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31/01/2011

Taras - Michel Donato & Guillaume Bouchard

Certa vez meu amigo John Lester comentou que, de todas as taras sexuais, a que mais lhe causava ojeriza era a abstinência. Tem coisa mais nojenta que o celibato, perguntava-me Lester enquanto engolia ostras vivas e sorvia uma bela taça de La Gitana, um espetacular manzanilla produzido pela bodega Hidalgo, localizada na úmida cidade de Sanlúcar de Barrameda, na região de Jerez. Sim, Jerez, além de ser um dos vinhos mais importantes do mundo, somente comparável em complexidade ao Champanhe e ao Porto, é também uma região da Andaluzia, minha terra natal. Nascido em Cádiz, ainda criança aprendi a ser homem, ou seja, gostar de touradas, dançar flamenco, fumar charuto e ingerir jerez que minha avó embebia no pão. Depois vieram outras diversões menores, como os cavalos e as mulheres andaluzes, os primeiros com suas crinas imensas, as segundas com seus buços fartos, talvez pela proximidade com Portugal, vai saber. Estávamos na Casa Bigote, na praia de Bajo de Guía, onde se pode comer os melhores gambas al ajillo (camarões ao alho) do mundo. Estávamos ali para que Lester compreendesse melhor o labiríntico processo de produção do jerez, elaborado mediante um sistema denominado solera, que consiste em fileiras de velhos barris sobrepostos. Normalmente, a solera possui uma pilha formada de quatro ou cinco fileiras e os barris são de carvalho americano, com capacidade para 600 litros cada um. Cada vez que se retira o vinho pronto dos barris da fileira mais baixa, esta recebe o vinho contido nos barris da fileira imediatamente superior e assim sucessivamente, até que o vinho mais novo é colocado nos barris da fileira mais alta. Como, em média, os barris da solera têm mais de cem anos e considerando que nenhum deles jamais é esvaziado completamente, é impossível determinar a idade exata de um jerez, uma vez que é produzido por uma complexa mistura de vinhos com idades diversas. Sabe-se apenas que o jerez é produzido somente a partir de uvas brancas, sendo a mais importante delas a Palomino. O vinho novo, aquele que será colocado na fileira superior da solera, é feito normalmente, exatamente como se produz vinhos brancos: após esmagadas as uvas, o mosto é colocado para fermentar em tanques de cimento ou de aço inoxidável. Depois de ser fortificado com aguardente de uva, o vinho é colocado em barris separados por cerca de um ou dois anos, para que adquira complexidade. Este é o vinho novo, conhecido como añada (vinho do ano), pronto para ser colocado na fileira mais alta da solera. Quando Lester ameaça perguntar sobre os vários tipos de vinho jerez, chega nossa deliciosa porção de angulas, diminutas enguias brancas, do tamanho de palitos de fósforo, salteadas no azeite fervente e alho. Uma iguaria, murmurava Lester.

Solicitamos então uma botija de Inocente, um fino produzido pela Bodega Valdespino e famoso pelo acentuado aroma de musgo, e prosseguimos: há diversos tipos de jerez, desde os do tipo fino, que são leves, secos e vivos, até os do tipo oloroso, que são encorpados, mais escuros, com sabor sabendo a nozes e, em alguns casos, doces. Poderíamos citar ao menos sete tipos de jerez: manzanilla, fino, amontillado, palo cortado, oloroso, cream sherry e Pedro Ximénez. Diante disso, decidimos visitar uma bodega, onde Lester efetivamente participaria da produção de jerez, rolando barris (ver foto) e compreendendo melhor o papel da flor na definição de um jerez. A flor, expliquei a Lester, é uma levedura natural que se forma nos barris e quase sempre causa problemas ao vinho. Mas, na úmida região de Jerez, a flor beneficia a produção do tipo fino, alimentando-se dos açúcares, do óleo fúsel e outros resíduos, além de impedir o contato do vinho com o ar, evitando a oxidação. Assim, os barris que desenvolvem muita flor, vão para a solera de fino; os outros irão para a de oloroso. Quando já cansados e bêbados retornávamos para casa, o sempre inusitado Lester perguntou-me: amigo, qual a tara musical que mais lhe atormenta? Respondi de imediato: os duos de contrabaixo! Sei, aquiesceu Lester compreensivo, pedindo-me detalhes mais sórdidos. Contei-lhe que tudo começou com o álbum Oscar Peterson And The Bassists, gravado ao vivo em Montreux em 1977 e lançado pelo selo Pablo Live. Com o pianista de mil dedos estavam Niels Pedersen e Ray Brown. Começava ali essa minha tara absurda, ainda que em forma de trio. Mais tarde experimentei algo similar, com o álbum Double Bass, de Niels Pedersen e Sam Jones, lançado pela SteepleChase em 1976. A sensação perdeu-se em virtude da presença de Philip Catherine na guitarra e , sobretudo, de Billy Higgins na bateria. Somente fui encontrar o que desejava realmente no álbum Happy Blue, de Michel Donato e Guillaume Bouchard, lançado em 2007 pelo selo Zig Zag Territories. Era isso! Um álbum de jazz com apenas dois contrabaixistas! 

