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22/07/2011

Lenda Viva - Chris Barber


Quando Vovô Acácio foi convidado por Oscar Niemeyer para projetar Brasília, pouca gente poderia imaginar que deste encontro nasceria uma das mais acirradas polêmicas da história da arquitetura brasileira. Conforme já havia demonstrado no projeto de Welwyn Garden City, inaugurada em 1920, Vovô Acácio era um entusiasta do verde, da coexistência saudável entre árvores, construções, jardins e calçadas. Tendo orientado o arquiteto Louis de Soissons na construção da Welwyn Garden City, a segunda garden city da Inglaterra, Vovô Acácio colocou em prática sua ideia fixa de unir a cidade com o campo, tornando menos inóspita a paisagem urbana, suavizando-a com a presença constante da natureza. Dito isto, claro que seu encontro com o amante brasileiro do concreto foi um desastre. Após a breve reunião, Vovô Acácio perguntava para si mesmo: como é que um comunista pode beber seis garrafas de Château Latour 1934 durante a elaboração de um projeto arquitetônico e, o que é pior, propor a construção de uma cidade totalmente desvinculada de seu entorno?

Nenhum dos apelos de Vovô Acácio junto à imprensa foram ouvidos. Suas reuniões com Juscelino foram em vão. As súplicas ao Papa deram em nada. Brasília nasceu cinza, pesada, sem verde e sem qualquer conexão com os arredores, do que resultou na favelização horizontal da vizinhança, também sem verde e sem jardins, como numa metástase. Visivelmente transtornado, Vovô caminha com dificuldade até a velha estante, de onde retira uma surrada pasta com os projetos originais de Welwyn Garden City, construída quarenta anos antes de Brasília. E cochichava: veja Paulinha, olhe aqui a primeira casa ocupada da cidade jardim, nas vésperas do natal de 1920. Depois, retirando outra foto, disse: está vendo este bebê aqui, é Chris Barber, um dos maiores músicos de jazz da Inglaterra. Sabe onde ele nasceu? Exatamente, em Welwyn Garden City!



Colocando no toca-discos um desconhecido álbum de Chris e apertando entre os dedos a rolha de um dos Château Latour 1934 abertos por Niemeyer durante aquele terrível encontro, Vovô passou a nos contar um pouco mais sobre o músico inglês. Nascido na cidade jardim em 17 de abril de 1930, Chris iniciou os estudos de violino aos sete anos, passando para o trombone aos dezoito e, em 1949, forma sua primeira banda de Dixieland. Entre 1951 e 1954, Chris frequenta a Guildhall School of Music, em Londres, onde estuda trombone e contrabaixo. Nesse período, forma um quinteto e, com a chegada do trompetista Pat Halcox, um sexteto, com o qual se apresenta no Club Creole, também na capital inglesa.

Em 1953, Pat Halcox é substituído por Ken Colyer, talvez o mais importante divulgador do jazz tradicional na Inglaterra. No ano seguinte, com a saída de Colyer, Halcox retorna ao sexteto que, em pouco tempo, alcança grande popularidade e é reconhecido pela crítica especializada como um dos melhores conjuntos de Dixieland da Inglaterra. Em 1954, a cantora Ottilie Patterson passa a integrar a banda e, em 1959, casa-se com Chris, união que duraria até 1983, quando se divorciam. Na década de 1960, com o revival do jazz tradicional na Europa, a banda de Chris tem suas forças revigoradas, além de aproximar-se de outros estilos, como o Swing, o blues e o ragtime. São memoráveis seus encontros com grandes mestres norte-americanos, como Muddy Waters, Sonny Terry, Brownie McGhee, Albert Nicholas, Sidney De Paris, Edmond Hall, Hank Duncan, Russell Procope, Wild Bill Davis e Louis Jordan.



Também o rock e a música clássica são investigados por Chris, músico que já atuou ao lado de lendas como Eric Clapton, Mark Knopfler e Dr. John, além de compor um concerto para trombone e orquestra e gravar como solista com a London Gabrieli Brass. Enfim, um músico comparável ao vinho Château Latour: quanto mais velho, melhor! Nas faixas acima você ouve C Jam Blues (com Albert Nicholas), The Sunny Side of The Street (com Jools Holland), Ragtime Piece (com Mark Knopfler) e Do Lord, Do Remember Me (com Ottilie Patterson, Sonny Terry e Howard McGhee). Quem gostar, plante uma árvore.

