, — diz Fernando.
— Acertou, mas temos que ser impessoais num ensaio acadêmico, — diz Garibaldi. E: — “Donde se conclui que Miles Davis tornou-se a referência oficial e imediata do senso comum em matéria de jazz. É do nome dele, e não dos de Louis Armstrong, Coleman Hawkins, Duke Ellington, ou Charlie Parker, que as pessoas se lembram quando ouvem a palavra jazz.”
Garibaldi pára de ler, olha pra nós e concorda consigo mesmo:
— É verdade. Igual ao cão de Pavlov, assim que as pessoas ouvem tocar a campainha da palavra jazz, imediatamente babam na gola o nome de Miles Davis. O que é irônico, porque, de todos os músicos que eu citei ali em cima, Miles Davis é o único que renegou o jazz, que deu as costas ao jazz e foi tocar em outra freguesia.
Depois retorna ao ensaio e:
— “Miles Davis é atualmente, e o será talvez por muito tempo ainda, o soberano do jazz. Os próprios críticos, em sua maioria, adotam uma postura toda reverente quando se referem a ele. O inglês John Fordham, por exemplo, autor de um livro intitulado Jazz que tem prefácio de Sonny Rollins (Dorling Kindersley, Londres, 1993), chega a empregar uma generalização do tipo nenhum jamais, inaceitável no idioma crítico: ‘Nenhum músico de jazz jamais tocou um instrumento tão próximo de nossas mais íntimas e indefiníveis emoções como Miles Davis’. Já o brasileiro Sérgio Karam, em seu Guia do jazz (L&PM, São Paulo, 1993), fecha o registro sobre Miles Davis num arroubo de tietagem: ‘A importância de Miles para o jazz e para a música contemporânea, de um modo geral, é indiscutível. O som único de seu trompete seduziu o mundo. Miles foi um ídolo, um revolucionário, um rei. Está além de qualquer crítica e só nos resta ouvir seus discos.’ Ora, nenhum artista está ‘além de qualquer crítica,’ nem nenhum crítico pode conferir a um artista, por maior que seja, uma, por assim dizer, imunidade artística. Isso seria, aliás, a extinção da própria crítica.”
— Concordo, — diz o narrador. — Isso cheira tão mal como a imunidade parlamentar.
— “O jazz já teve alguns reis em sua história,” — prossegue Garibaldi. — “Na década ruginte dos anos 20, Paul Whiteman foi cognominado rei do jazz devido ao sucesso estrondoso da sua orquestra, que nem era rigorosamente uma orquestra de jazz. Benny Goodman se satisfez com o título de rei do swing, se bem que, nos anos 30, o título de rei do swing equivalia ao de rei do jazz. Para citar um terceiro exemplo, Jelly Roll Morton sempre reafirmou, com insistência folclórica, ter sido ele próprio o inventor do jazz no início do século XX. Com o andar da carruagem do tempo, no entanto, foi Louis Armstrong quem alcançou uma maior exposição junto ao público do planeta não só como jazzman, mas como personalidade, assumindo e mantendo a condição de símbolo, de ícone, do jazz. Isso não deixa de ser curioso, porque essa popularidade não veio tanto em função das legítimas contribuições de Armstrong na fase de afirmação do jazz, com os seus lendários Hot Five e Hot Seven — quando, segundo Benny Green, Armstrong fazia história toda vez que levava o seu cornet aos lábios —, mas das perambulações que fez pelo mundo afora interpretando ad nauseam canções rasteiras como ‘What a Wonderful World’, ‘C’est si bon’ e ‘Hello Dolly’. De qualquer forma, é ele o incontestável rei do jazz até sua morte em 1971; a partir daí, quem assume a coroa é Miles Davis. No entanto, quem foi Miles Davis? Tentemos uma síntese: como instrumentista, foi um trompetista que capitalizou suas limitações técnicas; como inovador, um músico que introduziu no jazz o estilo modal, que, como o nome indica, foi mais um modismo que um estilo; como revolucionário, um oportunista que, mais que nenhum outro, despiu o jazz de sua identidade, ao travesti-lo com a roupagem do rock. Apesar dessa trilogia de pesares, é ele quem vai se tornar o mais famoso músico de jazz do século. Como explicar um paradoxo desses?”
Garibaldi pára de ler e:
— Aí termina a apresentação do problema e começa outro tópico, que eu ainda não escrevi, que vou chamar de “Miles Davis e a finissecularidade: a edição de 31 de dezembro de 1999 da revista Time”.
— Que palavrão foi esse que você disse aí? — estranha João Luiz.
— Cara, — diz Garibaldi, — preciso lembrar que este é um trabalho acadêmico? Estou usando um jargão acadêmico. Finissecularidade é como as hostes acadêmicas se referem a toda conjuntura de fim de século.
— E o que tem nessa edição de Time, Garibaldi? — quer saber o narrador.
— Está aqui, — diz Garibaldi, extraindo de dentro da pasta amarela a edição de Time: na capa tem uma foto de Albert Einstein. — Esta edição fez uma retrospectiva do século XX e Einstein foi escolhido como a personalidade do século. Além disso, escolheram também os melhores isso e aquilo do século. Cada categoria traz o nome dos três primeiros colocados. É só examinar os nomes no pódio que dá pra ver que Time conseguiu, quase sempre, ser coerente na escolha do melhor fosse o que fosse, mas cagou feio na segunda e na terceira escolhas.
Garibaldi vai folheando a revista até que então:
— Olha só. Até que dá pra aceitar Cidadão Kane como melhor filme, mas um filmeco como Chinatown em terceiro lugar já fica meio difícil. Também dá pra aceitar Ulysses como melhor romance e até, com um pouco de boa vontade, Cem anos de solidão em segundo lugar, mas Lolita em terceiro? Em que que Lolita é mais substancial e mais significativo como interpretação literária do século XX do que, por exemplo, A montanha mágica? Direi mais: Lolita nem é, a meu ver, o melhor Nabokov do século; o melhor Nabokov do século é Fogo pálido.
Eis que vem chegando a outra moça que trabalha na Work Chop, trazendo numa bandeja, em passo de gueixa, chocolate quente e pão de queijo pra Garibaldi. Que mal lhe dá atenção, entregue à volúpia do seu próprio verbo. A moça põe a xícara com chocolate e o cesto com pão de queijo sobre a mesa à frente dele e se manda, em boa hora alheia a questões insignificantes como essa de melhor romance do século.
— Também o poema do século, — decreta Garibaldi, — foi bem escolhido, “The Waste Land”, de Eliot. Mas novamente as outras duas escolhas são decepcionantes: um de Yeats, outro de Robert Frost, poeta de estimação dos norte-americanos. Aliás, a mim os poetas de língua inglesa não me dizem porra nenhuma. Tirando Eliot e Robert Graves e mais uns dois ou três, como Enderby e John Francis Shade, acho todos eles uma boa merda. Não tem um só que valha um quinto do nosso Fernando Pessoa.
Aqui Garibaldi leva à testa uma das mãos, em sinal de desespero, e:
— E quando chega na música? Camaradas, quando chega na música a coisa vira um escândalo. Como melhor canção do século escolheram sabem o quê? “Strange Fruit”, de Billie Holiday. E olha só como justificaram a escolha: “Nesta canção triste e sombria sobre um linchamento no sul, a maior cantora de jazz da história chega a um acordo com a própria história.” Acho que nem Fernão Ferreiro, que não tem ouvido, concordaria com essa escolha. Uma canção tem de ter melodia, e melodia é o que “Strange Fruit” não tem. Não passa de um recitativo chato e chocho, tanto que não fez carreira instrumental entre os músicos de jazz. O que premiaram aí foi a letra da canção, foi o sentimento contra o racismo e a violência. Usaram um critério político pra contemplar uma peça musical. Se o caso era escolher uma canção anti-racista, pegaria melhor escolher “Fables of Faubus”, de Charles Mingus: é uma canção, porque tem até uns espasmos de letra, é um libelo contra o racismo, e é um artefato musical maravilhoso.
Garibaldi vira a página da revista e a revista tremula trêmula em sua mão:
— Agora chegamos ao melhor disco do século. O escolhido foi um disco de Bob Marley chamado Exodus, que não conheço nem estou a fim de conhecer. E os outros dois foram Are You Experienced?, de Jimi Hendrix, e Kind of Blue, de Miles Davis.
Os olhos de Garibaldi emitem chispas de ódio. Seus dentes rilham quando ele:
— Isso mesmo: Kind of Blue, de Miles Davis, um dos três melhores discos do século. E, como os outros dois discos escolhidos são de música pop, a conclusão é que, segundo o colégio eleitoral de Time, Kind of Blue é o melhor disco de jazz do século.
— Nunca ouvi, — diz Fernando, dentre nós o mais neófito de nós.
— Vai por mim: não perdeu nada, — diz Garibaldi, ainda entre os dentes.
— Ah, mas eu quero ouvir, — diz Fernando, — pra ter certeza que não perdi nada mesmo.
