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sábado, 25 de novembro de 2017

O Futuro Existe

Foto: Bruno Veiga.

Publicado originalmente no site da Livraria Cultura.

O Futuro Existe.
Por Gustavo Ranieri.

Durante os 64 anos de vida e as quatro décadas dedicadas ao jornalismo, em especial ao econômico e político, Míriam Leitão testemunhou um Brasil que se transformou enormemente – em alguns dos períodos, como durante os 21 anos de ditadura militar, viu e sentiu esse processo de mudanças de forma traumatizante –, em boa parte das vezes para melhor, mas que nem por isso conseguiu se libertar de determinadas condutas e desigualdades assombrosas que imperam nesta terra desde os tempos coloniais. Celebrou a reconquista do regime democrático, pós-1985, acompanhou de perto governos trôpegos e registrou grandes acertos que trouxeram o país ao século atual. Mas, do que experenciou, daqueles que entrevistou e de todos os rostos que conheceu, sobrou uma pergunta: por que o Brasil, sejam os governantes, sejam os governados, não pensa no futuro?

A inquietação a motivou a se debruçar por quatro anos sobre o assunto, até publicar, em 2015, o livro História do futuro – O horizonte do Brasil no século XXI, pela editora Intrínseca – também são de sua autoria A verdade é teimosa, Tempos extremos, Saga brasileira, além de três títulos para crianças. Reeditada agora, é essa publicação que fez Míriam encarar sua mais recente e enorme empreitada: levar as temáticas abordadas em 450 páginas para o formato televisivo.

A série, que leva o mesmo nome do livro, estreou no fim de outubro no canal GloboNews – onde ela é apresentadora – e pode ser assistida até 21 de dezembro, sempre às quintas-feiras, às 21h30. Para isso, percorreu durante seis meses 42.000 quilômetros pelo país, conheceu os diferentes biomas e suas importâncias, a verdadeira diversidade que marca o povo e encontrou, principalmente, em cada lugar e pessoa com quem cruzou, o reflexo dela mesma. “Penso que esse é o momento para se ler ou reler o livro História do futuro, pois a questão política está chegando a um momento de tomada de decisão. Não indico uma decisão nem na série nem no livro, vai por aqui, vai por lá. Mostro as políticas erradas e certas de governos diferentes. Para mim, o que interessa é a política boa e a política ruim. Política boa, sucesso e fracasso das políticas públicas, erro e avaliação do Brasil e acerto e avaliação do país. E não interessa que partido. E meu livro e a série fazem olhar bem para frente. E, portanto, essa é a contribuição que quero dar. Usei tudo o que aprendi na minha maturidade profissional e, depois de rodar duas vezes o Brasil, uma para o livro e uma para a série, pensei: olha, é isso o que tenho para contar, e cada um tome a sua decisão e forme o seu pensamento.”

Em 2016, o economista Eduardo Giannetti lançou Trópicos utópicos e a antropóloga Lilia Schwarcz lançou Brasil: uma biografia. Um ano antes deles, você publicou História do futuro – O horizonte do Brasil no século XXI, que acaba de se tornar uma série televisiva. E, de alguma forma, sinto que, assim como na série, há uma mensagem de otimismo que se faz presente nesses três livros que, de diferentes maneiras, voltam o olhar à nossa nação. Como lidamos com o ser otimista frente a esse período tão duro que o país atravessa? Olha, não é exatamente otimismo. É uma posição mais positiva quando você analisa a questão para além da conjuntura, a qual, de fato, bombardeia muitas coisas, como a nossa autoestima, a nossa confiança no futuro. Não me comparo aos livros que você citou, e que são maravilhosos, pois o que faço é um trabalho de jornalista, e o jornalista tem de fazer perguntas e buscar as respostas. O que quero é passar as informações que fui buscar ao longo de quatro anos para fazer o livro e agora mais seis meses rodando o Brasil [para a série televisiva]. Trabalho o tempo todo pensando no futuro, mas tenho um fio-terra que me puxa o tempo todo para uma conjuntura muito turbulenta. E a conjuntura é turbulenta por várias razões: é uma crise econômica, a mais prolongada da nossa história, uma crise política de contornos muito complexos, e a mais profunda e corajosa investigação de corrupção com que o Brasil já se envolveu e que poucos países do mundo teriam tanta coragem de investigar profundamente. Tudo o que vemos não aumenta o meu pessimismo, ao contrário, aumenta a minha confiança. Ao avaliar esses especialistas de várias áreas e as possibilidades do Brasil, fiquei com a visão muito positiva, porque, sim, o país pode e tem as ferramentas para construir um futuro de sucesso.