28/04/2011

Go, Boy, Go - Frankie "Sugar Chile" Robinson

Mulheres têm que ter mãos grandes e crianças têm que brincar, era assim que eu costumava pensar até conhecer Frankie "Sugar Chile" Robinson, um piralho que começou a tocar piano antes mesmo de conseguir alcançar o teclado do instrumento. Nascido em 1938, em Detroit, foi o primeiro de sete filhos de Clarence e Elizabeth Robinson. Ainda criança, torna-se um viciado em cubos de açúcar, aplicados pela mãe para acalmar a peste - veja os olhos do moleque na foto ao lado - recebendo, assim, o doce apelido. Segundo o insuspeito depoimento do pai, Frankie já tocava algumas músicas aos dois anos, mas o certo é que aos sete já reproduzia qualquer coisa que ouvisse no rádio e  vence um concurso de talentos no Michigan Theatre.  Nessa época, conhece Lionel Hampton, que o convida para acompanhá-lo em suas turnês, o que não acontece em função da legislação trabalhista  em vigor. Contudo, chega a se apresentar com Hampton numa transmissão de rádio das Forças Armadas, tornando-se conhecido para o grande público. Ainda em 1945, parte para Hollywood, onde gravaria Caldonia, grande sucesso de Louis Jordan, para o filme No Leave, No Love. O convite para assinar um contrato de longa duração com a MGM é recusado pelo pai, o que não impede que sua fama chegue a Washington, onde é convidado a tocar para o presidente Harry Truman. Aproveitando a viagem, Sugar apresenta-se no Regal Theater, em Chicago, chegando a contratar Sammy Davis Jr. e Dorothy Dandridge como figurantes.

Em 1946, o faturamento de Sugar alcança os US$148,000.00, nada mal para um menino de oito anos de idade trabalhando em plena Segunda Guerra Mundial. Em 1949, Sugar assina seu primeiro contrato, com a Capitol. Sua primeira gravação, Numbers Boogie, conta com a participação do contrabaixista Leonard Bibbs e do baterista Zutty Singleton, alcançando o quarto lugar na Billboard. Daí para frente, mesmo com uma voz pouco dotada, Sugar conquista o respeito do público e dos músicos, tocando com mestres como Count Basie e Billie Holiday. Além disso, apresenta-se em Cuba e na Inglaterra.

Muito velho para continuar a surpreender e muito novo para se estabelecer como artista, Sugar percebeu que sua infância já havia passado. Era hora de, ao menos, o adolescente investir nos estudos. Terminados com êxito os estudos regulares, obtém o PhD em psicologia na Universidade de Michigan, mantendo-se distante da música até 2003, quando faz curta apresentação. Em 2007, reaparece rapidamente em Detroit e na Europa.

Se hoje Sugar é conhecido pelos norte-americanos, não é por ter sido um menino prodígio que passou a infância sem brincar, tocando blues, mas sim por ter sua versão de Go, Boy, Go utilizada no comercial de roupas da Dockers, loja bastante popular naquele país. Para os amigos do blues, ficam a faixa Go, Boy, Go e dois vídeos, o primeiro com a gravação de Caldonia e o segundo com Count Basie. Go!





        

E, quanto às mulheres, que tenham ao menos uma mão grande ou, vá lá, duas pequenas.