— Aposto que você também nunca ouviu esse disco, Garibaldi, — diz o narrador. — Você nem o citou entre os discos de Miles Davis que você tem.
— O lp que pertenceu a Rogério Coimbra está comigo, — diz ele. — Esse lp eu já ouvi, sim, e várias vezes, sempre tentando ouvir a luz que dizem que tem ali. Pois não tem jeito: toda vez que eu ouço eu acho a música opaca paca.
— Eu tenho uma coletânea chamada Jazz ‘Round Midnight, — diz João Luiz. — Lá tem “Freddy Freeloader”, uma das faixas de Kind of Blue. É o que me basta. Não vejo nada de mais nesse disco, pra mim é o tipo do disco que você dá três estrelas, três e meia no máximo.
— Pois é, — concorda Garibaldi. — Tem milhares de discos no jazz tão bons como esse, e outros tantos muito melhores.
— Não, alguma coisa de especial esse disco tem de ter, — diz Fernando.
— Um dos argumentos dos milesólatras, — diz Garibaldi, — pra considerar esse disco uma obra-prima é que é nele que se consubstancia o jazz modal.
— Já ouvi falar, — diz Fernando, — mas não sei o que é.
— Me deixa consultar minhas notas, — diz Garibaldi, — que eu já te explico.
Garibaldi abre mais uma vez a pasta amarela e, depois de revirar um punhado de papéis lá dentro, retira uma folha coberta de anotações e:
— A música européia da Idade Média e da Renascença se baseava em escalas chamadas modos: modo lídio, modo frígio, modo dórico, etc., no que tinha alguma afinidade com as músicas orientais. Só que veio Bach e deu início à grande expansão da música européia, que botou as músicas orientais no chinelo. Aí, como tudo que é velho fica novo de novo, no final do século XIX Debussy reincorporou as escalas modais na música erudita. No jazz modal o que se usa como base de improvisação são esses modos, deixando-se de lado aquilo que os músicos chamam de “changes”, ou seja, a seqüência de acordes do tema, as modulações harmônicas. Pessoal que defende o jazz modal alega que, abandonando os esquemas harmônicos restritivos do jazz convencional, os músicos passaram a ter maior flexibilidade pra improvisação. Mas no Grove Dictionary of Jazz, que Lady Gurgel me emprestou, eu li que o estilo modal atraiu muitos músicos porque é muito mais fácil improvisar nesse estilo do que com base em progressões de acordes. Pra fazer um solo no estilo modal você não precisa mais observar as constantes mudanças harmônicas do tema, você pode ficar batendo na tecla de um único modo durante quinhentos compassos que está tudo bem.
— Continuo sem saber o que é jazz modal, — diz Fernando.
— Só quem é músico sabe o que é, e olhe lá, — diz Garibaldi. — Outro dia eu li uma entrevista com Dizzy Gillespie numa das minhas velhas edições da Down Beat. Lá pelas tantas o que é que veio à baila? Miles Davis e o jazz modal. Aí Gillespie contou que de vez em quando calhava dos dois estarem tocando um perto do outro, de forma que um sempre acabava ouvindo o outro tocar. E contou que, numa dessas vezes, Miles chegou pra ele e perguntou: E aí, gostou do que eu toquei? E Gillespie virou-se pra ele e disse: Mas que que é isso que você tocou? Explica pra mim. E Gillespie disse pro entrevistador que entendeu que o pessoal modal tinha uma melodia básica e ficava trabalhando em torno dela o tempo todo. Aí o entrevistador disse pra Gillespie: Não é tanto uma melodia, é mais um modo, não é? Aí Gillespie disse: Sei lá. Tanto faz.
— Moral da história, Garibaldi? — pergunta o narrador.
— Moral da história, — diz Garibaldi, — é que a história não tem moral. Kind of Blue é o melhor disco de jazz da história? Isso é totalmente imoral. Meu Deus do céu, esse disco é um disco kind of chato pra caralho! Não tem nem muita variedade, os temas se parecem uns com os outros, é tudo muito monófono e monótono. Ah, dizem os milesólatras, esse disco é o epítome da espontaneidade improvisacional. Digo eu: Pra cima de mim? Querem espontaneidade nas improvisações, vão ouvir o concerto inaugural do JATP, com Illinois Jacquet, Les Paul e um puta pianista chamado Nat King Cole, que depois degenerou em cantor popular. Ah, dizem os milesólatras, mas esse disco é um paradigma. Pergunto eu: Que paradigma? Ah, respondem eles, o jazz modal. Respondo eu: E daí? Pelo jeito como eles falam essas palavras sagradas, jazz modal, parece até que não tem nada mais sublime no jazz do que o jazz modal: que o jazz modal foi mais importante, mais influente e mais duradouro do que o swing e o bebop. Agora me diz: quem é que tocou jazz modal? Dá pra contar nos dedos de uma só mão: Miles Davis, John Coltrane, Herbie Hancock, Wayne Shorter. Ou seja, a panelinha de Miles Davis. Quem mais? Ah, eu ia me esquecendo de um grande músico modal: Ravi Shankar. Mas é claro. Por que é que um ser de outro planeta musical como Ravi Shankar se encaixou tão facilmente no jazz dessa época? Porque a música hindu, com aquelas ragas chatas que dóem, é modal. Queria ver esse faquir se dar bem no jazz dez, quinze anos antes, em pleno apogeu do bop. Olha, eu não entendo nada de música, mas me parece que a música modal é um retrocesso, porque tem a ver com músicas primitivas, como a música européia medieval, como a música oriental, que só conhece a escala pentatônica. O que faz lembrar um músico brasileiro aí, exímio pianista, que se meteu no meio do mato com uns índios tupinambá da vida, dizendo que queria aprender música. Vai pra puta que o pariu. Que o cara faça pesquisa musical entre esses povos primitivos pra aproveitar uma coisa aqui, outra coisa ali, tudo bem. Mas aprender? Aprender o quê? Você vai aprender a ler com analfabetos, por exemplo? Mesma coisa Coltrane, que se encantou com as porras das ragas e passou a tocar igual hindu: só faltava o turbante. Mas não admira, porque o objetivo da música dele nessa fase nem era mais musical, era místico. Coltrane ficava duas horas tocando raga-jazz pra agradecer a Deus por estar livre das drogas. Livre porra nenhuma. Tinha trocado uma droga por outra, e ainda sou mais a heroína do que a música modal.
A moça que trabalha na joalheria ali em frente chega à porta da loja pra vigiar o movimento da praça. Está de vestido vermelho e tem, num dos pulsos, uma pulseira de fios vermelhos combinando com o vestido.
— Mas deixa pra lá, — diz Garibaldi. — Vamos analisar a longevidade do jazz modal. Me diz: tem alguém tocando jazz modal hoje em dia? O swing está aí, renovado, o bop está aí, vivo da silva, até o estilo dixieland tem montes de intérpretes por aí. Mas me diz: alguém ouviu falar aí de algum jazz neomodal? Não tem. O que tem, segundo me disse Jovaldo Guimarães, grande saxofonista aqui da terrinha, são alguns temas modais que sobreviveram ao desaparecimento da moda. Se o tema é modal, ele toca no estilo modal. Mas fez questão de me dizer que acha a improvisação modal chata pra caralho.
Garibaldi solta um longo suspiro antes de prosseguir:
— Pois é, — diz Garibaldi: — o jazz modal não teve nem expansão nem longevidade. O próprio filho da puta do Miles Davis daí a pouco voltou à improvisação sobre acordes, porque sentiu que a coisa modal não tinha futuro no jazz. E só vai retornar ao modal, pra vocês verem a limitação do troço, quando começa a investir no jazz-rock. O que me faz lembrar aquela tira de Chiclete com Banana em que dois músicos de rock chegam numa cidade e, descendo do avião, são cercados pela imprensa e pelos fãs. Aí um diz: “Vocês querem rock’ ‘n’ roll?” E o outro diz: “Vocês querem rock’ ‘n’ roll?” Aí um repórter pergunta: “Por que vocês, roqueiros, só sabem dizer uma única frase?” E eles respondem: “Porque uma frase é rock ‘n’ roll. Mais do que isso já é jazz.” É isso aí: o famoso estilo modal, de que Kind of Blue é um marco, é bom pro rock, mas não pro jazz.
Um senhor de meia-idade junta-se à senhora de meia-idade na mesa próxima. Ele traz em cada mão um copo de sorvete que, pela cor, deve ser de coco.
— Mas é evidente, — diz Garibaldi, — que também tem um fator mercadológico por trás de todo esse cartaz de Kind of Blue. Pra começar, a promoção do disco foi feita pela divisão de música pop da Columbia, o que já deu um impulso nas vendas. Além disso, uma semana depois do lançamento do disco Miles Davis teve a sorte incrível de se meter numa confusão com a polícia de Nova York por motivo besta na calçada do Birdland, onde o sexteto dele estava tocando. Parece que um policial disse pra ele circular, ele subiu nas tamancas, houve bate-boca, e o policial lhe fez o grande favor de agredi-lo no coco com o cassetete e prendê-lo por desacato. A foto que tiraram na ocasião saiu em tudo quanto é jornal: mostra Miles Davis algemado a um policial branco, com dois pedaços de esparadrapo no coco e o paletó branco todo pichado de sangue. Com uma publicidade dessas, do tipo certo e na hora certa, não admira que o disco tenha vendido pra caralho. E, na nossa civilização, o que vende vira mito e o que vira mito vende. Ou seja, a tendência do mito é vender e mitificar. Eu li em algum lugar que Kind of Blue vendeu dois milhões de cópias desde que foi lançado em 1959.
