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17/02/2009

Olhar e ser visto

Somente Edù, nosso amigo e correspondente em São Paulo, poderia nos apresentar ao O Melhor Bolo de Chocolate do Mundo. Como ficáramos hospedados na Av. Paulista, nas imediações do MASP – que completa 61 anos em outubro com a mostra Olhar e Ser Visto – Edù recomendou O Melhor Bolo de Chocolate do Mundo da Vila Madalena, Rua Girassol, 185. Enquanto partíamos a fatia lentamente, não pude deixar de observar como o olhar e o ser visto tem sido fundamental em nossa cultura, eminentemente, toda ela, visual. Veio à lembrança a matéria de nosso amigo Graciliano Rocha, da Folha de São Paulo, que informa: “Mesmo sem ter como ver a partitura enquanto dedilha as teclas, o pianista André Vicente da Silva executa peças sofisticadas, como a Sonata nº 2 de Beethoven ou a Invenção nº 3 de Bach. Para isso, conta só com os ouvidos e uma memória prodigiosa. Cego desde as primeiras horas após seu nascimento, vinte anos depois, André conseguiu passar na seleção do vestibular de música da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) - e se matriculou ontem (05/02/09). Diferentemente dos pianistas que enxergam, André tem muito trabalho antes mesmo de começar a tocar. Como partituras para cegos são uma raridade no Brasil, um amigo músico dita as composições, nota por nota, para que ele as reescreva em braille. Só então ele passa horas a percorrer as partituras com os dedos e a exercitá-las ao piano, além de ouvir a música incontáveis vezes. Sem poder interromper a execução para tatear a partitura, o pianista memoriza as peças. "É o meu método: a música entra na cabeça e, com exercícios, não sai mais", disse ontem à Folha.

A paixão pela música começou ainda na infância; o caminho para a erudição, aos 11, quando aprendeu a tocar teclado. Aos 17, aprendeu a ler partituras para se habilitar para o vestibular. "Não tem jeito, eu nasci para a música, estar aqui prova que não vale a pena viver sem sonhar." André não é o primeiro deficiente a chegar à faculdade de música da UFRGS. O pioneiro, Vilson Zattera, também cego, formou-se em instrumentos de cordas e sopros nos anos 80 e, hoje, toca jazz nos Estados Unidos. A chefe do departamento, Flávia Alves, afirma que a chegada desses jovens é um desafio à faculdade, que já começou a desenvolver material didático em braille.” E poderíamos falar aqui no Jazzseen sobre uma infinidade de músicos de jazz cegos, alguns desde o nascimento – como George Shearing ou Mike Markaverich – outros após o nascimento – como Ray Charles ou Roland Kirk – e os cegos de uma só vista, como Ry Cooder ou Art Tatum. Mas não há tempo agora. Ficaremos com um breve vídeo do pianista Alec Templeton (1909-1963), nascido cego em Cardiff, capital do País de Gales, único integrante do Reino Unido que manteve suas raízes célticas intactas e nunca permitiu a invasão dos anglo-saxões, devido não somente à bravura de seu povo como também pela sua montanhosa geografia. Daí seu nome Wales, que significa estrangeiro. Bem, não procure por Alec nos guias e dicionários de jazz, pois você ficará às cegas. Há um breve verbete sobre ele na página 726 do Dicionário Oxford de Música, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1994, obra dedicada à música clássica. Sim, após algumas lições quando criança, Alec completa seus estudos na London Academy of Music. Aos dezoito anos compõe um trio para flauta, oboé e piano, no que é congratulado por ninguém menos que Ralph Vaughan Williams. Em 1936 é convidado pelo bandleader inglês Jack Hilton a partir para os EUA, onde participaria de uma série de programas de rádio promovidos pela Standard Oil Company. Seu talento e espontaneidade são rapidamente reconhecidos, principalmente através de suas divertidas e inteligentes leituras dos clássicos, como nos álbuns Bach Goes To Town, Mozart Matriculates e Scarlatti Stoops To Conga, sempre revitalizados com a linguagem do jazz. Como ele mesmo disse certa vez: “Good music need not be ponderous to be good. It can be everything from Bach to jazz.” Embora seja mais lembrado como um versátil pianista popular, Alec registrou algumas composições sérias interessantes para piano, quarteto de cordas, orquestra e voz, quase sempre com fortes laços folclóricos. Célebre através dos diversos programas de rádio e televisão dos quais participou nas décadas de 1940 e 1950 – inclusive ao lado de gente como Bing Crosby – Alec chegou a ter seu próprio programa, o It’s Alec Templeton Time. A faixa a seguir, Moonglow, foi gravada em 1958, num dos Art Ford Jazz shows. Na volta da viagem, é claro, levei um bolo. Para quem não pode olhar nem ser visto, boa audição e bom apetite.