09/12/2008

Edú é blue

Nosso amigo André Tandeta, músico e colaborador do CJUB, comparece pouco aqui no Jazzssen, mas, quando aparece, sempre traz luz e calor aos debates dos quais participa. Num de seus comentários mais recentes, André sustenta com todas as suas baquetas a valorosa colaboração de Edú, nosso correspondente Jazzseen em São Paulo. Segundo Tandeta, Edú é “um valoroso e excelente escriba” além de ser “um conhecedor de jazz” e possuir um “ótimo texto na língua pátria, simples, direto e, pelo visto, livre de certos cacoetes modernos”. Tandeta não apenas está certo, como também faz recordar imediatamente o centenário ensinamento XXVI do jesuíta espanhol Baltasar Gracián (1601-1658), que em sua obra A Arte da Prudência leciona: “Satisfazer-se mais com intenções que com extensões. A perfeição não consiste na quantidade, mas na qualidade. Tudo o que é muito bom sempre foi pouco e raro: o muito é descrédito. Mesmo entre os homens, os gigantes costumam ser os verdadeiros anões. Alguns avaliam os livros pela corpulência, como se escritos para exercitar mais os braços do que os engenhos. A extensão sozinha nunca pôde exceder a mediocridade, e essa é a praga dos homens universais: por quererem estar em tudo, estão em nada. A intensidade dá eminência, e é heróica se em matéria sublime”. Se Tandeta me lembrou Gracián, Gracián me lembra o primeiro encontro que tive com Angela Davis, professora de História da Consciência Negra na University of California, em Santa Cruz. Eu passeava com Bessie, a shar-pei negra de meu primo Juca, quando um chow-chow branco se insinuou saliente. Angela pediu desculpa levemente constrangida com a atitude viril de Daddy.
Enquanto eu sorria, Angela, confusa, deixou cair no gramado um volume de seu Blues Legacies and Black Feminism: Gertrude “Ma” Rainey, Bessie Smith and Billie Holiday. Gentilmente o recolhi e, ato contínuo, perguntei-lhe se era um bom livro, assomando que apreciava muito o blues. Entre tímida e aturdida, Angela confessou-me que era ela a autora e, assim sendo, preferia não manifestar sua opinião. Sorrimos os dois, seguindo pelo gramado do condomínio enquanto trocávamos algumas idéias acerca do blues. Angela reportou que sua releitura do blues clássico trouxe novas perspectivas para esse gênero que sempre foi considerado estéril como música de protesto. Nas páginas 95 (first Vintage Books edition, 1999) e seguintes, Angela faz uma interessante análise paralela de dois blues: Poor Man’s Blues e Washwoman’s Blues, concluindo que Bessie Smith não sofria de nenhuma apatia política como fora tantas vezes acusada, mas apresentava, sim, suas manifestações de protesto quanto às condições de vida do afro-americano e, especialmente, da mulher negra norte-americana que, após a libertação dos escravos, estava condenada a lavar roupa, cozinhar e encerar chão para patrões brancos, além de servir sexualmente a seus violentos maridos. Angela, em seu livro, não se limitou à uma análise estritamente semântica ou sintática das letras cruas, nem tampouco às melodias e aos músicos que a acompanhavam, mas demonstrou de forma inteligente e clara que o blues clássico, com toda a sua simplicidade e objetividade aparente, possuía aquele grau de ironia, conteúdo e qualidade de que nos fala Tandeta e Gracián. Enquanto o amigo Edú não compõe um blues, ficamos com I’m Wild About That Man , com Bessie Smith - a voz mais negra da noite mais profunda, Clarence Williams (p) e Eddie Lang (g), gravada em 1929. A perspicaz escritora, além de traçar com clareza a linha de continuidade entre o blues clássico, o jazz, o rhythm and blues, o funk e o hap, retirando das ingênuas entrelinhas do blues rural do sul e do blues urbano do norte os temperos de protesto, ainda traz todas as letras das canções de Gertrude e Bessie, dificilmente encontradas em outras fontes. Thank you Angela Yvonne Davis. Ou seria a voz mais profunda da noite mais negra? Só mesmo mestre Edú para nos esclarecer.