— Dois milhões de cópias? — admira-se Fernando. — É um número impressionante, Garibaldi.
— Mas lembre-se, Lady Achiamé, — diz Garibaldi, — que a verdade nunca está com a maioria. E quem disse isso não foi Garibaldi Magalhães, mas André Gide.
— Deve ser o disco de jazz mais vendido de todos os tempos, — insiste Fernando.
— É, nenhum disco de jazz vendeu tanto, a não ser talvez as porcarias de Kenny G, — diz Garibaldi. — E até me arrisco a dizer que grande parte da putada que comprou Kind of Blue também deve ter Kenny G em casa.
Aí Garibaldi enfia a mão no estômago da pasta amarela e retira de lá um recorte de jornal:
— Agora deixa eu mostrar pra vocês até onde vai o poder da porra do mito. Vejam só isto aqui. Estão saindo nos Estados Unidos, ao mesmo tempo, dois livros sobre Kind of Blue: um deles se chama Kind of Blue: The Making of the Miles Davis Masterpiece, de um tal de Ashley Kahn; o outro, quase um homônimo, é The Making of Kind of Blue: Miles Davis and His Masterpiece, de um tal de Eric Nisenson. Já não basta mitificar o músico e o disco, é preciso mitificar o local e o momento em que foi feito, e cada partitura, cada anotação, cada guimba de cigarro fumado durante as gravações. E tudo isso gera mais publicidade, mais exposição na mídia, mais artigos em jornais e revistas, mais vendas. Daqui a pouco essa merda terá vendido mais uns dois milhões de cópias, e será considerada, como música, mais importante que todas as sinfonias de Beethoven.
A senhora de meia-idade retira de dentro da bolsa um baralho. Embaralha as cartas com perícia, pousa o baralho no centro da mesa. O senhor de meia-idade corta o baralho. A senhora de meia-idade começa a distribuir as cartas. O senhor de meia-idade apanha as suas cartas, abre-as em leque diante dos olhos. Os dois começam a jogar biriba e a tomar sorvete. As luzes gradualmente não se apagam. Assim mesmo, à luz das luzes acesas, a crônica dá por encerrado o seu primeiro ato pra voltar, se Deus quiser, no segundo.





ATO II

Pra Rogério Coimbra, por que não?


Quando se abre a crônica pro ato II, nada mudou no cenário da praça do Canto. As luzes que não se apagaram continuam acesas. Estão lá, à mesa do canto, os mesmos quatro sócios do Clube das Terças-Feiras; está lá, à mesa próxima, o mesmo casal de meia-idade dando início a um jogo de biriba; está lá, à porta da joalheria, a moça de pulseira vermelha combinando com seu vestido vermelho. A Garibaldi, como personagem principal, cabe o primeiro movimento do segundo ato. É um movimento sereno, um simples folhear da revista Time à procura de alguma coisa mais com que dar prosseguimento à sua campanha difamatória contra o bom e velho Miles Davis. Com essa sinistra intenção folheia, folheia, folheia, até que:
— Com a devida vênia, queria mostrar isso aqui também pra vocês, “O século nas artes”. É um joguinho besta de cultura geral. Você tem de associar vinte e uma transcrições de Time a vinte e uma personalidades artísticas do século. A foto de Armstrong está aqui, e a transcrição que corresponde a ele é esta merda, que eu peço licença pra traduzir: “Ele tinha acento e ritmo perfeitos. Sua música, tanto tocada quanto cantada, tinha momentos tão gloriosos como uma viagem à lua e tão tristes como as gotas de sangue de um bandido de rua morrendo na sarjeta.” É uma tentativa de fazer uma frase de efeito poético, que acaba saindo pior que um peido bubônico.
Garibaldi ilustra sua crítica movendo a mão diante do nariz. Em seguida:
— Agora querem ver o que tem aqui sobre Charlie Parker?
— Lê aí, Garibaldi, — diz Fernando.
— Pois não tem nada aqui sobre Charlie Parker, — diz Garibaldi. — Nada. Nada. Nada. Mas sobre Miles Davis é claro que tem. Olha aqui a foto do indefectível filho da puta!
Com um dedo indicador e pontiagudo Garibaldi mostra, na página da revista, a foto de Miles Davis, que ali está tocando tranqüilamente seu trompete assurdinado.
— E qual é, — prossegue, — a transcrição que se refere a ele? Vamos ver. Ah, está aqui: “Em 1948, quando todo mundo estava tentando tocar como Diz, o noneto deste artista”, ou seja, de Miles Davis, “estava depurando o som de alto-forno de Gillespie e transformando-o na clara chama de um bico de Bunsen.” A frase é ruim, mas, pior que ruim, confunde alhos com bugalhos e não faz neca de sentido. Vamos dissecá-la pra demoli-la.
Garibaldi dobra a revista ao meio e, com voz azedada:
— Em primeiro lugar, dizer que em 1948 “todo mundo estava tentando tocar como Diz” já é uma besteira. Os trompetistas vai ver estavam mesmo. Mas o que os músicos de jazz, sem distinção de instrumento, estavam tentando fazer nessa época era tocar bebop, ou seja, tentando tocar de acordo com as inovações, em 1948 já nem tão novas assim, melódicas, harmônicas e rítmicas injetadas no jazz por Dizzy Gillespie e Charlie Parker. Em seguida o autor da frase faz referência ao noneto que Miles Davis liderava na época, que fez as gravações que anos depois foram reunidas no disco Birth of the Cool. Todo mundo sabe que esse noneto, pra usar as palavras de John Ephland, estava tentando criar um jazz orquestral no contexto do bop: um big band bop que ao mesmo tempo fosse uma alternativa pras altas temperaturas do bop. Então o noneto tinha a ver com o bebop como um todo, é claro, e não especificamente com o trompete de Gillespie, como a frase sugere. Em suma, a frase teria sentido assim: “Em 1948, quando todos os trompetistas estavam tentando tocar como Diz, Miles Davis estava depurando o som de alto-forno de Gillespie e transformando-o na clara chama de um bico de Bunsen.” Ou assim: “Em 1948, quando todo mundo estava tentando tocar no estilo bop, resultado das experiências inovadoras de Charlie Parker e Dizzy Gillespie, o noneto de Miles Davis estava retocando esse estilo e transformando-o numa versão mais contida e mais suave.”
Garibaldi atira a revista sobre a mesa pra então:
— Essa frase tosca só vem demonstrar que Time não passa de uma revistinha canhestra metida a besta. Mas isso não importa. O que importa é a escolha da referência. Donde me acho no direito de fazer duas perguntas. Primeira: por que Miles Davis é que está ali e não Charlie Parker? Miles Davis, é o que se pode adivinhar da leitura da citação, foi o criador do cool jazz, opinião que aliás eu contesto, mas não vem ao caso agora. Parker foi o criador do bebop, movimento muito mais revolucionário, denso e influente do que o cool jazz: o próprio cool jazz não passa de uma costela do bebop. Segunda pergunta: por que Miles Davis é que está ali e não Dizzy Gillespie? Todos os críticos, inclusive a cambada de tietes de Miles Davis, admitem que ele tinha uma técnica limitada, incompatível com as exigências do bebop. O próprio John Fordham admite que ele errava notas, tinha uma entonação deficiente e não se dava bem com os andamentos mais rápidos. Cannonball Adderley, que tocou no sexteto de Kind of Blue, disse que Miles Davis era um grande solista, embora não fosse um bom trompetista. Já Gillespie tinha uma técnica assombrosa, um dedilhado supersônico, uma facilidade enorme pra escalar os registros mais altos, inclusive alguns picos nunca dantes escalados. Mas não: os formadores de opinião da porra da Time escolhem Miles Davis como imagem do jazz e ainda por cima cagam uma frase que induz o leigo a pensar que Dizzy Gillespie tocava feito um músico das cavernas e que Miles Davis foi quem aperfeiçoou e civilizou esse estilo troglodita. Isso é uma puta sacanagem. Meus amigos, não há termo de comparação entre o trompete de um e o trompete de outro. Você ouve um, depois ouve outro, parece que são instrumentos completamente diferentes. Gillespie toca trompete; Miles Davis toca trimpête. O som de Gillespie é aberto, pra cima, cheio de júbilo, exuberante; até a surdina de Gillespie é com freqüência uma surdina frenética. Já o som de Miles Davis é fechado, pra baixo, melancólico até o cu fazer bico de Bunsen. Comparem as imagens de um e de outro. A de Gillespie mostra aquelas belas bochechas de sapo-boi, aquele trompete com o sino apontando pro céu. A de Miles Davis mostra aquele vulto encolhido, cabisbaixo que nem um morcego, com o trompete escarrando algumas notas tísicas no chão. E o que é, basicamente, um trompete? É o instrumento mais alegre do jazz, mais expansivo, mais altissonante. Cootie Williams fazia o trompete dar gargalhadas. Já o trompete de Miles Davis nunca riu. Miles Davis conseguiu transformar o trompete no seu próprio avesso: num instrumento triste, sombrio, estreito, franzino, mirrado, descarnado, macilento, baço, lúrido, cismático, macambúzio, inanimado, diminutivo e antitérmico. Num instrumento, enfim, coliquativo.