05/11/2006

Cataractes d’arpèges lumineux

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E você pensou que a primeira resenha de novembro sobre a pianista Dorothy Donegan não tinha segundas intenções? Imagine o mais imenso bolo que você puder imaginar. Agora multiplique seu tamanho por 10. Agora tente imaginá-lo feito com 99% de glacê. Agora adicione mais um pouquinho de glacê. Gostou? Não? Agora imagine um tobogã imenso, gigantesco mesmo, eterno em suas infinitas curvas e subidas e saliências e quedas que nunca terminam. Agora coma todo o bolo e desça o tobogã. Enjoou? Não? Bem, assim é a música do genial pianista Art Tatum. Há mesmo quem diga, conforme nos conta Ted Gioia em seu A History Of Jazz – Ed. Oxford, página 104 – que Tatum não sabia improvisar, mas apenas repetir ou mesclar frases extremamente complexas com uma velocidade assustadora em ambas as mãos, velocidade essa jamais superada por qualquer outro pianista de jazz (em algumas gravações parece haver três pianistas tocando juntos!). Seria mesmo apenas isso? Não sendo eu músico, mas apenas um especialista em bolos e tobogãs, prefiro não arriscar aqui e agora uma posição definitiva acerca do maior pianista do jazz. Somente confesso que fico bastante enfastiado depois de 9 minutos ouvindo seus discos solo ou em trio. Sei lá, o estômago embrulha e a orelha esquenta. Mesmo sob as severas críticas de Reinaldo, presidente do famoso Clube das Terças, que sempre salienta a perfeição técnica e a complexidade harmônica do moço, ainda prefiro Bud Powell ou Oscar Peterson quando o assunto é ouvir um pianista genial tocando em trio. Contudo, por uma dessas graças que a arte culinária nos concede de quando em quando, existem algumas excelentes gravações de Tatum em quartetos, quintetos e sextetos, realizadas pelo gran cheff Norman Granz entre 1954 e 1956. Aí a coisa muda da água para o vinho e a redução do glacê é flagrante. Na verdade, considero essas gravações de Tatum extremamente importantes não apenas por sua beleza e perfeição artística, mas também por registrar grandes músicos do swing tocando já sob a influência do bop. Lá estão a melancolia, o romantismo, a ingênua alegria de um lado. Do outro, a velocidade, a rebeldia, a linguagem cifrada pela inteligência incontrolável.

A coisa toda foi servida numa caixa abençoada da Pablo – Art Tatum: The Complete Group Masterpieces – muito bem temperada, com livreto interessante e seis maravilhosos cd’s. Apesar das insistentes cascatas de notas – quase uma assinatura fantasmagórica de Tatum – e do excesso de glicose em certas passagens, não há como negar que essas são, sem qualquer dúvida, algumas das melhores gravações de jazz que já ouvi. E não me pergunte que estilo é esse, se pós-swing ou pré-bop, pois não saberia responder. Sei apenas que é jazz, puro jazz. Como diz Noel Balen em seu L’odyssée Du Jazz, Ed. Liana Levi, página 219: La prodigalité mélodique, l’excessive perfection et la verve insatiable d’Art Tatum n’ont pás été surpassées jusqu’à ce jour. Il reste pour tous une référence majeure. Des concertistes classiques aussi prestigieux que Vladimir Horowitz ou Samson François ont unanimement reconnu leur stupéfaction. Cataractes d’arpèges lumineux, gerbes de notes, éblouissements rythmiques, implosions harmoniques, l’Art de Tatum touche au divin. Lê miracle d’um démiurge audacieux, artificier resplendissant, sublime créateur d’astres, sculpteur de cometes scintillantes pour mieux éclairer sa solitude nocturne. Depois disso, só nos resta lamentar, com o crítico André Hodeir, que o repertório de Tatum seja tão limitado, sobretudo quando levamos em conta sua capacidade musical ilimitada. Para os amigos argonautas preparei uma seleção a partir dos seis cd’s da Pablo, colocada à disposição no gramophone abaixo. E mais: no Jazzseen Jam Session – acima, à direita – servimos como sobremesa uma jam de 13 minutos. Essa é nossa singela homenagem ao mago dos sons Art Tatum, que morreu no dia 05 de novembro, há 50 anos atrás. Bom apetite!