10/09/2007

Vovô Acácio em Paris

Meu primeiro contato com o jazz foi através dos velhos lp’s 78rpm de vovô Acácio. Além das belas capas de seus álbuns bem conservados, que sempre estavam tocando, eu adorava suas estórias, precisas e muito divertidas. Uma das que me lembro com maiores detalhes foi a de sua primeira viagem à Paris, em fevereiro de 1953. Eu a ouvi sentada atentamente em sua generosa cadeira de couro envelhecido e cheiroso, e foi assim. Vovô, ao desembarcar, nem quis ouvir falar de Louvre ou de exposição de Picasso. Sem deixar sua pequena mala no hotel, partiu direto do aeroporto para o Vieux-Colombier, onde se apresentava Sidney Bechet, segundo vovô o primeiro grande mestre do clarinete e do sax soprano do jazz. Ele havia nascido em 1897, em New Orleans, informava vovô com orgulho nos lábios. Naquela noite Bechet se apresentava acompanhado pela orquestra de Claude Luter, um dos muitos músicos franceses apaixonados pelo jazz. A casa era pequena, mas os preços eram proporcionais. Vovô ficou impressionado pela aparência jovem de Sidney, embora já contando com seus 56 anos de estrada esburacada. Impressionou-se também pela paixão dos músicos da orquestra de Luter, que tocavam com muita vibração e alegria, ao contrário dos músicos brasileiros, que tocavam e liam gibi ao mesmo tempo. Vovô Acácio dizia que nunca se esqueceria daquele ataque fabuloso, repleto de vibratos estremecedores, sustentado por um volume de som impensável. Ao todo foram seis números: Muskat Ramble, Wild Man Blues, I Found a New Baby, Jazz in Blues, Sister Kate e Milenberg Joys. Vovô sentiu-se no céu!

Mais tarde, em outra noite abençoada, dessa vez no Metro-Jazz, encontraria Big Bill Broonzy, segundo vovô o maior cantor de blues vivo naquele tempo. Acompanhado apenas por sua guitarra, o cantor ficou surpreso quando vovô lhe pediu que cantasse Blues in 1890. Atendeu ao pedido, mas depois correu lentamente até a mesa para conferir que tipo estranho era aquele e de onde vinha. Vovô disse que era do Brasil, e um largo sorriso se abriu no rosto de Big Bill, que logo se sentou à mesa e aceitou uma dose gentil de uísque. Enquanto isso, subia ao palco uma mulata gorda, que vovô reconheceu tratar-se de Lil Armstrong. Ao piano seu estilo havia mudado completamente desde os tempos dos Hot Five e Hot Seven de Louis, seu famoso ex-marido. Agora Lil tocava uma espécie de boogie woogie e cantava. Vovô, que sempre a chamara de Lil ‘Manitas de Piedra’ Armstrong, pede Perdido Street Blues, que ela havia composto por volta de 1922, quando King Oliver ensaiava suas primeiras gravações. Outra surpresa, outro uísque e logo vovô estava sentado com Big Bill de um lado e Lil do outro. Cumprimentando-a por Mrs. Armstrong, ela resmungou certo desconforto, alegando que Armstrong era apenas um de seus ex-maridos. Vovô corrige para Miss Hardin, mas nota que, lá fora, o letreiro na fachada escrevia Lil ARMSTRONG. Mudando de assunto e percebendo que a madrugada parisiense já perseguia seu destino gelado na neve, surge na porta Sidney com seu pequeno estojo de soprano. Após vários convites, sobe ao palco e começa uma jam com Lil e Big Bill. Por uma dessas obras maravilhosas da tecnologia, vovô registra em seu velho Mohawk Recorder o tema Really the Blues. A noite não poderia ter sido melhor, poderia? Um beijo pra todos e até a próxima!

Sidney - Really Th...

