Mostrando postagens com marcador Críticos. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Críticos. Mostrar todas as postagens

24/10/2010

Músicos de jazz morrem cedo: fato ou ficção?

Segundo o crítico Martin Lindsay [1] a bebida, as drogas, as mulheres e o excesso de trabalho, tornavam os músicos de jazz mais expostos à morte prematura que as demais profissões. Para Gunther Schuller [2] a carreira da ODJB (Original Dixieland Jazz Band) foi tão fantástica e típica quanto a de qualquer outra banda de jazz, com vida desregrada, alcoolismo e mortes prematuras. Já Whitney Balliett [3] afirma que a carreira de Big Sid Catlett (o famoso baterista morto aos 41 anos) foi sistematicamente marcada pelo sofrimento, mesmo para um músico de jazz, profissão cercada pela pobreza, obscuridade e morte prematura. Em que dados estes respeitados críticos se basearam para afirmar que os músicos de jazz morrem cedo?

Estudos estatísticos apresentados pelo Dr. Frederick Spencer [4], da Virginia Commonwealth University, indicam que todas as afirmações acima não passam de meras opiniões, formuladas não se sabe a partir de que fonte. O estudo, realizado com 86 músicos de jazz nascidos entre 1862 e 1938, demonstrou que 82% deles ultrapassaram suas expectativas de vida, considerando-se o ano de nascimento, o sexo e a cor de cada um deles. 75% dos músicos brancos, 80% dos músicos negros e 100% das mulheres ultrapassaram suas expectativas de vida, revelando que deve haver algo muito errado com o mito tão propalado de que os músicos de jazz morrem cedo.

Embora alguns estudiosos tenham criticado o estudo apresentado pelo Dr. Spencer, alegando que a amostra não seria adequadamente representativa, o fato é que a esmagadora maioria das afirmações feitas sobre o tema não se baseia em fontes ou dados confiáveis, nem em análises estatísticas, mas tão somente em temerárias ou apaixonadas opiniões pessoais.

O fato de o jazz ter nascido nos prostíbulos de New Orleans e ter passado a juventude nos bares clandestinos de Chicago, ou seja, em meio a muita violência, mulheres contaminadas e bebidas alcoólicas de péssima qualidade, fez com que se gerassem vários mitos, como os de que todo músico de jazz era um bêbado promíscuo, ou que levava uma vida desregrada, ou que trabalhava em excesso ou que morria jovem.
  
Tais mitos, alguns deles difundidos inclusive por críticos respeitados, em sua grande maioria não passam de impressões pontuais sobre determinados casos, deturpando a realidade mais ampla ou romantizando a vida e morte desses profissionais que, em geral, enfrentavam os mesmos problemas que os demais trabalhadores de seu tempo. Com o advento da internet, observamos uma amplificação considerável do número de bobagens que são repetidas por leigos e especialistas que, sem qualquer fundamento em dados fidedignos, fortalecem velhos mitos, chegando mesmo a criar novos. Exemplos notáveis são os livros de séries como “Dummies” e “Idiots”, recheados de inexatidões, como o The Complete Idiot’s Guide to Jazz, que traz informações incorretas sobre diversos músicos, chegando ao ponto de rebaixar o major Glenn Miller ao posto de capitão.

Alguns, além de serem inexatos, chegam a ser deselegantes, como o site que descreve o grande baterista Chick Webb como um anão corcunda inválido. Outros inovam na medicina, como a Encyclopedia Britannica, quando diz que a morte de Bix Beiderbeck é atribuída tecnicamente à pneumonia, mas na verdade o que o matou foi a frustração, o abandono e o desencanto! Se assim fosse, eu morreria instantaneamente ao assistir Lula ou Dilma falando suas mentiras e asneiras.

Em seu formidável livro Jazz and Death: Medical Profiles of Jazz Greats, o Dr. Spencer identifica uma longa série de incorreções ditas a respeito de famosos músicos de jazz, esclarecendo com base em farta documentação, inclusive atestados de óbito, as verdadeiras causas de suas enfermidades e as verdadeiras condições de suas mortes. Além disso, discorre sobre diversos músicos com distúrbios psiquiátricos e dependência química, demonstrando que, ao contrário do que os padres e as mães dizem, a droga podia sim, em alguns casos, influenciar positivamente na criatividade e na performance dos músicos.

Obra essencial para o estudioso que, como diria Frank Zappa, sabe que o jazz não está morto. Ele só está com um cheiro estranho.

 

[1] Lindsay M: Teach Yourself Jazz. London: English Universities Press, 1958, página 2.
[2] Schuller G: Early Jazz. Its Roots and Musical Development. NewYork: Oxford University Press, 1968, página 176.
[3] Balliett W: The Sound of Surprise. New York: Da Capo Press, 1978, página 144.
[4] American Journal of Public Health. June 1991, Vol. 81, Nº 6, páginas 804 e 805.

18/09/2010

The Blindfold Tests

E, falando em ingleses, diz a lenda que foi Leonard Feather quem inventou o Blindfold Test, expressão que poderia ser traduzida como teste às cegas ou teste com os olhos vendados. E não me venham questionar porque Leonard vendava seus convidados, questão que certamente jamais será esclarecida, exceto por sua carga dramática. O certo é que várias pessoas e músicos famosos foram desafiados a identificar quem estava tocando, sem receber nenhuma informação sobre o tema, o compositor, o arranjador e, obviamente, os executantes. Os blindfold tests foram elaborados por Leonard na década de 1940, quando escrevia para as revistas Metronome e Esquire, além de  serem apresentados semanalmente em seu programa de rádio, o Platterbrians. Surpreendentemente, eram raros os convidados que acertavam os nomes dos executantes: boa notícia para aqueles que possuem dificuldades em distinguir um saxofone de um trompete. Nessas ocasiões, sempre surgiam situações curiosas, como foi o caso do trompetista Roy Eldridge, que disse a Leonard ser capaz de identificar a cor do músico apenas ouvindo-o tocar. Bizarro também foi a venda colocada em Lennie Tristano, um dos maiores pianistas do jazz, absolutamente cego. As regras eram rígidas e iguais para todos.  Na verdade, a grande maioria dos convidados limitava-se a avaliar a execução, fornecendo-lhe notas de 1 a 4 estrelas, processo em que se podia verificar que muito do sucesso de um músico não estava associado única e exclusivamente ao seu valor musical, mas à moda, à preferência pessoal e ao marketing.