— Coliquativo? — diz João Luiz. — Que merda é essa?
— Coliquativo, segundo o Aurélio, — diz Garibaldi, — é o adjetivo referente aos estados mórbidos que parecem originar-se da fusão das partes sólidas e se acompanham de abatimento profundo. Uma diarréia às vezes é coliquativa. O trompete assurdinado de Miles Davis sempre é.
Garibaldi esquadrinha as unhas de uma mão, depois de outra: está feliz com sua diatribe contra o trompete de Miles Davis. Aí, pra comemorar, leva ao bico a xícara de chocolate, sopra uma, duas vezes, sorve um gole, faz uma careta e:
— Esta josta está fria! Me trouxeram um chocolate frio!
O que não o impede de beber outro gole, desta vez sem careta. Aí dá uma vasta mordida no pão de queijo e toma outro gole de chocolate. E começa a moer nos dentes, igual tal qual um dromedário, aquela pasta. João Luiz aproveita pra:
— O que você disse, Garibaldi, está tudo muito certo, mais ou menos, mas veja bem. Como trompetista, você devia comparar o estilo e o modo de tocar de Miles Davis não com Dizzy Gillespie e sim com Chet Baker. Se bem que mal comparando, porque Chet Baker era melhor, tanto no fraseado como na execução e na improvisação.
Garibaldi não responde: continua mastigando e não responde. João Luiz:
— Não vai dizer nada não, Garibaldi?
— O que está em questão, — diz Garibaldi, — é a dicotomia Gillespie-Davis. É isso que está em questão inclusive na porra deste pasquim aqui, esse tal de Time. Quanto a comparar Miles Davis com Chet Baker, tanto faz seis como meia dúzia. Se eu respeito Chet Baker um pouco mais é porque ele gravou The Route e Jazz For Playboys com Art Pepper. Pelo menos nesses discos Chet Baker foi obrigado a tocar de verdade.
Garibaldi dá uma dentada grande-angular no pão de queijo. Fernando:
— Há pouco, Garibaldi, você disse uma coisa que me deixou curioso. Você disse que não acha que Miles Davis foi o criador do cool jazz.
— Claro que não foi, — exclama Garibaldi, de boca cheia. — Isso é uma falácia que eu pretendo demolir num dos tópicos do meu ensaio.
— Não dá pra você adiantar alguma coisa aqui pra nós? — pede Fernando.
— Tem certeza que quer ouvir? — diz Garibaldi, como se a revelação pudesse ser dolorosa pra ouvidos sensíveis.
— Claro, Garibaldi, — diz Fernando, impávido.
Aqui o narrador não pode deixar de mencionar a chegada de uma moça de vestido laranja, curto e justo, que chega e pára e pede, no quiosque da praça, um café.
— Bom, — diz Garibaldi. — Vocês viram, por aquela frase malfadada de Time, que as pessoas desinformadas ou mal-informadas, como o staff da revista, têm como certo que o cool jazz nasceu no final dos anos 40 com as gravações do noneto liderado por Miles Davis. Gravações que só em 1957, vejam bem, só em 1957, foram reunidas num lp e lançadas com o título maroto de Birth of the Cool.
Cadê aquela senhora que costumava atender no quiosque da praça, pergunta-se o narrador: estará em férias, estará aposentada? Pois quem agora comanda o quiosque é essa moça de feições um tanto que chinesas e coradas maçãs de rosto, o que, no cômputo final, tem até uma certa graça. Quem sabe não descende de uma família chim — Tchang ou Tcheng — que, desgarrada do Império do Meio no velho século XIX, tenha vindo parar em Rio Novo do Sul, aportuguesando o nome pra Oliveira?
— Agora, — diz Garibaldi, — vamos fazer um recuo no tempo. Em 1947, segundo reconhece Luiz Orlando Carneiro, por sinal um dos tietes de carteirinha de Miles Davis, em 1947 Woody Herman já vinha adotando uma sonoridade cool na orquestra dele. Diferente de outros líderes de banda da época, Herman assimilou alguns procedimentos harmônicos do bebop e destilou-os nos arranjos da orquestra, pra criar, segundo a frase de Luiz Orlando, um som puro, fresco, despojado de efeitos. E quem eram os arranjadores da orquestra de Woody Herman nessa época? Ralph Burns e Shorty Rogers, que mais tarde fez carreira como um dos principais trompetistas e arranjadores do West Coast Jazz, uma escola coolíssima de jazz. E quem fazia parte da seção de palhetas da orquestra de Woody Herman nessa época? Serge Chaloff, Stan Getz, Zoot Sims e Al Cohn. Tirando Chaloff, que tocava mais pela cartilha bop, os outros fizeram carreira como saxofonistas cool, todos eles influenciados por quem?
— Por Lester Young, — responde João Luiz, afiado.
A moça chim aciona a máquina de café elétrica, e num instante, num passe de mágica, põe sobre o balcão uma xícara de café quente. A moça de vestido laranja paga o café. A moça chim dá algumas moedas de troco, depois tira de sob o balcão um caderno e ali registra, com um lápis metódico, a venda. A moça de vestido laranja traz a xícara de café pra uma mesa pra tomá-lo sentada. A moça chim se apóia ao balcão como se estivesse na varanda de sua casa e deita sobre a praça o seu ilegível olhar chinês.
— Exatamente, — diz Garibaldi. — Se a orquestra de Woody Herman, em 1947, dois anos antes do noneto de Miles Davis gravar uma só nota, já esbanjava um som cool de inspiração bop, Lester Young já tocava sax com sotaque cool lá por meados dos anos 30, como de fato tocou a vida inteira. Só que a história do cool não começa com Lester Young. Andei fazendo umas leituras pra escrever este ensaio, porque vocês sabem que não sou leviano nas minhas opiniões sobre jazz, gosto das minhas opiniões muito bem fundamentadas, pra não me tacharem de radical. Aí, pelo que li aqui e ali, inclusive no livro A história social do jazz, de Eric Hobsbawm, fiquei sabendo que nos anos 20, nos anos 20, vejam bem, já se tocava jazz num estilo cool. Dos músicos que tocavam nesse estilo os mais conhecidos eram Bix Beiderbecke e Frank Trumbauer, que Hobsbawm considera literalmente precursores do cool jazz. Ele até menciona um fato que também li em outras fontes: que o próprio Lester Young reconheceu a influência de Frank Trumbauer sobre o estilo dele. Outros músicos cool dessa época foram Red Nichols, Miff Mole, Joe Venuti e Eddie Lang. Hobsbawm diz que esses caras inspiraram os pequenos conjuntos cool dos anos 50 e descreve o estilo deles como uma espécie de jazz de câmara, com tons suaves, leves, bem-educados e elegantes, e bem pouco sentimento de blues.
A moça de vestido laranja está sentada a uma mesa próxima, a perna esquerda cruzada sobre a direita. Não está de frente pro narrador, mas de lado, o que lhe permite, a ele narrador, discernir um band-aid cor de pele na pele da coxa esquerda.
— Agora, — diz Garibaldi, — vamos examinar o caso específico do famigerado noneto de cool jazz liderado por Miles Davis. Na segunda metade dos anos 40 fazia grande sucesso em Nova York a orquestra de Claude Thornhill, uma orquestra de dança, sem grandes ambições artísticas. Ocorre que nessa orquestra atuavam alguns músicos de jazz, como Gerry Mulligan, Lee Konitz e Gil Evans. Os arranjos da orquestra, feitos principalmente por Evans e Mulligan, tinham como características uma preferência por texturas estáticas, a ausência de vibrato e de registros mais altos, e o emprego de instrumentos geralmente associados à música clássica, como trompas e tubas, pra criar matizes de som bastante originais. Em suma, tudo aquilo que caracteriza o estilo cool.
Roland Barthes, em A câmara clara, refere-se ao que ele chama de punctum numa fotografia, aquele detalhe na imagem que capta instantaneamente a atenção do olhar de quem olha a foto. Na imagem da moça sentada à mesa próxima o punctum, vai ver, seria o band-aid estampado sobre a pele terracota da coxa plena à mostra.
— Esses músicos da orquestra de Claude Thornhill, — diz Garibaldi que, sentado de costas pra moça, nem sabe o que seus olhos estão perdendo, — viviam se reunindo no apartamento de Gil Evans pra bater papo e experimentar, na teoria e na prática, a adaptação da linguagem da orquestra ao jazz. Aí Miles Davis começou a freqüentar o grupo.
