João de Deus
(João de Deus Ramos)
(1830-1896)
“Foi estudar Direito para Coimbra, onde levou dez anos a completar o curso e conheceu alguns componentes da Geração de 70, de entre os quais se ligou sobretudo a Antero e Teófilo Braga. Em Coimbra, tornou-se popular como poeta e improvisador à guitarra, consagrando-se no ambiente de boémia estudantil da época. Depois de casado, leva uma vida mais ordeira e dedica-se à pedagogia, criando a célebre CARTILHA MATERNAL, publicada em 1876, método racional de ensinar a ler que propicia uma campanha contra o analfabetismo e que foi adoptada em todo o País.
João de Deus pertence cronologicamente à segunda geração romântica, mas afasta-se do chamado ultra- romantismo, cujos excessos sentimentalistas e funéreos condena. Já então defende uma depuração do lirismo romântico, propondo, na senda de Garrett, um regresso às fontes do lirismo tradicional galaico- português, do romanceiro e de Camões, de que retoma a arte do soneto.
A poesia de João de Deus impõe-se imediatamente pela sua enorme simplicidade e beleza. Toda feita de palavras simples, num tom coloquial, ora irónico, ora melancólico e sentimental, ela consegue ainda hoje impressionar pela técnica segura,pelo grande domínio de todos os metros, nas mais variadas combinações.
A poesia de João de Deus não deixa, pela sua simplicidade, de revelar interesse por tudo o que o rodeava à sua volta, e, à sua maneira, não deixou de ser um poeta militante, militante da poesia.
Teófilo Braga, que tinha por ele uma enorme admiração, organizou uma colectânea das suas poesias, em 1893, a que foi dado o nome de CAMPO DE FLORES.
Se houve poeta que fosse celebrado em vida e durante ela recebeu as maiores honrarias, este foi sem dúvida o imortal cantor de “ A Engeitadinha”, que nem as gerações mais modernas esquecem de saber de cor”.
Recordemo-lo com as modestas composições que se seguem
I
Até do céu caem lágrimas
1
Quem no Céu chorou?
Talvez Deus- Menino:
frio suportou,
sendo pequenino.
2
Cá na Terra viu
d’Herodes a maldade
e com Pais fugiu,
não sem piedade.
3
Foram degolados
muitos inocentes,
agora sentados
em divos aposentos.
4
Com tanta injustiça,
o pobre de fome
à Virgem castiça
pede que p’ra ele olhe.
5
Rota, quase nua
vai esta criança.
Como a Terra é crua
e sem esperança!
6
Olha os sem- abrigo.
Que dor d’alma vê-los!
Coração amigo,
p’r’eles faz apelos.
Vocabulário:
castiça= pura
II
Os teus beijos
1
Um beijo dás;
lesta serás?
Não?
Na minha face
uma flor nasce:
quão?
2
Que aconteceu?
Um Anjo desceu.
Só?
P’ra nós olhou
e não corou.
Oh!
3
Mais beijos, Amor.
Tens outra cor.
Dois?
Junto de ti
E sempre aqui.
Pois!
4
Quero mais um;
logo, nenhum.
Vês?
Beijos dão vida.
Já são, querida,
três.
Vocabulário
Quão= como?
Pois= sim
III
Os meus Namorados
1
Namoro com três
de desigual cor
um de cada vez.
O branco é uma flor;
do preto o nariz,
em nada pequeno,
brilha c’o verniz.
O outro é moreno.
2
Todos o casamento
pedem. Serei tola?
Em mim há assento:
destreza vou pô-la,
querendo o melhor.
Já provei os beijos:
nenhum tem bolor.
Tenho outros desejos:
3
apertados abraços;
mas que mal há nisso?
Não furam os regaços,
nem causam o enguiço.
O calor dos corpos
dá-nos excitação,
porém não aos mortos.
Tudo entra em acção.
4
Temos de gozar,
porque curta é a vida.
P’ra saborear
qual boa comida,
não façais asneiras:
dizei que os amais,
mas ficai solteiras:
forras valem mais.
Vocabulário:
Bolor= velhice
Forra= livre
Destreza= sagacidade
IV
Os olhos são janelas do coração
1
És planta em flor que cuidei.
Serei
dela seu tronco e amparo;
de rosas e cravos conjuntos,
juntos
muitos faremos, pois claro.
2
Choras. Olha para mim;
assim
vejo que estás a sofrer.
No teu coração há dor,
amor
também. A qual vais ceder?
3
Comigo podes falar,
gritar
até, pois essa tua Alma,
cristalina e muito pura,
agrura
não quer, mas somente calma.
4
Compaixão de ti eu tenho,
e venho
mui ligeiro em tua ajuda.
Quero que toda a ternura,
candura
se erga e nunca fique muda.
Vocabulário
pois claro= certamente
V
A Engeitadinha
Por que choras, queridinha?
“Quero comer e agasalho”.
Não tens medo de andar sozinha?
Acabada de nascer,
pareces-me uma avezinha
que descuidada caiu
do ninho, no alto instalado.
A mãe (e)stá no povoado?
“Nunca a vi. Ela fugiu”.
A minha inda me criou,
mas Deus p’ro Céu a levou.
VI
Saudades de Coimbra
Já tenho as solas rotas de subir
e descer as ladeiras por dez anos,
tornando-me o mais velho dos decanos
do Curso de Direito a concluir.
(E)studar e da guitarra o seu tinir
das cordas eram inimigos veteranos.
Até pielas e bródios os ufanos
e façanhudos lentes punham a rir.
E as tricanas roliças, boa perna,
n’águas do Mondego eu ia ver;
porém, no final d’ano vem paterna
reprimenda por mais um chumbo haver.
O coração terá saudade eterna,
pois qual tu, ó Coimbra, outra não ser.
Vocabulário:
Façanhudo= mal-encarado
Agostinho Alves Fardilha (o meu pai)
Coimbra