Este foi o caso da primeira convidada de Leonard, a pianista Mary Lou Williams (na foto de Zin Arthur, publicada na Metronome em 1946, com Leonard), instrumentista, compositora e arranjadora renomada que, na ocasião, confessou que não apreciava o estilo Dixieland e fez as seguintes observações sobre as execuções que lhe foram apresentadas:

01 - Benny Goodman. Blue Skies (Columbia), com Art Lund, vocal – Bom clarinetista; banda agradável; o cantor não possui voz adequada para o improviso – 2 estrelas.
02 - Johnny Guarnieri. Salute to Fats (Savoy). Guarnieri, piano; Lester Young, sax tenor; Billy Butterfield, trompete; Hank d’Amico, clarinete; Cozy Cole, bateria – O pianista lembra Fats; tem uma técnica maravilhosa, mas seu estilo parece uma imitação; o saxofonista é excelente, já o trompetista não é lá essas coisas. Gostei – 3 estrelas.
03 - Sir Charles Thompson. The Street Beat (Apollo). Thompson, piano; Buck Clayton, trompete; Charlie Parker, sax alto; Dexter Gordon, sax tenor; J. C. Heard, bateria - Bom sax alto, Charlie Parker é claro; bom trompetista; bom sax tenor; bom arranjo; boa seção rítmica; o pianista sola como Count Basie – 3 estrelas.
04 - Woody Herman Orquestra. Northwest Passage (Columbia). Ralph Burns, piano; Marge Hyams, vibrafone; Flip Phillips, sax tenor – É assim que eu gosto de ouvir uma banda tocando! Pianista muito bom; bom vibrafonista; saxofone tenor excelente. O arranjo não tem nada de extraordinário, mas é bom. Balanço maravilhoso – 4 estrelas.
05 - Art Hodes’ Jazzmen. Sugar Foot Stomp (Blue Note). Hodes, piano; Vic Dickenson, trombone; Maxie Kaminsky, trompete; Ed Hall, clarinete; Sid Weiss, contrabaixo; Danny Alvin, bateria – O trombonista é Vic Dickenson. O que ele está fazendo aqui? É uma pena ouvir bons músicos tocando Dixieland! O clarinetista é Ed Hall. O trompetista lembra Louis Armstrong há vinte anos atrás. Baterista e contrabaixista bons. Já ouvi pianistas de Dixieland melhores. Não gosto do tema – 2 estrelas.
06 - Barney Bigard. Blues Before Dawn (Black and White). Bigard, clarinete; Georgie Auld, sax alto; Joe Thomas, trompete - Esplêndida introdução. Trompetista maravilhoso, com bom gosto e idéias originais; bom saxofonista, lembra Johnny Hodges. O clarinetista parece ter saído da banda de Ellington – 3 estrelas.
07 - Jelly Roll Morton Red Hot Pepper (Victor). Morton, piano - Tem alguém tocando tuba aí? Eu não reconheço isso, mas deve ser alguma gravação da década de 1920. Os solos são até bons para a época, mas não há nenhum balanço; não sei como as pessoas conseguiam dançar ouvindo isso. Nenhuma estrela.
08 – Nat King Cole Trio. Body and Soul (Capitol). Cole, piano; Oscar Moore, guitarra; Johnny Miller, contrabaixo – Nat King Cole, ele é grande; está aí um tipo de música que todos deveriam ouvir. Bom gosto, com balanço. E a música conta uma história. Uma das melhores versões que já ouvi e, ainda que o pianista não seja o Nat, continuo achando tudo perfeito - 4 estrelas.
09 - James P. Johnson. Blueberry Rhyme (Signature). Piano Solo – Parece um piano mecânico, como um daqueles piano rolls. Não há liberdade e a composição parece ter sido escrita errada - 2 estrelas.
10 - Dizzy Gillespie Be-Bop (Manor). Gillespie, trompete; Don Byas, sax tenor; Shelly Manne, bateria – Bom arranjo, mas parece não haver sintonia entre os músicos. O trompetista parece Dizzy, bom. O saxofonista é Don Byas, ele pode tocar em qualquer estilo. O baterista lembra Max Roach. Gosto mais da idéia da gravação do que da execução – 3 estrelas.
11 - Boyd Raeburn Orquestra. Yerxa (Jewel). George Handy, arranjador; Hal McKusick, sax alto – Eles parecem desafinados. Talvez seja um arranjo experimental, mas parecem estar tocando errado. O som lembra um pouco a banda de Ellington. Bom saxofonista – 2 estrelas.
12 - Harry James Orquestra. When Your Lover Has Gone (Columbia). James, trompete; Corky Corcoran, sax tenor – Melhor gravação que já ouvi de Harry James em muitos anos. Solo com muito bom gosto. Banda e arranjos bons. O saxofonista também é grande – 4 estrelas
13 - Bunk Johnson Band. When the Saints Go Marching In (Victor). (Recorded 1945) – Não sei o que dizer. Não aprecio pessoas que tocam uma música feita há quarenta anos atrás. Deve ser apenas para ganhar dinheiro. E os solos nem mesmo são bons para este estilo. Musicalidade? Não ouvi nenhuma.

Para os amigos, apenas como aperitivo, deixo a seguinte faixa . O primeiro leitor (ou seria ouvinte?) que acertar quem é o saxofonista receberá gratuitamente o álbum completo, original e lacrado em seu endereço, sem qualquer custo de frete. Peço apenas que o teste seja realizado com os olhos vendados. Boa sorte!


29/03/2010

Livro: Jazz ao seu alcance

Jazz ao alcance de todos? Sim, é isso mesmo, segundo Emerson Lopes: "O principal objetivo deste livro é desmitificar o jazz e mostrar que uma "pessoa normal" pode ter prazer em ouvir Miles Davis, Dizzy Gillespie, Duke Ellington e tantos outros mestres. O melhor exemplo para ilustrar isso é a minha própria experiência. Não sou músico, não fui influenciado pelo amigo, irmão, pai ou mãe, não tive a revelação mais importante da minha vida ao ouvir este ou aquele tema de jazz, não bebo uísque ou fumo charuto, nunca chorei ao ouvir um solo de piano, sax ou trompete e muito menos quero parecer "cool" ou culto porque escuto jazz. O meu caso pode ser exceção, mas servirá para responder algumas questões e quebrar alguns tabus, entre eles, que o jazz é uma música difícil de ouvir e que apenas pessoas mais velhas e com mais instrução podem apreciá-la". São as palavras do autor, Emerson Lopes. Os interssados podem comprar seu exemplar na Livraria Cultura ou Multifoco Editora. Conheça um pouco mais sobre Emerson através da entrevista a seguir, concedida ao blog Jazz no país do improviso, em 2007: Emerson Marques Lopes, jornalista há 10 anos, colaborador da revista Jazz + e autor do site Guia de Jazz. A sua ligação ao Jazz começou quando trabalhava na loja Mr. Music, no bairro dos Jardins, em São Paulo, e prolongou-se até à loja Musical Box, no bairro de Higienópolis, que está há 25 anos no mercado e já teve um dos melhores acervos de jazz e música clássica da cidade. Emerson está ligado a Portugal por laços familiares pois o seu pai e avôs maternos e paternos são portugueses.