— Vindo de onde? — quer saber Fernando.
— Vindo do bop, — diz Garibaldi. — Miles Davis estava se sentindo pouco à vontade no âmbito do bop. Como disse Benny Green, o bop chegou pra provar que os andamentos impossíveis eram possíveis, e nós já vimos que uma das principais limitações técnicas de Miles Davis eram justamente os andamentos impossíveis. Não dava pra ele competir com Dizzy Gillespie. Gillespie era um monstro no trompete. Em 1946, quando Gillespie apresentou pela primeira vez a composição “Things To Come”, deixou todo mundo de boca aberta. Gunther Schuller, que estava lá, e viu, disse mais tarde que só Gillespie poderia ter concebido aquela composição, e só ele poderia ter tocado aquele solo de trompete naquela época. “Things To Come” foi uma revolução técnica na velocidade, na articulação, no ritmo, na sonoridade, em tudo que se referia à interpretação jazzística. Tocar daquele jeito, Schuller disse, estava além da capacidade de qualquer outro trompetista. Assim, com um Gillespie tocando fogo no paiol do jazz, o jeito era Miles Davis enfiar o trompete no saco e procurar outra freguesia. E me diz, que freguesia melhor pra ele do que o grupo de Gil Evans e Gerry Mulligan, que estava justamente tentando abaixar um pouco o facho do bop? Diga-se, a bem da verdade, que Miles Davis dinamizou o grupo, e começou a tomar uma série de iniciativas de caráter prático. Alugou salas pra ensaiar, recrutou outros músicos, marcou ensaios, cobrou presenças. Deu uma de secretária executiva do grupo. Foi ele também quem conseguiu, mais tarde, um contrato pro noneto tocar no Royal Roost, ali na Times Square, e quem convenceu os produtores da Capitol a gravar a banda. Por sinal, o público de jazz da época não deu a menor pelota pras apresentações ao vivo no Roost nem pros compactos das gravações, que foram um desastre comercial. Mas, de qualquer forma, Miles Davis foi, nesse grupo, uma espécie de pau-pra-toda-obra. Foi boré, gerente, empresário e líder. Também não tiro dele o crédito de ter dado a Mulligan o apelido Jeru, que aliás parece até coisa de veado. Portanto, em termos administrativos, não há dúvida: Miles Davis foi o general daquela banda. Mas em termos musicais, que é o que me parece que importa, já que se trata de um empreendimento musical, qual foi a participação dele naquele noneto?
A moça do band-aid na coxa acabou de tomar o seu café e agora acende um cigarro. Laranja era a cor do seu vestido; agora azul de seda. O narrador fecha os olhos, abre, fecha, abre, mas é isso aí: quem antes vestia laranja agora veste azul de seda. Como entender a ocorrência dessa metamorfose a não ser tomando umas três vodkas com limão ao som de uma música de Charles Mingus chamada “Orange Was the Color of Her Dress; Then Silk Blue”?
— No bebop, — Garibaldi continua, professoral, enchendo o saco, — que era por excelência música de combo, ou seja, de grupo pequeno, o ponto alto da música sempre foram os solos. Charlie Parker, com aquela urgência toda que era a marca registrada dele, nunca perdia tempo com arranjos. Tudo era feito ali na hora, na base do eu faço isso e você faz aquilo, porque o que ele queria mesmo, sendo um pássaro, era o vôo da improvisação. Já o noneto se concentrava nos arranjos, numa inversão da política musical do bebop. É fácil concluir, então, que num grupo como esse o verdadeiro mentor não é o solista, mas o arranjador. Aí é só fazer umas contas de aritmética que dá pra identificar na hora o verdadeiro líder musical do noneto.
Tomado o seu café, fumado o seu cigarro, mudada de laranja pra azul a cor do seu vestido, a moça do band-aid na coxa encerra sua participação na crônica. Levanta e vai, com Deus, toda gostosa em seu azul de seda. Vai por onde foi a moça prematura deste texto, Márcia, a moça de março perdida em janeiro, que tinha flores de pele na calça jeans — só que vai pressurosa, sem perder tempo em olhar vitrines, como se de repente atrasada pra encontro com namorado ou consulta com terapeuta.
— Acontece, porém, — diz Garibaldi, — que quando se trata de Miles Davis qualquer informação exige uma capina, porque tem sempre muito mato em redor. Segundo as notas de Ira Gitler no disco Birth of the Cool, Gerry Mulligan fez quatro dos doze arranjos, John Lewis fez três, Gil Evans fez dois, Johnny Carisi fez um só, o de “Israel”, e Miles Davis fez também unzinho só, o de “Deception”.
— Pera lá, — diz Fernando. — Quatro e três, sete, com mais dois, nove, com mais dois, onze. Falta um.
— Ira Gitler não esclarece nas notas quem fez o arranjo de “Jeru”, — diz Garibaldi. — Mas essa é uma composição de Mulligan, o que levaria a crer que o próprio Mulligan é que fez o arranjo, ampliando a quota dele de quatro arranjos pra cinco.
A moça da Work Chop faz nova visita à mesa pra saber se alguém quer mais alguma coisa. Garibaldi, escaldado pelo chocolate frio, pede uma Coca-Cola bem gelada; Fernando e o narrador imitam-no; João Luiz permanece abstêmio.
— Em 1991, quarenta anos depois daquela aventura cool, — Garibaldi continua a preleção, — Mulligan teve a idéia de regravar o repertório do noneto. Miles Davis foi convidado a participar, mas, que pena, morreu antes de começarem as gravações, que foram feitas em 1992. Do noneto original, além de Mulligan, só estão presentes John Lewis ao piano e Bill Barber na tuba. Eu tenho esse cd. Ali se dá o crédito direitinho pra quem fez o arranjo de cada composição em 1949. O arranjo de “Jeru” foi feito mesmo por Mulligan, o que não é nenhuma surpresa. Surpresa, sim, é descobrir que um dos arranjos atribuídos a John Lewis mais o arranjo de “Deception”, atribuído a Miles Davis, também foram feitos por Mulligan. Conclusão: Miles Davis, que segundo as informações fajutas de Ira Gitler tinha feito um arranjo, não fez arranjo nenhum, e Mulligan, que segundo o mesmo Gitler tinha feito quatro arranjos, na verdade fez sete. Sete dentre doze. Mais da metade. Sem esquecer que, além de ter sido o principal arranjador do projeto, Mulligan também atuou como solista nas gravações de forma tão destacada como Miles Davis. Em suma, pode-se dizer que em termos musicais o disco é mais de Mulligan do que de Miles Davis.
Moça de blusa preta que trabalha numa das lojas da praça chega ao quiosque pra tomar um mate gelado. Tem no pulso direito uma pulseira semelhante à da sua colega da joalheria, só que preta, pra combinar com o preto de sua blusa.
— Não é de admirar, — diz Garibaldi, — que meu crítico favorito, Whitney Balliett, no livro The sound of surprise, todas as cinco vezes que se refere a esse noneto ou a essas gravações de 1949-50, ele hifeniza o crédito, se é que posso usar esse verbo: o grupo é o grupo de Davis-Mulligan, as gravações foram feitas por Davis-Mulligan. Ele compreendeu melhor do que qualquer outro crítico o que tinha acontecido ali.
— Tudo bem, — diz Fernando, conciliador. — O cool jazz teve dois pais, um negro e um branco, Miles Davis e Gerry Mulligan.
— Contesto, — diz Garibaldi.
A moça de blusa preta toma seu mate de pé junto ao balcão. A moça chim sussurra-lhe alguma coisa ao ouvido, ela se vira pra olhar pra mesa do clube. Ambas sorriem. A moça chim sussurra mais alguma coisa. Riem ambas.
— Como contesta? — diz Fernando. — Se bem entendi a coisa, o jazz teve algumas correntes refrigeradas nos anos 20 e 30, e até nos 40, mas me parece que só com o noneto de Miles Davis e Gerry Mulligan é que o cool jazz adquiriu mesmo uma identidade própria.
— Não estou interessado em identidade, — diz Garibaldi. — Estou interessado em continuidade. Identifique quem deu continuidade ao projeto cool e você terá o pai, ou os pais, do cool jazz.
— E Miles Davis não deu continuidade ao projeto? — ainda Fernando.
— Miles Davis estava atrás de sucesso, — diz Garibaldi. — Como o noneto não teve sucesso, ele deixou aquilo pra lá e voltou à freguesia do bop. Passou a década de 50 tocando bop e hardbop. Primeiro com Charlie Parker e com Sonny Rollins, depois com Jay Jay Johnson, com Lucky Thompson, com Jackie McLean, com Jimmy Heath e, por fim, com John Coltrane e Cannonball Adderley. Tanto que é considerado um dos fundadores do hardbop, que eu vejo como um desenvolvimento natural do bop e nada mais, não tem nada ali que justifique dizer que alguém fundou aquele troço.
