Ah, esse corpo fardo! Farto de esperar quem o domine e o leve pra cama.
Nem que seja a gripe...
Ah, esse corpo que dói e se ressente de não ser ele o dono de seu próprio corpo. Fascinado pelos fortes que se apropriam de tudo como fossem cobradores de impostos:
"Você me deve! "
É tudo o que ouvem.
É tudo o que dizem, enumerando os queixumes e agravos sofridos com resignação e esperanças alucinadas na vida após a morte: "Há de haver justiça e choro e ranger de dentes". Do outro, claro.
Nós, os bons, os fracos e puros de coração, jamais sofreremos nessa projeção de futuro ensandecida que pune sempre quem se apropria de seu próprio corpo e mata de inveja quem abnega dele.
Ah, esse corpo que pulsa e muda o ritmo a cada vez que vê o pôr do sol ou que um carro avança o sinal nos forçando a ficarmos mais espertos. Repetindo um 'quase morri' pra garantir ao menos uma cicatriz da vida. Uma marca que seja.
Quase. Quase vivo nesse corpo. Quase respondo bem à medicação que me torna mero efeito colateral.
Ah, esse quase corpo. Quase sente que pode. Mas acaba resignado com medo do pastor exorcista perceber que há Vida além da vida.
Que há desejo e vontade chamados de demônios e um corpo que sofre, apanha, mas que também bate e estremece inteiro.
Ah, o que pode um corpo que não se contém???
Transbordar para o além. Para o antes e o depois. Sentindo que o que sente não se descreve. Não se desenha. Simplesmente não cabe em si. E assim vaza ao mundo quando a tv é desligada.
Todo cuidado é pouco pra um corpo que se afirma num descuido.
Toda gota d´água é um perigo de derrame, de luxúria, de apedrejamento.
Todo movimento ameaça ao inferno aqueles que deixam pra depois da morte o momento exato de se dizerem: Sim, eu sinto! Eu quero!