JNPDI: Como está o panorama do Jazz no Brasil em termos de interesse do público, media, editoras? Tem aumentado ou diminuído?

Emerson Lopes: A música instrumental brasileira, o que podemos traduzir como jazz brasileiro, tem passado por um bom momento. É claro que ainda há grandes dificuldades, mas em comparação com a década passada já avançámos bastante. Hoje há mais espaço para os músicos se apresentarem ao vivo e um interesse maior do público. A Internet tem ajudado muito na divulgação de novos talentos e no acesso a instrumentistas que não têm espaço na grande mídia. Os veículos de comunicação ainda são um problema. Não há espaço na televisão aberta para instrumentistas. A excepção é a TV educativa do Estado de São Paulo, a TV Cultura, que tem em sua programação programas como o Ensaio (programa que está há 30 anos no ar) , Sr. Brasil (programa que abre espaço para a música regional do Brasil) e Vila Minha Viola (programa que destaca os grandes nomes da música sertaneja do Brasil). O mesmo problema acontece com a mídia impressa. Há uma publicação especializada sobre jazz chamada Jazz+, da qual sou colaborador, e algumas revistas segmentadas para instrumentistas como a Sax & Metais, Guitar Cover e Acústico.

JNPDI: Qual é actualmente o evento/festival mais importante realizado em torno do Jazz em São Paulo?


EL: Sem dúvida o festival mais interessante na actualidade é o Tudo É Jazz, que acontece anualmente [desde 2002] na cidade de Ouro Preto, no Estado de Minas Gerais. O festival sempre traz atracções internacionais e na maioria das vezes jazzistas de vanguarda dos Estados Unidos e da Europa. Este ano, nomes como Madeleine Peyroux, Wallace Roney, Joshua Redman e Ingrid Jensen foram confirmados para a 6º edição do festival, em Setembro.

JNPDI: Existe literatura sobre a história do Jazz no Brasil?


EL: A literatura é pouca em língua portuguesa. É claro que temos grandes livrarias que vendem os principais livros editados nos Estados Unidos, mas há o problema do idioma. Em português, podemos destacar o livro Jazz: Das Raízes ao Pós-Bop, de Augusto Pellegrini, e Jazz Panorama, de Jorge Guinle.

Este ano foi lançado no Brasil o livro Kind of Blue – A História da Obra-prima de Miles Davis, de, Ashley Kahn. A mídia escrita deu grande destaque para o lançamento e o livro conseguiu uma boa vendagem em comparação com outros livros do mercado editorial brasileiro. Foi uma boa surpresa para todos nós que tentamos divulgar o jazz por aqui.



JNPDI: Como classificaria os preços dos discos de Jazz no Brasil? As vendas são boas? Quanto pode vender um disco de jazz de sucesso?

EL: As vendas de discos em geral estão baixas. Há muita pirataria no Brasil. Para você entender bem aqui vai um número assustador. A cada dois CDs vendidos no Brasil, um é pirata, ou seja, a pirataria representa 50% do mercado de disco do Brasil. Aliado a isto, os downloads pela Internet são outro problema difícil para ser combatido. Mas é importante dizer que um disco original no Brasil custa muito caro, em média 14 euros, o que é elevado para um país onde o salário mínimo é de 150 euros. Hoje em dia, um disco que vende bem chega no máximo a 100 mil cópias, o que é pouco em comparação há 10 anos, quando os campeões de vendas chegavam entre 600 mil e 1 milhão de cópias. Não há muitos discos de jazz lançados pelas gravadoras brasileiras. A maior parte do acervo de jazz que encontramos nas lojas são importados dos Estados Unidos.

JNPDI: Quem for a São Paulo em viagem onde pode ir ouvir bom Jazz ao vivo?

EL: O principal local é o Bourbon Street, que fica no bairro de Moema. O preço é um pouco caro, mas normalmente há bons shows. Os grandes jazzistas norte-americanos quando vêm ao Brasil sempre tocam no Bourbon.

Outro bom local para ouvir música instrumental brasileira é o Tom Jazz, que fica no bairro de Higienópolis, e o All Of Jazz, que fica no bairro do Itaim. Todas as três casas têm site na internet e estão indicadas no meu site ao lado de outros endereços.


JNPDI: Que informação chega ao Brasil sobre os músicos de Jazz portugueses?


EL: Infelizmente nenhuma informação sobre o jazz ou até mesmo da música portuguesa. Nos últimos meses quem se apresentou em São Paulo foi a cantora Mariza. Foi um grande sucesso, mas a música portuguesa em geral não interessa aos brasileiros e muito menos aos grandes canais de TV ou jornais.

JNPDI: Que músicos da cena actual do Jazz mundial são mais populares no Brasil?

EL: O jazz é um ritmo pouco escutado e divulgado no Brasil. A maior parte do público acaba consumindo aquilo em que as grandes gravadoras investem dinheiro para divulgação ou aquilo que toca nas bandas sonoras das novelas. Conseguir emplacar uma música na principal novela da Rede Globo, a mais influente rede de TV do Brasil, é certeza de sucesso. Os jazzistas que mais vendem no Brasil são Norah Jones – que não é exactamente jazz – Diana Krall, Jamie Cullum, Jane Monheit, Madeleine Peyroux, John Pizzarelli, e alguns discos clássicos com Time Out, do Dave Brubeck e Kind Of Blue, do Miles Davis.

JNPDI: Quem são os opinion makers brasileiros na área do Jazz?

EL: Até onde sei, há apenas um opinion maker – aqui no Brasil chamamos de "Colunista" – com espaço cativo em um grande jornal. Seu nome é Luiz Orlando Carneiro, que escreve semanalmente uma coluna de jazz no Jornal do Brasil, que é mais vendido no Rio de Janeiro.

Há outros jornalistas que precisam ser citados como Carlos Calado, que escreve sobre jazz e música instrumental brasileira para a Folha de S. Paulo, o mais importante jornal do Brasil, editado em São Paulo, e Antônio Carlos Miguel, que escreve mais sobre música popular brasileira para o jornal O Globo, principal jornal do Rio de Janeiro.. 