A moça da Work Chop traz três latas de Coca-Cola e três copos plásticos, que distribui a quem de direito, ou seja, só a João Luiz é que não. Há uma pausa pra se abrirem latas, encherem-se copos, beberem-se os primeiros goles. Garibaldi chega a estalar os lábios de prazer, como o Coca-Cola Kid que é. Aí:
— Agora chega de falar em Miles Davis. Vamos identificar os músicos que deram continuidade ao projeto cool nos anos 50 e que, no meu entender, foram dois. Um deles foi Shorty Rogers.
— Shorty Rogers? — estranha Fernando.
— Já esqueceu de Shorty Rogers? — diz Garibaldi. — Foi um dos arranjadores que criaram o estilo cool da orquestra de Woody Herman nos anos 40. Pois Shorty Rogers se radicou na Califórnia no início dos anos 50, fez estudos particulares de música clássica e continuou a desenvolver um estilo cool de jazz, que se tornaria uma das vertentes principais do chamado West Coast Jazz. Com ele, em volta dele ou paralelamente a ele estavam músicos como Jimmy Giuffre, Bill Holman, Bob Cooper, Bud Shank, Howard Rumsey, Shelly Manne e, é claro, Art Pepper: o mais hot dos músicos do cool jazz. Mas faz parte da política de hipervalorização de tudo que diz respeito a Miles Davis creditar a ele, via noneto de 49-50, uma influência direta sobre a música de Shorty Rogers, o que me parece um contra-senso, já que Shorty Rogers começou a experimentar com padrões cool dois anos antes, em 1947. Faz mais sentido creditar a Shorty Rogers um desenvolvimento inteiramente independente, que é o que eu faço. A propósito, Shorty Rogers andou experimentando com improvisações modais bem antes de Miles Davis, também, mas não deve ter visto muita graça naquilo porque não foi muito a fundo. O outro músico da minha lista —
— Só pode ser Mulligan, — se antecipa Fernando.
— O próprio, — diz Garibaldi. — Mulligan continuou envolvido até a alma com a proposta do cool jazz. Em 1951 ele grava Mulligan Plays Mulligan com um tenteto que pra mim não passa de um noneto com mais uma fêmea tocando maracas. Felizmente a gravação é meio precária, e não dá pra distinguir a porra das maracas.
O que não falta no Centro da Praia nesta terça é moça transeunte a sós consigo mesma. Garibaldi se cala bem a tempo de se juntar aos demais de nós pra olhar uma moça que desliza, que bonita, ao largo da praça, e ao longo, com mãos nos quadris e andar de passarela. Veste calça jeans e blusa preta, e porta uma mochila preta às costas, como uma squaw o seu papoose. Depois que ela se vai, sem deixar nome nem palavra, Garibaldi:
— Mas você ouve esse disco, Mulligan Plays Mulligan, você vê que aí está a continuidade do trabalho do noneto de 49-50. E reparem que não há, nas notas desse disco, nenhuma referência às gravações do noneto, nem a nenhum estilo cool. O que só confirma que as gravações de 49-50 passaram em brancas nuvens, a ponto de ninguém nem se preocupar em mencioná-las nem em dar-lhes um rótulo. Muito bem. E depois, o que é que Mulligan vai fazer da vida? Vai pra Califórnia e instala em Los Angeles o seu quartel-general musical pra aprimorar e diversificar o projeto cool. Em 1952 já inventa um novo estilo de tocar cool, que é —
— O quarteto pianoless, — diz João Luiz, que adora essa palavra, pianoless.
— Isso mesmo, o quarteto sem piano com Chet Baker, — confirma Garibaldi. — Nem isso de pianoless era novo, porque até 1917 não se usavam pianos no jazz, talvez por causa da natureza ambulante das bandas, de forma que a função do piano era executada pelo violino. Nem o quarteto sem piano de Mulligan resultou de nenhuma proposta musical longamente amadurecida. Aconteceu que, quando Mulligan foi tocar no Haig, um night-club de Los Angeles, ele viu que tinha um vibrafone no lugar do piano. Aí perguntou, Cadê o piano que estava aqui? Explicaram que Red Norvo estava tocando lá em outros dias da semana e não queria sentir nem cheiro de piano. Por isso o dono do Haig armazenou o piano no seu próprio apartamento. Como não tinha piano, o jeito foi Mulligan inventar o quarteto sem piano. O quarteto fez tanto sucesso que daí a pouco lá foram Mulligan e seus compinchas pro estúdio fazer umas gravações. Poucos meses depois, já eram tão badalados que Time, sempre um termômetro do sucesso, fez uma matéria sobre eles. Uma daquelas matérias poéticas de merda, que Time só sabe escrever sobre jazz poeticamente. Nessa época a fila pra entrar no Haig dobrava a esquina. Os discos estavam vendendo bem pra caralho. Choviam convites pra tocar nos melhores espaços do país inteiro. Aquilo que não tinha acontecido com o noneto em Nova York aconteceu com o quarteto em Los Angeles. Em 1953 Mulligan entrou em cana por uso de drogas, mas em 1954, de novo em atividade, fez aquele célebre concerto em Paris, começou a trabalhar com grupos maiores, quintetos e sextetos, com Jon Eardley, Zoot Sims, Bob Brookmeyer, e gravou os inesquecíveis California Concerts.
João Luiz, ouvindo falar nessas gravações, que inclui entre as suas favoritas preferidas, se sente todo no direito de dar um pitaco:
— Por sinal esses discos deveriam ser uma referência da música West Coast pros apreciadores do jazz. São simplesmente maravilhosos, o fino do cool jazz. Os arranjos de Mulligan são soberbos e os músicos são magníficos, desde o pessoal de sopro, Mulligan, Brookmeyer, Zoot Sims, até o pessoal da cozinha, Red Mitchell, Larry Bunker e Chico Hamilton. Sem esquecer que tanto Mulligan como Brookmeyer tocam um piano foda quando é preciso. E sem esquecer Jon Eardley, um trompetista vários furos acima de Miles Davis, que nunca teve o reconhecimento que merecia e acabou se retirando pra Europa, onde arranjou emprego numa daquelas rádios alemãs que têm orquestra, banda e o caralho a quatro. Nunca mais voltou. Ficou lá, tocando trompete em alemão, e lá morreu em 1981.
É João Luiz fazer uma pausa pra respirar e Garibaldi:
— Como eu ia dizendo, é nesse momento, em 1954, pra pegar carona no sucesso de Mulligan, que a Capitol lançou oito das músicas do noneto de 49-50 num lp de 10 polegadas na série Classics in Jazz. Enquanto isso, o West Coast Jazz, que englobava todas as vertentes do jazz da Califórnia, ia se transformando cada vez mais numa realidade palpável e vendável. Aí a Capitol ataca de novo. Em 1957 reuniram em disco as onze gravações instrumentais do velho noneto (a faixa vocal, “Darn That Dream”, ficou de fora). Os produtores deram ao disco o título de Birth of the Cool, pra capitalizar em cima do sucesso do cool jazz e, lógico, pra atribuir a Miles Davis a paternidade do movimento. A minha intuição me diz que toda a grande mídia sediada em Nova York ajudou a vender essa versão revisionista da história. Estava em jogo o prestígio de Nova York como centro de produção de jazz, era preciso demonstrar que o que estava acontecendo lá na Califórnia tinha começado em Nova York, e com um músico que continuava em Nova York. A coisa pegou, e Miles Davis se transformou numa espécie de pai pródigo do cool jazz.
A moça chim vem vindo pegar a xícara largada sobre a mesa pela moça de vestido laranja depois azul de seda. Do lado de fora do balcão, exposta de corpo inteiro a quem a quiser olhar, dá pra ver que ela usa, preso à cintura, um avental curto como uma tanga.
— Olha só, Garibaldi, — diz o narrador, — a chinesa que puseram pra atender nesse quiosque. Dá até vontade de trair Alcides e pedir um café aqui mesmo.
Garibaldi se vira pra olhar. A moça se vê observada e não consegue deixar de deixar escapar um sorriso. Na mão esquerda reluz de ouro uma aliança de casamento.
— Essa moça não é chinesa, — discorda Garibaldi, — é esquimó. Foi pra ela que Dick Twardzik compôs aquela música, “The Girl from Greenland”.
— Essa música não é de Chet Baker? — pergunta o narrador.
— Sei lá, — diz Garibaldi. — É de um ou de outro. Só sei que gravaram essa música em Paris, em 1955, três dias antes de Twardzik morrer de overdose.
— E é casada, — acrescenta João Luiz. — Tem aliança na mão esquerda.
— Maravilha, — diz Garibaldi. — O marido esquimó é o marido mais altruísta do mundo. É só você aparecer de visita no iglu que ele te dá logo a mulher pra foder com você.