19/08/2007

Jeova and the boogie woogie flu

Antes preciso agradecer ao amigo John Lester pelo convite para escrever no Jazzseen. Agradecer porque ele sabe que minha praia é mais o blues. Mas se é verdade o que Lester sempre diz, que blues também é jazz, então tudo terminará bem. Minha primeira resenha acabou resultando inflacionada pela vontade enorme de escrever sobre muitas coisas ao mesmo tempo. É que eu precisava falar de New Orleans, cidade de onde brotou o jazz - mas que não foi o berço do blues. Precisava falar também de alguns guias de blues, e, ainda, sobre o imenso poder da fé das Testemunhas de Jeová. Dos guias, sempre acabo me socorrendo no All Music Guide To The Blues (tenho a primeira edição, de 1996, e a terceira, bastante aumentada, de 2003, com suas generosas 755 páginas). Devo prestar tributo também ao meu primeiro guia de blues: Blues, Da Lama à Fama, de 1995, muito bem escrito por Roberto Muggiati. Recomendaria sem receio a boa Encyclopedia Of The Blues, do francês Gérard Herzhaft, publicada em inglês em 1997 pela Universidade de Arkansas. Outro bom guia, embora voltado para leitores mais específicos, é Blues For Dummies, lançado em 1998 pela IDG Books. Bem, é lá na página 511 do All Music que você encontra o verbete sobre Huey 'Piano' Smith, um dos melhores e mais bem humorados pianistas de New Orleans - veja: seu maior sucesso foi Rockin' Pneumonia And The Boogie Woogie Flu. Se você tem curiosidade em saber que tipo de música rola pelas madrugadas de New Orleans, o álbum Having A Good Time (pw bluesandrhythm.blogspot.com) pode ser uma excelente idéia. Entre os formidáveis solos de Huey você encontra solos rascantes de sax, coros de meninas, mãos batendo palmas e muita diversão. O álbum foi gravado em 1958 para a Ace Records. Na década de 1970 Huey foi convertido em Testemunha de Jeová e nunca mais fez sua alegre música. É aquela velha máxima contida no Evangelho de Mateus (6, 24): nemo potest duobus dominis servire, ou seja: ninguém pode servir a dois senhores ou, como sempre diz John Lester, ninguém pode andar de bicicleta e mascar chiclete ao mesmo tempo. Esse espisódio famoso do Sermão da Montanha também aparece em Lucas (16, 13) e no excelente Liber Proverbiorum de Pseudo-Beda. Recomendo essas edificantes leituras enquanto ouvimos o álbum de Huey. Um abraço e até a próxima!

O tal do blues

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Lonnie Johnson - Compre sem medo

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Todo livro sobre jazz fala sobre blues. A maioria dos escritores, não sendo geralmente músicos, limita-se a tentar nos enrolar tecendo comentários sobre doloridas lágrimas africanas, o sofrimento, a ira e a melancolia da alma núbia escravizada. Citam depoimentos atônitos daqueles que ouviram gritos indiscerníveis que sobrevoavam campos esquecidos de algodão. Também nunca faltam referências à humilhação e ao ódio sofrido pelo povo colorido: alguns negros, em busca de libertação, suicidavam-se. Outros cantavam orações em igrejas ou clamavam por alívio ao voodoo. Outros simplesmente cantavam o blues. Alguns escribas, quando também músicos, tentam nos explicar (ou talvez confundir) dizendo que o blues é uma forma musical, composta quase sempre de 12 compassos, onde é freqüente o uso das chamadas blue notes, notas musicais instáveis que não se enquadram no temperamento usual dos 12 semitons legados por Bach. Para o desorientado leigo basta dizer que o bluesman, ao invés de utilizar as velhas e conhecidas notas DÓ RÉ MI FÁ SOL LÁ SI, passa a utilizar as notas DÓ, RÉ, MI BEMOL, MI, FÁ, SOL BEMOL, SOL, LÁ, SI BEMOL, SI. O terceiro grau blue (mi bemol) tem função exclusivamente melódica, dando aquele tom deprimente e melancólico a certas passagens do blues. O sétimo grau blue (si bemol) cumpre uma função melódica e harmônica, como que estabilizando o fraseado, além de ser bem menos sofrida que o terceiro grau. O quinto grau blue (sol bemol) é mais moderno e decorre da tendência dos músicos de jazz ao abaixamento da quinta (bemolizando a nota). Como nos esclarece brilhantemente Christian Bellest:

Enquanto o terceiro grau blue associa-se melodicamente à tônica e o sétimo grau blue à dominante sem intermediário, o quinto grau blue parece requerer, para sua resolução, um trânsito pela nota de passagem do sexto grau, a subdominante. Nota forte da escala, esse quarto grau tende, por sua vez, a resolver na fundamental (dó) através da terça maior ou, com mais frequência, menor.
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Entendeu agora ?
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A figura abaixo deixa claro que sempre que o quinto grau blue é utilizado como nota de ligação entre a subdominate e a terça fundamental aumentada, toda a estrutura mixolídica tende a interromper a sequência melódica determinada pela quinta diminuta, resolvendo-se ora pela aproximação da tônica de terceiro grau ou, em certos casos, afastando-se do modo dórico, opta pela atração da quarta diminuta acrescida de meio tom em relação à sexta aumentada:



Ou seja, nenhuma pessoa normal entende exatamente o que é o blues. Por isso, nada melhor para o leigo que apenas ouví-lo. Fazer como o não iniciado que, mesmo sem entender os cálculos matemáticos que o levam à Lua, limita-se a entrar na nave e verificar que, de fato, a Terra é azul.

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Uma coletânea bastante interessante de Lonnie, cobrindo o período de 1925 a 1932, é Playing With The Strings, onde encontramos vinte e quatro faixas com grandes acompanhantes, entre eles Louis Armstrong, Duke Ellington, Eddie Lang, Clarence Willians, Kid Ory e muitos outros. PW bluestown.


29/08/2006

Blues também é jazz

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Dizem que T-Bone Walker foi o mestre de todos os grandes guitarristas do blues moderno. De BB King em diante, não há quem negue a imensa influência pioneira de T-Bone. Já em 1929 ele realiza suas primeiras gravações, que logo passariam a orientar o som da guitarra elétrica no blues e, mais tarde, nas décadas de 1940 e 1950, serviriam de base para o fortalecimento do elemento blues no west coast, estilo do jazz até então bastante distante do blues. A revolução que T-Bone realizou no blues pode, e deve, ser comparada à que seu contemporâneo Charlie Christian realizou no jazz, com seus respectivos estilos fluidos e repletos de riffs que seriam copiados por todos os demais guitarristas posteriores. Aos amigos navegantes, deixo duas faixas gravadas por T-Bone em 1947, com Teddy Buckner (t), Bumps Myers (ts) e Oscar Lee Bradley (d). Infelizmente não pude identificar o pianista e o baixista que acompanham Mr. T. Caso algum argonauta os conheça, favor nos informar. O Gramophone Jazzseen fica logo acima. Boa audição!

01/06/2006

Rondando ao derredor do blues

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Em 1794 o francês Xavier De Maistre escrevia seu livro Viagem Ao Redor Do Meu Quarto (Ed. Mercado Aberto), onde fazia cada recanto do cômodo nos remeter a lugares imaginários. Ótima opção para brasileiros pobres ou internautas tarados. Ou, ainda, para miseráveis que, como eu, duzentos anos depois de De Maistre, cá estamos, viajando através do mundo a partir de nosso computador. Lembrando que dinheiro não traz felicidade e desconsideradas as terríveis dores no pescoço, pernas, costas e glúteos, fincamos pés virtuais em terras distantes de nossos quartos e inalcançáveis para nossos bolsos. Damos um pulo no Village, em New York, e olhamos toda aquela maravilhosa programação a que nunca poderemos assistir. Depois esticamos até a New Orleans da gripe espanhola, onde toda a família do guitarrista Lonnie Johnson morreu em 1915, com exceção de um de seus 12 irmãos.
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Menina levada do Storyville com gripe - 1912 - Bellocq
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Alonzo Johnson (?-1970) nasceu obviamente em New Orleans, numa família de músicos. Logo cedo aprendeu o violão e o violino. Após tocar em bares, bordéis e navios pelo rio Mississipi, viaja pelo mundo: aos dezessete anos parte para Londres, depois New York, Chicago e qualquer outra cidade onde um negro pudesse ganhar algumas moedas fazendo música. Na década de 20 tocou com astros como Eddie Lang, Louis Armstrong, Duke Ellington e Bessie Smith que, segundo as más línguas, teria levado uns pitacos do guitarrista. Os dois grandes problemas de Lonnie eram: primeiro ser um gênio negro da guitarra, inventor do solo desse instrumento no blues e no jazz, estando muito além de qualquer guitarrista de sua época, deixando um legado que influenciou Charlie Christian, Django Reinhardt, T-Bone Walker e B B King. Até mesmo Robert Johnson usava esse sobrenome para ser confundido como irmão de Lonnie. O segundo grande problema de Lonnie era não ser um negrinho engraçado e brincalhão. Lonnie Johnson era um homem educado, consciente de sua condição, nascido e criado numa grande cidade, onde os absurdos raciais eram denunciados e questionados por homens como ele. O próprio público negro afastou-se de sua música elaborada e inteligente, fazendo com que Lonnie fosse trabalhar como porteiro de Hotel.