22/08/2009

Memórias de Zuza

Os públicos cativos dos maiores festivais de jazz realizados no país nos últimos 30 anos se acostumaram com o pesquisador musical e jornalista Zuza Homem de Mello sem, na verdade, conseguir vê-lo por inteiro. Escutavam a voz como anunciador, convidando ao palco dezenas de músicos que sonharam ver e, principalmente, ouvir tocar ou cantar “em carne e osso”. Nos bastidores, como curador desses eventos, sua presença física era solicitada na “coreografia” frenética do “ir e vir” coordenando colegas de produção para que todos os detalhes previstos fossem atingidos. Com amigos e conhecidos presentes, que percebendo a quase invisível figura nas noites de celebração da música, recebiam sua palavra gentil e o afetuoso aperto de mão. Em 2007, Zuza aproveitou e colocou na forma escrita e exatas 335 páginas suas impressões e memórias em livro de parte do que viu e ouviu nos seus mais de 50 anos de convivência íntima com a música. Já havia publicado anteriormente outras obras sobre o tema abrangendo uma antologia analítica das mais conhecidas canções da MPB dos anos 40, 50 e 60 e a inóspita tarefa de decodificar para leigos a técnica de voz e o violão da bossa de João Gilberto. De título Música nas veias (Memórias e ensaios) editora 34 - disponível na variedade de preços e localidades no site http://www.estantevirtual.com.br/ - separou em oito capítulos diversos aspectos do tema e particularmente destaca o jazz entre eles. Às lembranças escritas dão partida na tentativa de conciliar a carreira de estudante universitário com a de contrabaixista acústico profissional na noite paulistana no inicio dos anos 50.

No ambiente que respirava ao ritmo de jazz, diga-se de passagem, e “pouso” para “ases do oficio” como os pianistas Moacyr Peixoto, Dick Farney, o contrabaixista Xu Vianna e o garoto prodígio César Camargo Mariano. Depois dessa infrutífera passagem do ponto de vista profissional – já que não prosseguiu carreira – e válida do ponto de vista pessoal - aprendeu com que queria lidar na vida, Zuza recebe a chance única que a maioria dos “devotos” do estilo não relutaria um segundo em empenhar todos os títulos de sua coleção de discos para ter. À pretexto de matricular-se no curso de musicologia da Juilliard School of Music desembarca em Nova Iorque no ano de 1957. Arranja tempo antes para ser o único sul americano aceito no curso de três semanas que começava de forma experimental em Tanglewood (estado de Massachutsetts) organizado pelo idealismo do casal Philip e Stephanie Barber, prósperos comerciantes. Os temas versavam sobre a improvisação, técnica instrumental e comunicação no jazz. O corpo docente da nova escola, batizada de forma redundante mas resolutamente pratica de School of Jazz, era formada apenas por personagens da galeria do Hall da Fama tendo John Lewis (como diretor e professor de piano), Ray Brown (de contrabaixo e orquestração), Herb Ellis (g), Dizzy Gillespie,(trompete e orquestração), Jimmy Giuffre(sax,clarineta e orquestração), Milt Jackson (vib), Oscar Peterson (p), Max Roach (d), Bill Russo(composição e orquestração) e finalizando com o historiador Marshall Stearns, uma das maiores autoridades vivas da época, com a disciplina da história do jazz.

Os grupos em residência, os encarregados de transformar em música aquilo que era teorizado nas reuniões ao ar livre ou em classes de aula – a escola era uma mansão cercada por bosques - eram o Modern Jazz Quartet, Oscar Peterson trio, Jimmy Giuffre Three (precursor do jazz camerístico). Após esse estágio de aprendizado, Zuza “mergulha” nos meandros do pulsante jazz que se praticava em Nova Iorque naquele ano. Pagando um dólar e oitenta centavos entra pela primeira vez na vida no Birdland consumindo, a base de conta gotas, uma cerveja e assistindo todos os sets do pianista Phineas Newborn e a big band do trompetista Maynard Fergunson naquela noite. Impossível elencar na leitura subseqüente das quarenta e seis paginas do capítulo “An Impression of Jazz in New York”, sem o prejuízo da omissão, a constelação de verbetes da Enciclopédia do Jazz que o jornalista assistiu naquele ano e todos vivendo, quase na totalidade, o esplendor da forma artística. Tomo a liberdade de citar o duelo de bateria entre Buddy Rich e Jo Jones (vencido pelo último) no Central Park, Billie Holiday, todos os dias das seis semanas da temporada de John Coltrane e Thelonius Monk no Five Spot Café e também seu único concerto no Carnegie Hall, Ray Charles junto com Betty Carter no lendário Apollo Theatre, às big bands de Woody Herman e Count Basie com seus lideres, Oscar Pettiford, Coleman Hawkins, Wynton Kelly, Stan Getz e J.J Johnson juntos, Roy Eldridge, Chet Baker, Lee Morgan, Ella Fitz gerald com Duke Ellington e orquestra no lançamento oficial do songbook (o melhor de Ella) dedicado ao compositor no Carnegie Hall, Charles Mingus, Cecil Taylor, Horace Silver, Lester Young, Sarah Vaughan, Sonny Rollins e – nas suas palavras – o magnífico quinteto de Miles Davis com Paul Chambers(b), Red Garland(p), John Coltrane (ts), Philly Joe Jones(d) “o mais extraordinário grupo que ouvi ao vivo” e a heróica tentativa de Bud Powell tentar tocar “bem” piano.

O livro de Zuza é absolutamente generoso em dividir essas experiências de forma detalhista e nem um pouco monótona. Craque no saber do jazz, Zuza é ciente que essas experiências só teriam sentido se transmitidas às novas gerações que na maioria dos casos têm acesso aos artistas citados através de gravações apenas. Um legado a respeito de personagens e a evolução do próprio jazz no passar dos anos que se contabiliza nos dedos de uma das mãos pessoas capazes e que realmente tem aquilo o que contar. Para os visitantes deixo a faixa de um dos espetáculos presenciados por Zuza em 29 de novembro de 1957 em Nova Iorque: Thelonius Monk e John Coltrane no Carnegie Hall com Ahmed Abdul-Malik (b) e Shadow Wilson (d) no tema Nutty.

23/11/2008

Strozier na lata

Eu comentava com John Lester sobre as palavras de Nelson Motta em sua primeira coluna para o Jornal da Globo, que agora acontecerá toda sexta. Ele, Nelson, dizia da necessidade de se filtrar o que é culturalmente bom na internet, para que as pessoas possam comprar o que é bom. Fiquei pensando se aquilo era apenas uma grande brincadeira do Nelsinho ou se ele realmente tem a presunção de ser o censor cultural da net, indicando às pessoas o que é culturalmente bom e o que deve ser adquirido. E toda essa pretensa pilhéria foi dita logo após sua entrevista de estréia, quem diria, com o rei Roberto Carlos, uma das piores fraudes culturais já fabricadas pela Rede Globo. Fui ao chat conferir as palavras de Nelson, mas, é claro, ele não me respondeu quem é que vai filtrar o que é bom na net e quem é que vai me dizer o que devo consumir em arte. John Lester, que sempre se autodenominou antítese de Macunaíma, o vilão com muito caráter, lembrou imediatamente das 90 latas de fezes produzidas pelo aclamado artista italiano Piero Manzoni, em 1961 – uma alegoria intestina que tentava denunciar a relação entre merda, arte e dinheiro, todas vendidas a preço de ouro no mercado especializado. Nelsinho, prosseguiu Lester, provavelmente espera enlatar suas próprias fezes, agora com o auxílio da Rede Globo, responsável pelo enlatamento afrontoso de Roberto Carlos, Xuxa, Didi & Cia. Haja lata, bradava Lester. Quase que por descuido, comentei quantas injustiças já ocorreram na música em virtude de comportamentos como o do Nelsinho, atribuindo-se a si mesmo o papel de árbitro e enlatador cultural. Foi quando John Lester citou Fredegunda, a serviçal e concubina que se tornou rainha da França nos anos 500.