A moça retorna ao quiosque. O narrador repara em seu cabelo negro, derramado sobre as costas num grosso rabo-de-cavalo; repara em sua bunda, bem bonita em dois volumes suaves e redondos. De volta à sua peroração, Garibaldi:
— Não tem animal mais incoerente do que um crítico. A principal característica do West Coast Jazz, segundo os próprios críticos, é a valorização dos arranjos. Os arranjos passam a ter tanta importância na música como as improvisações. Os músicos mais representativos da escola, além de serem todos eles instrumentistas, são grandes arranjadores: Shorty Rogers, Gerry Mulligan, Bob Brookmeyer, Bill Holman, Jimmy Giuffre, Marty Paich, Gerald Wilson, Bob Enevoldsen, John Graas. Como é que a criação dessa escola de arranjadores pode, em sã consciência, ser atribuída a um cara que não sabia arranjar porra nenhuma?
Olha-nos com olhos ominosos de ameaça, bem capaz de desafiar pra um duelo ai de quem se atreva a discordar. Na falta de discordância:
— O estilo cool entrou em declínio, pelo menos em termos de sucesso, nos anos 60. Lembro bem de uma frase de Cannonball Adderley que eu li na Down Beat, lembro dele soltando uma ironia do tipo “cadê todos aqueles sujeitos chamados Bob que tocavam jazz lá na Califórnia?” Isso por causa de que tinha mesmo uma porção de Bobs no West Coast Jazz, como Bob Brookmeyer, Bob Cooper, Bob Gordon, Bob Enevoldsen e Bob Whitlock. Mas quando, nos anos 60, terminou a idade de ouro do movimento, os críticos escolheram o cool jazz como saco de pancadas e começaram a tripudiar. A impressão que dá é que eles não tinham perdoado aqueles anos de sucesso do jazz da Califórnia. Aí a moda é descer o malho no cool jazz. Bill Quinn, por exemplo, fala com o maior desdém da gelidez da abordagem do West Coast Jazz. E aí você vê a falta de coerência desses críticos. Quando eles falam mal do cool jazz, eles nunca atribuem a criação do estilo a Miles Davis, e quando falam bem de Miles Davis (que é sempre), aí incluem entre as grandes realizações dele a criação do cool jazz. Dá pra entender?
— Os críticos podem achar, — diz João Luiz, — que o West Coast Jazz foi uma merda, mas na minha concepção os melhores músicos de jazz, bem como os melhores temas e arranjos, estão é lá no West Coast Jazz.
Um sujeito de seus sessenta anos encosta-se ao balcão do quiosque e bate um papo com a moça já não mais chinesa mas da Groenlândia. Ela o escuta com a cabeça inclinada pra um lado, fazendo-se sensual, depois ri do que ele diz, mostrando dentes brancos e compactos. Aí abre o freezer, tira de lá uma garrafa de água mineral. O sujeito paga e estende a mão em concha pra receber o troco; a moça deposita algumas moedas no interior da concha e os três segundos que seus dedos demoram nesse gesto parecem não ter fim. O sujeito leva a garrafa até uma mesa — a que fica exatamente entre o quiosque e uma das barras de aço pintado que demarcam a fronteira da praça — e ali senta de costas pro quiosque. Garibaldi, enquanto isso:
— Mas não adianta: o bem, no fim, sempre triunfa. Eu mencionei que em 1992 Mulligan organizou um novo noneto pra regravar o repertório de 49-50. Miles Davis tinha morrido em 1991. Em vista disso, o disco Re-birth of the Cool, em vez de sair com o nome de Miles Davis, como teria sido certamente o caso, saiu com o nome de Gerry Mulligan. No fim se fez justiça: uma justiça poética e musical.
O que é que o sujeito de seus sessenta anos tem que o torna irresistível à moça da Groenlândia? Pois por ele, olha só, ela abandona o quiosque pra se empoleirar brejeira na barra de aço ao lado da sua mesa. Pena que não dê pro narrador ouvir o que eles dizem e registrar aqui por escrito no lugar da infindável xaropada de Garibaldi:
— Agora, pra não dizerem que eu tenho marcação com Miles Davis, vou dar um crédito a ele, que é o crédito a que ele tem direito insofismável, sem precisar roubar nada dos outros. Miles Davis realmente foi o criador de um estilo cool de tocar trompete.
— Tenho cá as minhas dúvidas, — atiça João Luiz. — Foi ele ou Chet Baker?
— Cara, não vou sair na porrada por causa disso, — diz Garibaldi, — mas entendo que, dos dois, Miles Davis veio primeiro e influenciou mais. Quando ele voltou ao bop, no início dos anos 50, trouxe na bagagem, pro que desse e viesse, a sonoridade cool que tinha adotado pro trompete durante a experiência com o noneto. Eu particularmente não gosto dessa sonoridade, mas ele se distinguiu com ela e, entre os músicos, teve centenas de seguidores. O que, aliás, não admira: era muito mais fácil copiar o estilo dele do que o de Dizzy Gillespie.
Lá no seu poleiro na borda da praça, a moça da Groenlândia — Assuliak, já que precisa de um nome — mergulha as mãos no bolso do avental, que parece ser agora o assunto de conversa com o sujeito de seus sessenta anos. De repente, atendendo-lhe só pode a um capricho, Assuliak desata o avental e despe-se dele, exibindo-o no ar com um gesto triunfal e um sorriso de malícia cheia de graça. É o primeiro ato, e único, de seu strip-tease. Aí bate um pudor, ela olha o relógio no pulso, depois dobra o avental direitinho, com o respeito devido a uma bandeira nacional.




— Se bem me lembro, — diz o narrador, — doze horas atrás, quando você começou a arengar pra nós, você disse que tinha uma teoria sobre as razões do sucesso de Miles Davis no jazz. E aí, não vai falar disso não?
Nesse momento três pessoas se apossam de roldão de uma das mesas da praça: duas mulheres espevitadas e um sujeito de camisa azul neném. Garibaldi toma um gole de Coca-Cola e retém o líquido na boca, formando redondas bochechas que lembram — muito de longe, é claro — as de Dizzy Gillespie. Depois bebe e:
— O sucesso de Miles Davis no jazz se deve a cinco fatores principais. O primeiro é que essa sonoridade que ele criou pro trompete, uma sonoridade compatível com sua pobreza técnica no instrumento, acabou que foi muito bem aceita pelo público. Eu tenho pra mim que foi aceita porque é o som que representa a época. O início dos anos 50 é a época da guerra fria, os americanos estão com medo de tudo, desde invasões de Marte até bombas atômicas dos russos. Não se sentem seguros nem em casa. Os próprios vizinhos podem ser seres do espaço disfarçados de terráqueos, podem ser espiões soviéticos, podem ser até agentes do FBI caçando bruxas comunistas e, se você não tiver cuidado com o que diz, pode ser confundido com uma bruxa comunista, e aí você está fodido. O trompete assurdinado de Miles Davis é o som do cagaço da época. É um trompete com o cuzinho na mão. Isso em termos políticos. Em termos psicológicos, o trompete dele transmite um discurso lírico sobre a solidão. Soa como o ganido de um coração sensível em situação de abandono, ou seja, eleva a autopiedade a uma dimensão musical, logo artística. Quem há de resistir? É o som da fossa, e pela fossa todo mundo já passou. Eu mesmo me deixei seduzir por esse trompete quando ouvi Miles Davis pela primeira vez, que foi no disco Someday My Prince Will Come.
Uma das mulheres espevitadas chega junto ao balcão do quiosque. Está usando um vestido estampado e sua idade orça pelos cinqüenta anos. Assuliak tem de interromper o seu idílio pra vir atendê-la. Pior que a mulher não está ali pra comprar nada, mas pra filar do quiosque um copo cheio de cubos de gelo. Por quê e pra quê? Basta seguir, a olhos vistos, a mulher em seu regresso de volta à mesa: no centro da mesa ergue-se, toda imponente, uma garrafa de whisky Johnnie Walker. Quanto a Assuliak, ei-la de volta ao posto de namoro; ali meio se senta, meio se encosta na barra de aço, estica as pernas, alisa as coxas com as mãos. A um convite do sujeito de seus sessenta anos ela acaba por sentar à mesa ao lado dele.
— Um segundo fator, — continua Garibaldi, — foi que Miles Davis contou com a sorte pra remover do seu caminho alguns trompetistas geniais que bem poderiam tê-lo eclipsado se tivessem vivido mais tempo. Estou falando de Fats Navarro, que morreu de tuberculose em 1950 com 30 anos, e principalmente de Clifford Brown, que morreu em 1956 com 26 anos num acidente de automóvel. Uma coisa era Miles Davis suplantar Dizzy Gillespie, que o público já estava cansado de ver e ouvir. Outra coisa muito diferente seria concorrer com um músico mais jovem e mais talentoso como Clifford Brown.
Quem disse que Assuliak será deixada namorar em paz? A mulher do vestido estampado volta a convocá-la, não estão conseguindo abrir a garrafa de Johnnie Walker. Assuliak levanta da mesa, obediente, e vem. Não dá pra ver qualquer indício algum de má vontade em seu rosto cor de neve da Groenlândia.