Participações: Ben Webster (faixas 1 e 5), Buddy DeFranco (faixas 2 e 6), Roy Eldridge (faixa 3) e Benny Carter (faixa 4).

16/07/2006

Jazz No Seen - Eric Kloss

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Assim como há quem goste de malucos, há quem goste de cegos, essas estranhas criaturas que vêem o mundo de forma muito particular. O jazz, eu não saberia dizer o porquê, está repleto de músicos malucos e cegos. O pianista mais poderoso do jazz, Art Tatum, era cego. O incomparável pianista branco Lennie Tristano, era cego. Roland Kirk, o descontrolado malabarista do sopro, que tocava três saxofones de uma só vez, era cego. Há uma infinidade de outros grandes músicos cegos no jazz, mas hoje voltamos nossos olhos, e principalmente nossos ouvidos, para o saxofonista Eric Kloss que, em minha visão auditiva, é um dos melhores saxofonistas brancos da fase denominada hard-bop. Sim, infelizmente o jazz sempre conviveu com essa insana mania de utilizar quatro prateleiras esquisitas para acondicionar seus músicos: numa coloca os músicos negros, noutra os brancos, na terceira, os músicos que fazem sucesso e, na quarta, os músicos marginais. Quase sempre, se o camarada é branco e faz sucesso, ele é apedrejado por todos (Benny Goodman, por exemplo). Quando é negro e faz sucesso, é apedrejado por alguns (Louis Armstrong, por exemplo). Quando é branco e marginal, recebe algum afeto (Bix Beiderbeck, por exemplo). Quando é negro e marginal, torna-se um gênio aclamado do jazz (Lester Young). Na verdade, são todos grandes músicos e não deveriam ser catalogados de maneira tão estanque. Proponho, então, armazená-los em novas prateleiras. O Jazzseen cria, aqui e agora, a prateleira dos músicos cegos, um espaço onde depositaremos estranhas criaturas que, impossibilitadas de ler partituras e cifras, retiram sua música do ar. Para mim, um saxofonista frustrado, parece ainda mais incrível a existência de seres que, sem o auxílio dos olhos, fazem uma música incrivelmente complexa e bonita. Afinal, que estranho dom é esse, meu Deus?

Não resta dúvida: gosto de músicos cegos. Eles parecem confirmar aquela velha teoria de que o jazz foi feito de ouvido, criado por músicos pobres e que não sabiam ler música e que tocavam instrumentos velhos e defeituosos. De improviso, tentavam repetir os sons que agarravam no ar e, adaptando-os, criaram essa coisa única chamada jazz. Por essas e por outras, somente me restam duas opções: ir ao Jazz No Seen ali em cima, à direita, e ouvir Eric Kloss ou ir terça-feira, às 20:00, no Balacobaco, ouvir Mr. Salsa. Fica logo ali na Praia do Canto. Espero por você.

22/05/2006

Portugal na taça, Espanha no ouvido

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Outra noite estava eu dormindo e lendo o imenso livro A New History Of Jazz, de Alyn Shipton. Na taça ao lado, três dedos do bastante honesto Cabeça do Pote: um tinto 2001 das lusas Terras Durienses, encontrado por compreensíveis R$20,00 nos mercados de Vila Velha e cercanias. Acordando num susto lancinante ouvi a mulinha do e-mule berrar, com aquela sua assustadora voz de mula-robô: tranferido Tete Montoliu, The Music I Like To Play, Volume 1. Olhei desconfiado: piano solo ?

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Não esperava grande coisa de um pianista espanhol cego tocando jazz sem cozinha. Mas confesso a boa surpresa ao ouvir, entre uma ou duas dúzias de clichês da música erudita européia, um pianista cheio de excelente técnica e profundo swing. Se é que podemos fazer tal tipo de análise, ele me soou como uma espécie de Red Garland possuído pelo espírito de Bud Powell. Colorido, veloz e preciso sem perder a emoção.
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Passeando por clássicos populares, como Don't Smoke Anymore, Alone Together ou Whisper Not, Tete convence até aqueles que, como eu, não apreciam beber um tinto ao som de 50 intermináveis minutos de piano solo. Recomendo ambos, piano e livro, embora Shipton não faça qualquer referência ao grande pianista espanhol em suas quase mil páginas de boa história. Merecia ser citado.