Assim como ocorre no Brasil de hoje, ensinava Lester, Fredegunda condenava seus inimigos sem sequer ouvi-los, driblava as leis, ajustando-as aos seus interesses, com as famosas precepções – mistura de veto com medida provisória. Foi assim que Fredegunda convenceu Chilperico I, filho de Clotário I, rei de todos os francos, a repudiar sua primeira esposa, Audovera e matar todos os filhos que teve com ela. Já como amante de Chilperico I, Fredegunda convence o rei a estrangular sua segunda esposa, Galswintha. Com o jeitinho feminino que nos encanta a todos, a meiga Fredegunda assassina Sigeberto, irmão de Chilperico I, ampliando assim o poder daquele que agora já é seu marido. Logo após dar um filho a Fredegunda, Chilperico I é apunhalado diversas vezes até a morte. A triste viúva parte então para Paris, onde consegue fazer com que seu filho Lothar (Clotário II) seja reconhecido como o legítimo herdeiro do reino de Nêustria, além de promover diversas batalhas sangrentas pelo poder na França. Fui obrigado a interromper Lester em sua hemorrágica narrativa para perguntar sobre o sax alto que brotava de seu toca-discos. Lester disse que se tratava de mais uma dessas injustiças cometidas pelos Nelson Mottas da vida: quem tocava era Frank Strozier, um então jovem e promissor saxofonista de Memphis, terra de grandes músicos de jazz. Ao contrário de Nelsinho, o enlatador de coco mais simpático que conheci, as profecias de Ralph Gleason, importante colunista e crítico de jazz, nem sempre se concretizavam: Gleason disse certa vez que ainda ouviríamos falar muito em Frank Strozier...


Bem, ao menos podemos encontrá-lo nos guias de jazz, não é emsmo Mr. Lester? Nem sempre, Mr. Bravante. No Rough Guide não há referência, nem na Virgin Encyclopedia. São poucos os críticos, como é o caso de Richard Cook e sua Jazz Encyclopedia, que atualmente falam sobre Strozier. O camarada é tão esquecido que seu último álbum, lançado pela Steeplechase, chama-se Remember Me! Frank começou a carreira em sua cidade natal, ao lado do MJT + 3, liderado por Walter Perkins. Mais tarde, já em New York, trabalharia com Roy Haynes e Miles Davis, partindo então para a California, onde atuaria ao lado de Shelly Manne e Don Ellis. Desiludido e mal gravado, em 1983 abandona a música até a década de 1990, quando retorna ao jazz tocando piano. Quando pensei em elogiar o Frank, Mr. Lester começou a recitar um fragmento de Para Acabar Com O Julgamento de Deus, um famoso poema de Artaud, o poeta francês que recebeu aconchegantes sessões de eletro-choque de seu bondoso psiquiatra: “O homem podia muito bem não cagar/mas preferiu cagar/assim como preferiu viver”. Enquanto lembrava de Paul Valéry e seu poema em prosa Diário de Emma, onde conclui que o coco é nossa obra mais importante, resolvi que Nelson tinha sim o direito de enlatar suas fezes à vontade e vendê-las para o crédulo espectador da Globo. Enquanto isso, ficaria eu por aqui, ouvindo o álbum Fantastic Frank Strozier, com Booker Little (t), Wynton Kelly (p), Paul Chambers (b) e Jimmy Cobb (d). Para os amigos fica a faixa WK Blues . Boa audição!

08/01/2008

Raffaelli, 80 anos

Ao que tudo indica, José Domingos Raffaelli completará 80 anos no dia 15 de outubro de 2008. Jornalista, escritor, crítico e grande amante do jazz, José nasceu no Rio de Janeiro e, através de suas análises sobre o jazz, obteve pleno reconhecimento nacional e internacional. Alguns dizem que Raffaelli acorda, vive e sonha com o jazz. No site BJBear71 encontramos um sincero esforço de compilação e organização do enorme material produzido por Raffaelli ao longo de seus 60 anos dedicados ao jazz. Até onde sei, Raffaelli tem escrito regularmente no jornal on line Folha da Estância, onde aparece como um dos articulistas. Recomendo, sem ressalvas, os excelentes textos do mestre. (Veja nos comentários a data correta de nascimento de Raffaelli).

01/01/2008

Cecil Payne

Difícil a tarefa solicitada por Mr. Lester: escolher um músico para a primeira resenha do ano. Falaremos, então, de mais um tributo, oportunidade para falarmos de dois músicos de uma só vez: Cecil Payne Performing Charlie Parker Music, álbum gravado em 1961, com o grande saxofonista barítono Cecil Payne, Clark Terry (t), Duke Jordan (p), Ron Carter (b) e Charlie Persip (d). Foi o primeiro álbum gravado ao vivo lançado pelo selo de Bird. Apesar de respeitar bastante e quase sempre concordar com as opiniões do crítico Scott Yanow, um dos responsáveis pelo All Music Guide, discordo de sua avaliação desse álbum, que recebe apenas três estrelas. Eu daria, no mínimo, quatro estrelas para esse tributo que Payne presta a Parker. Não apenas pelo seu próprio desempenho ao barítono, mas também pelos deliciosos diálogos travados com o trompete de Clark Terry, além da excelência da seção rítmica, realçada pelos solos precisos de Duke Jordan. Tudo isso por míseros US$5.00, na Oldies. Cecil Payne nasceu no Brooklyn, New York, em 1922. Começou estudando violino, guitarra e voz. Depois de ouvir um solo de Lester Young, aos treze anos, consegue persuadir os pais a comprar um sax alto de US$15.00, passando a ter aulas com Pete Brown, que morava no mesmo quarteirão. Entre 1943 e 1946 toca clarinete em bandas do exército. Passa para o barítono em 1946, na banda de Clarence Briggs, ano em que realiza sua última gravação tocando sax alto, ao lado de J.J. Johnson. Após trabalhar algum tempo com Roy Eldridge, é com Dizzy Gillespie (1946-1949) que se afirma como o pioneiro e o melhor saxofonista barítono do bebop, embora sempre tenha ficado em segundo ou terceiro nos rankings especializados. Apesar de suas excelentes atuações com James Moody, Tadd Dameron, Illinois Jacquet, Duke Jordan e Randy Weston (que escreve o texto do encarte que acompanha o álbum em tela), Cecil abandona a música temporariamente. Na década de ’60 retorna à ativa, trabalhando ao lado de músicos como Lucky Thompson e Lionel Hampton. Depois de novo sumiço, volta à cena com antigos companheiros, como Dizzy e Weston. Sua sonoridade, originalmente volumosa e pesada, torna-se mais discreta e leve, por vezes quase adocicada, principalmente no período em que trabalha num ambiente mais swing com Count Basie. Sempre indo e vindo, Cecil aparece na década de ’80 ao lado de Nick Brignola, Bill Hardman e Richard Wyands e, na de 90’, apesar de gravar excelentes álbuns para a Delmark, Cecil é encontrado doente e sozinho em seu apartamento bastante simples no Brooklyn. Orgulhoso e consciente de seu valor como músico, a muito custo concorda em receber ajuda financeira da Jazz Foundation of America. Restabelecida a saúde, volta a tocar no século XXI, até sua morte em novembro de 2007, um mês antes de completar os 85 anos. Com vocês a faixa Relaxin’ at Camarillo, título composto por Charlie Parker durante seu breve repouso para desintoxição em Camarillo. Infelizmente, o resultado, sabemos bem, não foi tão bom quanto o tratamento de Joe Pass na Synanon.