Michel Donato nasceu em Montreal, no dia 25 de agosto de 1942, no seio de uma família musical. Seu avô tocava violino, o pai saxofone, flauta e piano e o tio contrabaixo. Aos dez anos, inicia por conta própria os estudos de acordeão, passando para o piano aos doze. Somente aos dezesseis volta-se para o contrabaixo, contrabass ou double bass, como dizem por aí. Durante os três anos de estudos formais na Academia de Música de Quebec, Donato toca em alguns clubes de jazz com o pai. Depois, passa alguns meses estudando com a Orquestra Sinfônica de Montreal. Sua carreira profissional deslancha na década de 1960, quando chega a tocar com Art Blakey e Carmen McRae, além de atuar como músico de estúdio e integrar a orquestra da CBC em Montreal. Na década de 1970, visita os EUA, Europa, Ásia e Nova Zelândia, passando a integrar durante dois anos o trio de Oscar Peterson. De volta ao Canadá, Donato passa  a tocar em clubes, como o House Rhythm Section, em Toronto, e atuar como freelance em concertos e festivais, acompanhando músicos notáveis, como o pianista  Bill Evans. Como todo generoso mestre, passa a lecionar na McGill University e na Montreal University, mantendo-se até hoje em plena atividade, inclusive na produção de trilhas sonoras. Para os amigos fica a faixa Nuages , retirada do álbum Happy Blue.  Sonolento, Lester ainda chegou a resmungar: poderia ser pior meu velho; poderia ser um álbum de contrabaixo solo...



26/04/2010

A insuportável leveza do ser

Se John Lester não resolvesse comentar, eu nunca saberia que o terceiro país mais alto da Europa era a Espanha, minha terra natal. Seus 600m de altitude média são ultrapasssados somente por Suíça e Áustria que, vocês sabem, são países alpinos. E isso é bom para os vinhos, resmungava Lester enquanto caminhávamos pelas calcáreas trilhas de Montsant, região de Tarragona, vizinha do Priorato. Montsant está situada na Cataluña, sendo uma de suas DO (Denominación de Origen). Sim, na Espanha temos a seguinte classificação para os vinhos:

1) Vino de Mesa (VM), é o mais simples, equivalente ao Vin de Table francês - não pode indicar no rótulo safra nem uva; 2) Vino de la Tierra (VdlT), é um pouco melhor que o Vino de Mesa, mas sem guardar pretensões mais sérias de qualidade - equivale ao Vin de Pays francês; 3) Vino de Calidad con Indicación Geográfica (VCIG), terceiro degrau de qualidade, deve manter-se cinco anos nessa classificação para que possa reivindicar a DO - equivale ao Vin Delimité de Qualité Supérieure francês; 4) Denominación Específica (DE), invenção da legislação espanhola pouco utilizada na prática, baseada no método de produção, que deveria ser aplicada aos espumantes, tais como Cava e Granvás - atualmente, essa classificação não mais existe na legislação espanhola e todo Cava equivale a um DO; 5) Denominación de Origen (DO), abrange a maioria dos vinhos espanhóis de qualidade, sendo equivalente à italiana Denominazione di Origine Controllata; 6) Denominación de Origen Calificada (DOCa), honraria concedida a vinhos de qualidade excepcional, equivalente à italiana Denominazione di Origine Controllata e Garantita - somente Rioja e Priorato a detêm; 7) Denominación de Origen de Pago (DOP), outra invenção espanhola, destina-se a vinhos produzidos em pequenas propriedades, cujas características de clima e solo conferem personalidade única ao vinho ali produzido.