Lonnie Johnson, que Roberto Muggiati chama de O Poeta do Blues
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Na década de 50 intelectuais brancos resolveram fazer o merecido resgate de Lonnie, levando-o para os estúdios e nos brindando com gravações que demonstram porque Lonnie é considerado o gênio do blues que revolucionou a guitarra do jazz. Os estudiosos do blues podem preferir aquelas obras mais autênticas, gravadas entre as décadas de 20 e 40. Para quem não curte chiados e tic-tacs, recomendo com ênfase o cd abaixo, com excelente som, gravado em 1960.
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Blues, Ballads, and Jumpin' Jazz, Vol. 2 - Bluesville - 1960


30/05/2006

O tal do blues

Lonnie: Compre sem medo

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Todo livro sobre jazz fala sobre blues. A maioria dos escritores, não sendo geralmente músicos, limita-se a tentar nos enrolar tecendo comentários sobre doloridas lágrimas africanas, o sofrimento, a ira e a melancolia da alma núbia escravizada. Citam depoimentos atônitos daqueles que ouviram gritos indiscerníveis que sobrevoavam campos esquecidos de algodão. Também nunca faltam referências à humilhação e ao ódio sofrido pelo povo colorido: alguns negros, em busca de libertação, suicidavam-se. Outros cantavam orações em igrejas ou clamavam por alívio ao voodoo. Outros simplesmente cantavam o blues. Alguns escribas, quando também músicos, tentam nos explicar (ou talvez confundir) dizendo que o blues é uma forma musical, composta quase sempre de 12 compassos, onde é freqüente o uso das chamadas blue notes, notas musicais instáveis que não se enquadram no temperamento usual dos 12 semitons legados por Bach. Para o desorientado leigo basta dizer que o bluesman, ao invés de utilizar as velhas e conhecidas notas DÓ RÉ MI FÁ SOL LÁ SI, passa a utilizar as notas DÓ, RÉ, MI BEMOL, MI, FÁ, SOL BEMOL, SOL, LÁ, SI BEMOL, SI. O terceiro grau blue (mi bemol) tem função exclusivamente melódica, dando aquele tom deprimente e melancólico a certas passagens do blues. O sétimo grau blue (si bemol) cumpre uma função melódica e harmônica, como que estabilizando o fraseado, além de ser bem menos sofrida que o terceiro grau. O quinto grau blue (sol bemol) é mais moderno e decorre da tendência dos músicos de jazz ao abaixamento da quinta (bemolizando a nota). Como nos esclarece brilhantemente Christian Bellest:

Enquanto o terceiro grau blue associa-se melodicamente à tônica e o sétimo grau blue à dominante sem intermediário, o quinto grau blue parece requerer, para sua resolução, um trânsito pela nota de passagem do sexto grau, a subdominante. Nota forte da escala, esse quarto grau tende, por sua vez, a resolver na fundamental (dó) através da terça maior ou, com mais frequência, menor.
Entendeu agora ?


A figura abaixo deixa claro que sempre que o quinto grau blue é utilizado como nota de ligação entre a subdominate e a terça fundamental aumentada, toda a estrutura mixolídica tende a interromper a sequência melódica determinada pela quinta diminuta, resolvendo-se ora pela aproximação da tônica de terceiro grau ou, em certos casos, afastando-se do modo dórico, opta pela atração da quarta diminuta acrescida de meio tom em relação à sexta aumentada:
Ou seja, nenhuma pessoa normal entende exatamente o que é o blues. Por isso, nada melhor para o leigo que apenas ouví-lo. Fazer como o não iniciado que, mesmo sem entender os cálculos matemáticos que o levam à Lua, limita-se a entrar na nave e verificar que, de fato, a Terra é azul.
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