31/12/2007

LOUIS ARMSTRONG (1901-1971)

Cornetista, trompetista, vocalista e líder do New Orleans, Swing e Dixieland, Louis foi a maior personalidade do jazz de todos os tempos. Tido por muitos como um ‘bom crioulo’ bochechudo e engraçado, Louis revolucionou a música de jazz de uma forma tão profunda e radical que podemos considerá-lo um marco histórico: o jazz antes e depois de Louis Armstrong. O impacto e a importância de Armstrong na evolução do jazz encontram apenas um único paralelo de comparação: Charlie Parker. Vejamos alguns depoimentos: Duke Ellington disse o seguinte, após ouvi-lo tocando na orquestra de Fletcher Henderson, na década de 1920, em New York: “Quando a orquestra do Smack (Henderson) começou a tocar na cidade, com Louis, ninguém jamais havia ouvido algo parecido, e o impacto não tem como ser descrito em palavras.” No Festival de Newport de 1970, dedicado a Louis, Dizzy Gillespie disse o seguinte: “Nada foi mais importante em toda a história do jazz do que Louis Armstrong. Se ele não tivesse existido, nós também não existiríamos. Eu quero agradecer aqui de público a Louis Armstrong a razão da minha vida".

 Quanto aos críticos, a unanimidade se mantém de forma quase sempre serena e calorosa. J. L. Collier diz que “o dom de abordar idéias musicais que são afins é uma das características dos grandes solistas. São poucos os músicos de jazz que podem contar com um fluxo ininterrupto de idéias interessantes. Na verdade, é possível que somente os gênios da música – os Armstrongs, os Parkers, os Ellingtons e alguns outros – sejam capazes de pensar em mais de uma ou duas idéias por noite.” Günther Schüller comentou que “no dia 28 de junho de 1928, ao soltar as espetaculares frases cascateantes de introdução de West and Blues, Louis Armstrong indicou a direção estilística geral que o jazz seguiria nas décadas seguintes (...) e o jazz nunca mais retornaria à condição inicial de música folclórica ou de entretenimento (...). O seu toque mostrou que o jazz tinha capacidade potencial de concorrer com as mais altas formas musicais então existentes. As belezas da música eram as de qualquer grande e irresistível experiência mundial: fervor expressivo, intensa seriedade artística, um sentido intuitivo de lógica estrutural, combinados com um virtuosismo instrumental superior".

Na verdade, poderíamos citar infindáveis depoimentos igualmente apaixonados, mas vamos saber um pouco sobre sua vida e carreira. Louis gostava de dizer que nasceu no dia 4 de julho de 1900, mas sua certidão de nascimento, encontrada no final dos anos 80, diz outra coisa: 4 de agosto de 1901. Nasceu muito pobre em Perdido, um dos bairros mais miseráveis de New Orleans, sendo criado pela avó, uma humilde lavadeira. Sem educação regular, desde menino trabalha para viver, ora dirigindo uma carroça para vender carvão, ora cantando nas ruas com pequenos grupos vocais, em troca de alguns pennies. Perambulando pelas ruas, ouve o jazz que rolava no Funky Butt Hall, ao lado de sua casa, e aprende a reconhecer os toques de corneta de Buddy Bolden, King Oliver, Freddie Keppard e Bunk Johnson, entre outros. Na passagem de 1912 para 1913, Louis resolve comemorar o ano novo disparando alguns tiros para o alto. Essa grande idéia o levou à prisão, sendo confinado na Waif’s Home, uma espécie de reformatório. Ao contrário do que se poderia supor, os dois anos que ali passou foram muito bons para o jovem Louis, que recebeu suas primeiras noções de educação musical e começou a aprender clarim e cornetim com o guarda Peter Davis. Ao sair da prisão, Louis desenvolve-se rapidamente no toque da corneta e, em 1918, é recomendado por King Oliver para substituí-lo (King partia para Chicago) na famosa orquestra de Kid Ory. Quatro anos mais tarde, Louis é convidado a integrar em Chicago a importante Creole Jazz Band, de King Oliver, como segunda corneta. Dessa época sobraram 41 faixas gravadas em 1923. É em Chicago que conhece Lil Hardin, jovem pianista que acabaria por se tornar a segunda de suas quatro esposas. Lil ajuda Louis de várias maneiras, inclusive incentivando-o a partir para New York em 1924, para integrar outra grande orquestra da época, a de Fletcher Henderson.