Pois bem. Paramos numa taberna simples e acolhedora da região, na expectativa de descansar e beber. Foi grande a surpresa quando percebemos que a música ambiente era Ted Curson. Animado, Lester resolveu abrir uma garrafa de Flor de Englora 2006, um belo corte com 63% de Red Grenache, 32% de Carignen, 2% de Merlot, 2% de Syrah e 1% de Ull d'llebre, produzido pela Cellers de Baronia, localizada em Montsant. Apesar do envelhecimento em inox, recebeu 92 pontos de Robert Parker, um confesso admirador do envelhecimento em barricas de carvalho, responsável em boa parte pelo potente estilo californiano. Enquanto apreciávamos o solo de Herb Bushler ao contrabaixo, Lester afirmou que certamente foram lançadas lascas de carvalho francês aos tanques de inox que acolheram o interessante vinho, prática que, embora seja condenada veementemente por alguns ortodoxos, inegavelmente concede caráter e timbre ao tinto espanhol de preço bastante honesto: R$50,00 na Casa Bonita. Mordiscando uma torrada encharcada em azeite nativo, Lester disse nunca compreender a crítica quando atribuía à música de Ted um caráter abstrato e incompreensível: trata-se, dizia Lester, de um Hard Bop da melhor qualidade, claro que com um tempero de liberdade e experimentação que, se não chega a Avant Garde propriamente dita, aproxima-se bastante do melhor jazz produzido na década de 1960, como, por exmplo, o de John Coltrane.

Ted Curson nasceu em 3 de junho de 1935, na Philadelphia. Aos 12 anos, já tocava em festas e, após algumas aulas com o saxofonista Jimmy Heath, parte para New York, onde trabalharia com excelentes músicos, entre eles Mal Waldron, Red Garland e Cecil Taylor. Entre 1959 e 1960, Ted integra o grupo de Charles Mingus, período em que atua ao lado de músicos como Eric Dolphy, Booker Ervin, Yusef Lateef e Joe Farrell. Em seguida, Ted forma seu próprio conjunto, ao lado do saxofonista Bill Barron, com quem grava Tears For Dolphy, em 1964. Após trabalhar com Max Roach, em 1965 Ted parte para a Europa, atuando na Dinamarca, França e Suíça, onde integra a orquestra Zurich's Playhouse. Na década de 1970, Ted divide-se entre Paris e New York, trabalhando com diversos músicos, entre eles Andrew Hill e Kenny Barron. Interessado na divulgação do jazz, Ted apresenta-se e participa de workshops em diversas universidades, entre elas a UCLA, a University of Vermont e a Vallekilde Music School, na Dinamarca. Além de apresentar um programa de rádio na década de 1980, Ted continua atuando e gravando, sempre com sua técnica impecável e seu fraseado veloz e complexo. Para os amigos fica a faixa East 6th Street, retirada do álbum Tears For Dolphy. Com ele estão Bill Barron (ts), Dick Berk (d) e Herb Bushler (b). Saúde!





12/06/2008

Stefan Karlsson

Ontem telefonei para o amigo Lester somente para lhe contar que o Blue Crow Trio estará mais uma vez no Bel Luna Jazz Club, trio e lugar que tivemos o prazer de conhecer em 2006, durante sua breve estadia em Barcelona. Como sempre arredio, Lester preferiu hospedar-se no bem localizado Jazz Hotel, a cerca de 150m do clube, ao invés de instalar-se em minha residência (ele sempre alega que não consegue dormir nem ir ao banheiro em casa alheia, ora, ora). Dessa vez, Joan Díaz (p), Nono Fernández (b) e Oriol Gonzàlez (d) contarão com a presença do trompetista Matthew Simon, um dos melhores instrumentistas da Europa. Bem, após falar sozinho por bem pagos quinze minutos, percebi um longo silêncio do outro lado da linha, sinal claro de que Lester estava contrariado. Em tom seco, o amigo perguntou: e o disco de Stefan Karlsson? Comprou? Ouviu? Realmente eu me havia esquecido de agradecer a recomendação de Lester quanto aos álbuns baratíssimos à venda na Amazon, entre eles o excelente Below Zero ( ), gravado em 1992 com Rufus Reid (b), Marvin "Smitty" Smith (d) e, na metade das faixas, com o saxofonista tenor Richard Perry. E tudo por US$1.00!!! E, de fato, Lester tinha razão quando disse lembrar de Bill Evans ao ouvir Karlsson: a mesma tensão delicada, a mesma inteligência contida, calculada, medida e, por contradição, extremamente melódica, sedutora e graciosa. É: Rogério Coimbra tem mesmo razão quando diz que Bill não tem paralelo e faz jus às homenagens de nosso amigo Francisco Grijó. Mas Karlsson é, com certeza, um grande discípulo. Abruptamente Lester me interrompe e pergunta: o álbum não vale cada dólar pago? Antes que eu pudesse responder, ele já havia desligado. Esse Lester...