— Terceiro fator: a exposição na mídia. Miles Davis não era besta, e sabia que, na nossa civilização mercadológica, muitas vezes um músico pode vender mais discos por causa do penteado do que da própria música. Era preciso criar uma imagem social, e foi isso que ele fez. Se tanto Armstrong como Gillespie eram figuras sorridentes, simpáticas, bem-humoradas, divertidas, ele seria exatamente o contrário. Começou a vender a imagem de sujeito difícil, controvertido, arrogante e agressivo: chegou até ao ponto de praticar boxe. Começou, inclusive, a tratar mal as próprias platéias, bem sabendo que isso impõe respeito e veneração. E decidiu que os textos das contracapas de seus discos não tratariam mais de sua música. Assim, abriu espaço pra se tratar ali de coisas mais interessantes, como seu guarda-roupa, inaugurando sutilmente um culto de personalidade.
Assuliak envolve numa toalha o gargalo da garrafa de whisky mas, por mais que torça e retorça a tampa da garrafa, não consegue abri-la. Alguém sugere uma faca, que Assuliak fornece do arsenal de utensílios do quiosque. O sujeito de camisa azul neném, com muita falta de jeito, consegue finalmente serrar a tampa e abrir a garrafa. As mulheres batem palmas, espevitadas. A mulher de vestido estampado distribui em três copos as pedras de gelo que filou do quiosque. O homem da casa serve a bebida, que tem bela cor de mijo resplandecente. Nos bastidores, a persistente Assuliak retorna à mesa do sujeito de seus sessenta anos e se senta.
— Tudo isso fez de Miles Davis, — prossegue Garibaldi, alheio a toda essa agitação à sua volta, — um dos queridinhos do colunismo social, e são as colunas sociais, mais que as resenhas de discos, que fazem a fama de um músico. Eu li em algum lugar que os colunistas sociais tinham fixação pelas roupas de Miles Davis, pelos carros, pelas esposas e pelas namoradas dele. A própria Down Beat uma vez fez uma reportagem sobre Miles Davis o boxeador. O cara não perdia uma oportunidade pra acontecer em termos sociais. Quando foi à França gravar a trilha sonora do filme Elevador para o cadafalso, não só se congraçou com os intelectuais franceses mas ainda por cima parece que comeu a atriz do filme, no que fez de muito bem, aliás. Se essa mulher deu pra Miles Davis, ela merecia ser comida por ele.
Algumas lojas da praça começam a fechar as portas e apagar as luzes. O casal de meia-idade se levanta, recolhe baralho e toalha de mesa e se retira.
— Um quarto fator é que Miles Davis sempre tinha uma novidade na manga. Sempre estava metido com algum novo projeto, sempre tinha motivo pra se falar dele. A partir dos anos 60, ele pula do hardbop pro jazz modal, do modal pro jazz eletrificado, do eletrificado pro jazz-rock. É o homem das novidades, e tanto a mídia como o público adoram novidades.
Namoro de Assuliak foi curto. O sujeito de seus sessenta anos se despede brusco e vai embora. Assuliak prega-lhe nas costas um olhar escoriado como de quem está pensando: Foi pra isso que eu tirei meu avental pra você? Aí dá de ombros e retorna ao quiosque e começa a arrumar as coisas pra ir embora também.
— O quinto e último fator, e o principal, é a defecção de Miles Davis pro rock. É o golpe de mestre de um músico que sempre deu mais importância ao sucesso que à música. Como é que foi essa mudança? Ora, na virada dos anos 60 pros 70 a situação de vendas de discos de jazz era a pior possível. De cada cem discos e fitas vendidos, um era de jazz, seis de música clássica e 75 de rock e congêneres.
A pele de aço cromado da máquina de café serve de espelho pra Assuliak olhar o próprio rosto e ver se está bonita. Vê que está. De algum compartimento secreto do quiosque retira a bolsa e, com a bolsa a tiracolo, sai do quiosque, fecha a portinhola e se desgarra corredor a fora em busca de uma saída pro ar livre.
— Miles Davis era, sem dúvida, — diz Garibaldi, — o músico de jazz que mais vendia discos, mas até ele estava sofrendo com a crise. Os produtores, preocupadíssimos com a queda das vendas dos discos dele, fizeram-lhe a proposta indecorosa de se bandear pro rock. Duvido que algum produtor tivesse coragem de fazer uma proposta dessas a um Thelonious Monk ou a um Coleman Hawkins. Mas Miles Davis já tinha mostrado que topava qualquer parada. Não tinha incorporado a seus grupos órgão, baixo elétrico, piano elétrico, sintetizadores, e até um baterista brasileiro tocando frigideira? Então ficou acertado que a próxima fase da evolução de Miles Davis seria a fusão com o rock. Foi genial. E deu certo. Daí pra frente Miles Davis conseguiu uma projeção inconcebível pra um músico de jazz. A exposição que ele já tinha na mídia se ampliou de maneira explosiva. As vendas de seus discos voltaram a subir, tanto dos novos como dos antigos. Os concertos encheram de jovens e adolescentes. Miles Davis se tornou um superstar da música. Pronto: eis a quinta e principal razão do sucesso de Miles Davis: ele se tornou o músico mais famoso do jazz porque se tornou um músico de rock. Bebop saudações.
Garibaldi se cala, enche o copo até à borda e começa a beber aquela Coca toda num longo gole que não acaba mais. Aí João Luiz:
— Concordo com você, Garibaldi, em gênero, número e degrau. Esse degrau era pra Miles Davis ter tropeçado nele em 1961 e se foder todo, que aí era menos um pra melar o jazz. Acho que a minha convivência de mais de quarenta anos com o jazz me habilita a dizer o seguinte: Miles Davis, por conta de sua personalidade controvertida e sua capacidade de organizar movimentos e reunir bons músicos pra tocar com ele, foi endeusado mais do que devia pela mídia americana. Acho que a mídia encontrou nele o protótipo ideal e conseguiu transformá-lo num mito do jazz, e quase todo mundo aceitou essa enganação. Na realidade eu só concebo Miles Davis como músico e compositor de jazz no período que vai de 1949 a 1961. Nesse período ele realizou um trabalho até certo ponto razoável dentro do universo jazzístico, como tantos outros fizeram, mas nada que desse pra considerá-lo um dos gigantes do jazz, muito menos pra se tornar um mito da música do século XX. Agora, no período de 1961 em diante, o que Miles Davis fez, compôs e tocou foi tudo, menos jazz.
Garibaldi fixa o olho em João Luiz, como quem vê surgir um possível concorrente. Aí, mais que depressa:
— O que importa é que Miles Davis não conseguiu acabar com o jazz. Wynton Marsalis veio, viu e venceu. Sei que até ele, a princípio, quis tomar Miles Davis como modelo. Mas não demorou pra perceber que aquela merda de música não tinha nada a ver com nada. Então partiu pra outra: pra redenção do jazz. Igual a um Moisés, Marsalis trouxe o povo do jazz de volta à terra prometida, que é a velha e querida tradição, que os músicos do passado criaram pra ser eterna e que estava ali, pronta, como sempre, pra ser eterna. Aí é que Marsalis rejeita a morbidez musical de Miles Davis pra dar ao jazz um sopro de vitalidade. Então, quando ouço aquela Orquestra de Jazz do Lincoln Center, comandada por Marsalis, eu fico de alma lavada. E quando ouço aquela faixa maravilhosa, “Back to Basics”, e ouço Marsalis gargalhando no trompete que nem Cootie Williams, eu fico todo feliz e sinto vontade de dançar.
Garibaldi levanta, lança longe, no ar, o exemplar da revista Time com Albert Einstein na capa, dança alguns passos pernaltas de dança em volta da mesa e, pra pôr fim à crônica:
— E o trompete que nunca riu que vá pra puta que o pariu!


[Escrito originalmente em 2000, este texto faz parte do livro inédito Dois graus a leste, três graus a oeste. Reinaldo Santos Neves (Vitória, 1946), amante de jazz há mais de 40 anos, é autor, entre outras obras, dos romances A crônica de Malemort, As mãos no fogo, Sueli: romance confesso, Kitty aos 22: divertimento, A longa história, A ceia dominicana: romance neolatino (estes dois lançados pela Editora Bertrand Brasil), e A folha de hera: romance bilíngüe, em três volumes, de que já foi lançado o primeiro, pela Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo / Universidade Federal do Espírito Santo. Atualmente é escritor residente da Biblioteca Pública do Espírito Santo.]

Para os amigos leitores, o Jazzseen oferece uma belíssima faixa com 16 minutos de duração onde, embora quase não se possa ouvir Miles Davis, identificamos imediatamente toda sua habilidade de instrumentista e sua genialidade musical. Um verdadeiro, digamos, Carlinhos Brown do jazz!

01 H e l e n B u t t l e r by Jazzseen


Faixa Helen Butter - Álbum On The Corner - Columbia - 1972 - Carlos Garnett (ts), Badal Roy (tabla), Colin Walcott (cítara), Herbie Hancock (key), David Creamer (g), Michael Henderson (b), Jack DeJohnette (d), James Mtume (perc). Long-play gentilmente cedido por João Luiz Mazzi.