O impacto que Louis causou entre os músicos de New York foi enorme, expondo um sentimento de blues, um swing e uma noção de improviso até então desconhecidos no mundo do jazz. Felizmente existem razoáveis gravações desse período, incluindo Sugar Foot Stomp, com arranjo de Don Redman. Datam também dessa época suas famosas gravações com grandes cantoras de blues, entre elas Bessie Smith, Ma Rainey, Virginia Liston, Sippie Wallace, Maggie Jones, Clara Smith e Alberta Hunter. As melhores dessas gravações foram as realizadas pela gravadora Okeh, por iniciativa do pianista Clarence Williams e do seu conjunto Blue Five, do qual fazia parte ninguém menos que o genial sax soprano Sidney Bechet. Ainda desse período são suas gravações para a Gennet, com a Red Onion Jazz Babies, realizadas pelo empenho de Lil Armstrong. Em 1925, já de volta à Chicago, Louis dá início às célebres gravações com o seu Hot Five, em 12 de novembro. A formação era Kid Ory no trombone, Johnny Dodds no clarinete, Johnny St. Cyr no banjo e Lil Armstrong no piano. Em algumas ocasiões Louis convidava o guitarrista Lonnie Johnson para engrossar o caldo. Mais tarde, inclui o tuba Pete Briggs e o baterista Baby Dods, criando assim os Hot Seven. São deste período (1925-1927) as suas mais importantes gravações dentro da ótica harmônica e rítmica do estilo new orleans, levado ao esplendor em peças como Cornet Chop Suey ou Potato Head Blues, entre tantas outras. Curioso é que os Hot Five e Hot Seven nunca tocaram em público, exceto em um único concerto, em junho de 1926. A partir de 1928 Louis inicia outra revolução, dessa vez com o auxílio fundamental do fantástico pianista Earl Hines, talvez o primeiro grande músico a trabalhar assiduamente com Louis. Do conjunto, ora chamado Savoy Ballroom Five ora Hot Five, faziam parte ainda o trombonista Fred Robinson, o clarinetista Jimmy Strong e o excelente baterista Zutty Singleton. Acredito serem estes os maiores momentos de Louis, tanto em termos de virtuosismo técnico e inventividade rítmica, quanto em termos de ruptura harmônica e divórcio com a noção de improvisação coletiva. Estava introduzida no jazz, de forma definitiva e irremediável, a figura do solista, aquele improvisador egoísta e genial que dominaria a cena jazzística por mais de 30 anos, até o advento do free jazz. Desse período são as sensacionais West and Blues e Weather Bird. Há quem diga, e com muito maior conhecimento de causa, como o abalizado e sensível crítico Luiz Orlando Carneiro em seu livro Obras-Primas do Jazz, que outro período igualmente culminante na carreira de Louis seria o de 1947 e 1948, ao lado do seu All Stars. Apesar de não ter ouvido Louis ao vivo (Carneiro teve esse privilégio), acredito que as belíssimas gravações de 1947-1948 representam antes a consolidação de idéias anteriores (1925-1928) que a evolução ou transposição de alguma nova fronteira musical.

E não é com tristeza que observamos Satchmo (corruptela de satchelmouth – boca de saco), a partir da dácada de 1930, ir cuidar de sua vida profissional e financeira, aliando à sua genialidade musical toda sua fantástica presença de palco e alegria contagiante. Aclamado diversas vezes na Europa, África, América do Sul, Japão e por todo o EUA, Louis foi um vitorioso em todos os sentidos. Foi um negro pobre de uma profunda e singela ignorância que fez os brancos gargalharem de suas palhaçadas, com suas gordas bochechas e olhos esbugalhados. Foi apelidado pelos negros engajados de Tio Tom, tamanha a sua subserviência frente aos brancos. Teve sua obra criticada duramente pelos estudiosos nos anos 1950 e 1960. Mas o que ninguém pode deixar de reconhecer é que sua música inundou o mundo. Sua contribuição para a única criação artística norte-americana digna de nota (o jazz) foi fundamental e incomparável. Sua presença esmagadora nos teatros, cinemas e televisores representaram muito mais que todas as greves de fome perpetradas por intelectuais negros. Muitos brancos racistas tiveram que aceitar, ainda que irados, que aquele negro pobre, engraçado e pouco articulado verbalmente fosse um homem amado por milhões de pessoas e bem sucedido profissional e financeiramente. Muitos negros racistas engoliram sapos quando o Tio Tom cancelou uma turnê pela Rússia, organizada pelo Departamento de Estado dos EUA, e disse que o presidente Eisenhower era “um homem de duas caras”, pelo fato de que não se pronunciava a respeito dos conflitos raciais ocorridos em Arkansas, onde os negros eram impedidos de freqüentar as escolas públicas dos brancos. No fundo, acho que Louis era um ser humano tão especial que não dava a mínima para certas críticas ou mesmo para crítica alguma. Os críticos e suas críticas estavam tão abaixo da generosidade do homem e do significado de sua arte, que foram prontamente arquivadas e esquecidas. O que restou foi uma enorme dívida do povo norte-americano para com aquele que efetuou de cabeça todo o complexo cálculo estrutural que permitiu a construção desse belíssimo edifício chamado Jazz.

14/10/2007

Quero conhecer Getz

O jazz é tão bom que podemos simplesmente ouvi-lo. Não acrescentamos muito, ou quase nada, estudando a vida e a obra dos músicos que construíram essa belíssima obra de arte, talvez a mais incrível do século XX e, sem dúvida, a mais importante manifestação artística produzida pelos norte-americanos. Ocorre que, em alguns casos patológicos, nos apaixonamos tanto pelo jazz que, mesmo sem querer, começamos a bisbilhotar notícias, folhetos, revistas, capas de lp’s, resenhas, encartes de cd’s e, logo em seguida, nos encontramos debruçados sobre livros, enciclopédias, dicionários e guias especializados. Alguns desajustados chegam a empilhar centenas de livros e milhares de cd’s em suas estantes. Durante nossas leituras, vamos descobrindo formas usuais de abordagem de estilos, escolas, tendências e influências, muitas delas quase que, por unânimes, estabelecendo padrões. Um lugar-comum quanto ao saxofone tenor no jazz é a afirmação de que Coleman Hawkins é seu primeiro ícone, estabelecendo o padrão de execução e sonoridade que seria o norte de um sem fim de discípulos. Pode-se dizer que Hawkins deu consistência e respeitabilidade a esse instrumento, até então pouco reconhecido e pouco utilizado no jazz. Hawkins seria, por assim dizer, o Louis Armstrong do tenor. Não por acaso, trabalharam juntos na década de 1920, na orquestra de Fletcher Henderson. Sua potência máscula e seu fraseado melódico seriam perpetuados por uma inumerável fileira de saxofonistas excepcionais, encontrando em Sonny Rollins o expoente máximo da escola.