24/04/2007

Pedro Iturralde: El jazz de España

Estive procurando discos de Hampton Hawes para melhor conhecer a sua obra e, por acaso, encontrei um que ele gravou como convidado do saxofonista espanhol Pedro Iturralde. Dizem que o disco foi gravado de madrugada num boteco qualquer do submundo espanhol (está explicitado na capa do disco, como propaganda - as jams têm aquela aura que todos querem apreciar).Confesso não conhecer nada do espanhol (aliás, da Espanha, só conheço Montoliu e Paco de Lucia), mas o camarada se mostrou com uma sonoridade clássica que me agradou. O disco, no entanto, é mediano (achei um pouco convencional demais para uma jam), mas vale uma conferida. Eu separei a primeira faixa - On Green Dolphin Street - para que vocês avaliem. Basta clicar sobre o nome da música (a senha você já sabe).


Deixarei, também, a breve biografia do saxofonista:

Pedro Iturralde (Falces, España), es uno de los músicos pioneros del jazz en España. Cursa la carrera de saxofón en el Conservatorio Superior de Música de Madrid, con dieciocho años, compaginándola con los estudios de clarinete, piano, violín y armonía.Tras una gira de ocho años por Europa, regresa a Madrid para actuar durante varios años en el "Whisky Jazz Club", con figuras como Donald Byrd, Lee Konitz, Hampton Hawes, Gerry Mulligan, o Tete Montoliú. En 1967, Joachim E. Berendt, le requiere para actuar con su sexteto (Paco de Lucía a la guitarra) en el Festival de Jazz de Berlín con el estreno de su más ambicioso proyecto musical "Flamenco Jazz". Actúa en Lugano y otros muchos festivales y para la Unión Europea de Radio con la "All Start Big-Band" en el "Playhouse Theatre" de Londres y en el "Palau" de Barcelona.
Habiendo sido elogiado en varias ocasiones en revistas especializadas y en "Down Beat", y siendo por lo tanto reconocida su labor en los EE.UU., el "Berldee College of Music" de Boston le ofrece una beca para que amplíe sus conocimientos jazzísticos. Estudia "Arranging" con Herb Pomeray y actúa con Gary Burton y varios grupos, así como con quinteto de la Facultad y con la "All Start Faculty Big-Band" en los conciertos "Doscientos años de Historia del Jazz en América". En numerosas ocasiones reúne una Big Band en Madrid, para presentaciones en TV y conciertos, y en el Teatro Español, para el homenaje a Federico García Lorca. Actúa para "Europalia-85" en el "Palais de Beux Arts" de Bruselas, y con la Orquesta Nacional de España en varias ciudades de Bélgica.


22/05/2006

Portugal na taça, Espanha no ouvido

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Outra noite estava eu dormindo e lendo o imenso livro A New History Of Jazz, de Alyn Shipton. Na taça ao lado, três dedos do bastante honesto Cabeça do Pote: um tinto 2001 das lusas Terras Durienses, encontrado por compreensíveis R$20,00 nos mercados de Vila Velha e cercanias. Acordando num susto lancinante ouvi a mulinha do e-mule berrar, com aquela sua assustadora voz de mula-robô: tranferido Tete Montoliu, The Music I Like To Play, Volume 1. Olhei desconfiado: piano solo ?

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Não esperava grande coisa de um pianista espanhol cego tocando jazz sem cozinha. Mas confesso a boa surpresa ao ouvir, entre uma ou duas dúzias de clichês da música erudita européia, um pianista cheio de excelente técnica e profundo swing. Se é que podemos fazer tal tipo de análise, ele me soou como uma espécie de Red Garland possuído pelo espírito de Bud Powell. Colorido, veloz e preciso sem perder a emoção.
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Passeando por clássicos populares, como Don't Smoke Anymore, Alone Together ou Whisper Not, Tete convence até aqueles que, como eu, não apreciam beber um tinto ao som de 50 intermináveis minutos de piano solo. Recomendo ambos, piano e livro, embora Shipton não faça qualquer referência ao grande pianista espanhol em suas quase mil páginas de boa história. Merecia ser citado.