São também os livros quem nos contam sobre o delicado e introspectivo Lester Young, um filho de New Orleans e Kansas City, tido por muitos como o criador de uma escola diametralmente oposta à de Hawkins. Sutil e etéreo, poderíamos dizer que Lester foi o Bix Beiderbecke do tenor, onde a forma como se toca uma nota é muito mais importante do que com que altura, velocidade e potência ela é emitida. Abandonando os vibratos e as frases de efeito, mas ainda mantendo-se razoavelmente fiel à estrutura harmônica sobre a qual improvisava, Lester é considerado o segundo grande parâmetro do saxofone tenor, definindo as bases e os fundamentos de um estilo que, mais tarde, seria denominado cool jazz – na costa oeste, essa escola recebe a denominação de west coast jazz. Dos inúmeros discípulos produzidos pelo estilista cool, não há dúvida de que, pelo menos para mim, Stan Getz é o tenorista mais significativo, além do mais privilegiado em termos de técnica, velocidade, inteligência harmônica e beleza melódica. E não digo isso com alegria, porque Wardell Gray possuía todos estes atributos para disputar o lugar de primazia que coube a Getz. Infelizmente, sua vida desregrada e as drogas o levaram muito cedo, aos 34 anos. Getz, ao contrário, viveu bastante, construiu uma carreira de sucesso, gravou abundantemente, namorou muitas meninas levadas, fez experimentos importantes e inovadores (basta citar Jazz Samba, com Charlie Byrd, introduzindo a bossa-nova no cenário musical norte-americano) e soube administrar sua cirrose hepática com homeopáticas doses de bons uísques (Chet Baker levou muitos cascudos de Getz por causa de sua mania de tocar cheio de heroína). É claro que, dentro do contexto do west coast, não podemos esquecer de, pelo menos, mais dois tenores: Zoot Sims e Teddy Edwards, dois importantes músicos do estilo. Quanto ao gigante Dexter Gordon, prefiro seguir a tendência dos estudiosos e ‘enquadrá-lo’ no estilo hard bop. Mas essa já é outra discussão que, certamente, demandaria outra resenha.

O que importa aqui é simplesmente tentar estabelecer alguns conceitos básicos sobre estilos e sobre nossos posicionamentos quanto aos ‘melhores’ do jazz ou desse ou daquele instrumento. Repetindo o que disse na resenha anterior sobre Getz, não há dúvida de que ele se encontra entre os cinco ‘estilistas’ do saxofone tenor, ou seja, entre os cinco mestres que possuem sonoridade própria, reconhecível em poucas notas. São cinco homens que ‘falam’ através de seus instrumentos, determinando padrões que servirão de bússula aos futuros navegadores. São eles: Coleman Hawkins, Lester Young, Sonny Rollins, John Coltrane e Stan Getz.
Por fim, cumprindo a promessa feita ao amigo Vinicius, segue uma recomendação para aqueles que quiserem apreciar Getz construindo seu estilo: trata-se do álbum 1946-1949 do selo francês Classics. Aqui você encontra uma excelente coletânea, evitando a ‘gordura’ de alternate takes que os álbuns reeditados trazem (evite, por exemplo, o caríssimo Groovin’ High lançado no Japão ou o The Complete Savoy Sessions, todos repletos de alternates desnecessários para o ouvinte iniciante). A coletânea da Classics faz boa introdução ao trabalho inicial de Getz, fornecendo ao ouvinte uma impressionante prova de perícia técnica – exigida pela assimilação do bebop – além de demonstrações contundentes da influência poderosa de Lester Young sobre o primeiro Getz. As sessões estão repletas de grandes acompanhantes, como Hank Jones (p), Curly Russell (b), Max Roach (d), Al Haig (p), Jimmy Raney (g), Clyde Lombardi (b), Charlie Perry (d), Walter Bishop Jr. (p), Gene Ramey (b), Duke Jordan (p), Mert Oliver (b) e Stan Levey (d). Nosso problema: até onde sei, esse cd está fora de catálogo. Mas há como adiquirir um usado (vide Amazon) ou selecionar as faixas a partir de dois álbuns oferecidos no E-music (Opus de Bop e And The Angels Swings). Ok, o leitor pode reclamar que não há nenhuma faixa de Getz tocando aos 16 anos com Jack Teagarden, nem aos 17 com Stan Kenton, nem aos 18 com Woody Herman. Mas isso, isso é coisa de maluco e terá que ficar para outra resenha. Para os leitores irresignados, fica a faixa Opus de Bop. Boa audição!


Opus De Bop.mp3

10/08/2006

Capixaba faz bem?

.

Quem disse que o capixaba só serve para receber pó de minério da Vale no rosto e na varanda? Agora também vamos ter o óleo da Petrobrás em nossas praias e gaivotas. E se você reclama porque não há festivais de jazz no ES, não se esqueça de que, para dar projeção nacional ao estado, temos sanguessugas capixabas muito afinadas tanto no Congresso Nacional (Marcelino Fraga – PMDB) quanto no Senado Federal (Magno Malta – PL). Enquanto isso, a TV Gazeta insiste diariamente em nos afirmar o orgulho de ser capixaba. Mas eu me pergunto: orgulho é fruto de marketing de segunda ou de ações concretas? Por essas e por outras, nossos verdadeiros valores, sempre que conseguem, saem correndo do estado. Esse é o caso do grande violonista capixaba Robson Miguel. Ao contrário dos negros capixabas politicamente corretos, Robson não queria saber de tocar tambor nem casaca. Era apenas um jovem pobre que aprendeu o violão de ouvido e, assim, teve que ir para a Espanha ser reconhecido como um instrumentista virtuoso. Quem sabe um dia nosso estado passe a promover, muito além do inofensivo congo, outros tipos de música menos rudimentares. Quem disse que o povo adora desfiar siri a vida toda? Quem disse que a Vale ou a Petrobrás são boas para nós? 

Quem sabe um dia o ES volte a ter um festival de jazz promovido por essas empresas que tanto mal têm causado ao ES. Marien Calixte, um amante sincero do jazz e apresentador da Rádio Universitária, sabe do que estou falando. Aos navegantes cansados dos reco-recos e revoltados com a falta de apoio cultural nesse estado, deixo algumas faixas de Robson Miguel no Brazil Jazzseen. Afinal, o orgulho não é algo que possa ser gerado mediante propaganda maciça em jornais e TV. O orgulho é fruto de ações, patrocínios e resultados. Orgulho mesmo é quando nossos Robsons não precisarem sair daqui para fazerem música de boa qualidade. Aí sim poderemos dizer: capixaba faz bem!
.

13/06/2006

Toma tenência menino !

.
Prezado navegante, prepare a pipoca, ajeite a poltrona e clique no Cinema Jazzseen para assistir a alguns dos vídeos mais importantes do jazz..
Alguns dizem que o videoclip foi inventado na década de 1980. Pura bobagem: no Cinema Jazzseen você verifica que Louis Armstrong era o tipo de gênio que chutava o balde. E chutava com força já em 1932! Ao contrário dos seríssimos intelectuais racistas, preocupados somente em identificar como os músicos negros eram espoliados pelos músicos brancos, Louis simplesmente invadia o mundo com sua alegria arrebatadora. Seus solos contribuiram mais para a libertação dos afro-americanos que todas aquelas centenas de discursos envenenados pelo ódio e pelo radicalismo. Como disse certa vez o crítico Jean Wagner: Havia algo de Victor Hugo em Louis Armstrong, aquela fundamental alegria e otimismo em viver a vida.
.
Para quem gosta de filmes, recomendo o livro Jazz On Film, de Scott Yanow - aquele crítico do All Music. Agora apague a luz que o filme já vai começar !
.