O primeiro capítulo do seu livro, assunto também presente na série televisiva, é sobre a Floresta Amazônica. Recentemente, Temer aprovou, e revogou após pressão popular, o decreto que abria a Reserva Nacional de Cobre e Associados (Renca) para a exploração das mineradoras. Como você observou isso?
A primeira coisa que aconteceu é que ano após ano vinha caindo a taxa anual de desmatamento, e o governo Dilma inverteu esse cenário, deixando essa taxa aumentar. E aumentou porque a Dilma fez redução de áreas protegidas para a construção de hidrelétricas; ela ultrapassou os sinais. É nessa mesma linha que atua o Temer. Nesse sentido, há uma continuidade entre Dilma e Temer, porque, se ela reduziu as unidades de conservação para a construção de hidrelétricas ou hidrelétricas futuras, o Temer foi lá e fez isso na Renca – ou tentou fazer. O interessante é que a reação das pessoas foi muito forte e, talvez, ele não esperasse por isso. Houve uma decisão anterior, que foi muito perigosa, e que não teve a mesma atenção. Trata-se da redução dos limites da Reserva Jamanxim, no Pará, uma floresta nacional que é vulnerável e importantíssima para o país. Há um padrão de comportamento nos últimos dois governos de desprezo em relação à preservação da Floresta Amazônica, que não é só o pulmão do mundo. Ela é um enorme e importantíssimo regulador do planeta Terra.

Outro dos temas marcantes do livro e que ganha destaque também na TV é a educação, apontada por todos como o pilar fundamental para um Brasil melhor e mais justo no futuro. Como foi revisitar esse tópico para fazer a série?
Para qualquer pessoa que eu entreviste ou converse, costumo perguntar: o que é mais importante para o Brasil? E eles dizem que é a educação. Então, o título do capítulo se chama A maior das tarefas. É na educação que a gente pode perder ou ganhar o futuro, o lugar mais decisivo da nossa história. Então, posso contar várias histórias para você, posso contar 500 anos de erro, ou posso ter outra forma de olhar. E quem me ensinou sobre essa outra visão foi o secretário-geral da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), José Angel Gurría, um mexicano que entrevistei para o livro. Ele me disse que o Brasil está com um desempenho educacional mais baixo do que vários países que têm o mesmo tamanho, mas é um país que cresce mais rapidamente em relação a si mesmo. E como é que a gente olha a educação? No livro, fui pelas histórias pessoais de sucesso e, na série, fui visitar determinadas escolas que superaram desafios e que têm bom desempenho em lugares improváveis.

E o que você (re)descobriu que possa ser uma luz no fim do túnel?
Por exemplo, fui para o sertão do Cariri, na zona rural de uma cidade chamada Brejo Santo, que fica a 500 quilômetros de Fortaleza e a 25 quilômetros do centro da cidade. Estava perdida por ali, estrada de chão, peguei um caminho com um entroncamento e pensei estar na direção errada. Ao chegar a um barzinho no meio do nada, perguntei: “Escuta aqui, a escola Maria Leite de Araujo, onde é que é?”. Aí uma adolescente que estava lá falou: “A Escola Nota 10? Ela vai estar por ali!”. Então essa escola, no setor rural de Brejo Santo, é conhecida assim em uma esquina: Escola Nota 10. O Ceará está se destacando no Ideb [Índice de Desenvolvimento da Educação Básica] do fundamental. E lá há uma política de que as 150 melhores escolas ganham o título de Escola Nota 10. E como bônus recebem um dinheiro para investirem na sua estrutura, um dinheiro a mais para os professores, além da obrigação de ajudar uma das escolas que estão com o pior desempenho a avançar. Elas criam uma espécie de sistema tutorial com a outra escola. Depois, no Recife, visitei o Ginásio Pernambucano, primeira instituição de ensino médio laico do Brasil, de 1825, e que não tem evasão, que é o maior problema do ensino médio no país. E por que não tem evasão? Eles não querem sair dali porque se sentem respeitados. No primeiro dia de aula, os professores não estão, apenas ex-alunos. É uma sessão de acolhimento. Os ex-alunos recebem os alunos novos e falam assim: “Olha, estudei aqui e foi legal por causa disso e hoje sou isso”. Então os ex-alunos permanecem ligados à escola. A participação dos pais é intensa e eles têm um trabalho de projeto de vida: o aluno é incentivado a pensar sobre o que ele quer ser e aí ele vai construir o seu projeto para alcançar seus objetivos. Enfim, as políticas públicas resolvem o problema. Se você adotar esses exemplos, se aprender com o que deu certo, o país pode avançar.

História do futuro começou a ser escrito em um outro momento econômico do país. Você já vislumbrava aonde o Brasil iria em pouco tempo?
Comecei a escrever o livro no momento do crescimento econômico. Coloquei-me no desafio de pensar o futuro na época em que o país estava crescendo e eu sabia que haveria uma crise, então, se você pegar o meu livro A verdade é teimosa, publicado neste 2017, lá estou dizendo sobre a crise. E no História do futuro digo: “Vamos ter sucesso”. Até parece que foram escritos por duas pessoas diferentes, mas não foram. Acontece que, neste atual, eduquei meu olhar para o imediato e, no História do futuro, sou eu dizendo: “Olha, vai virar uma crise, mas a crise vai passar e a gente tem de pensar em qual é o nosso projeto, o que nós vamos fazer depois”. O primeiro passo para fazer o livro, a primeira pergunta que fiz foi a seguinte: por que o Brasil não olha para o futuro?

E qual foi a sua constatação?
O Brasil não olha para o futuro por várias razões. Entre as minhas ideias, minhas suspeitas, está a de que o Brasil não olha para o futuro simplesmente porque é um país de jovens, com quase cem milhões de pessoas com até 29 anos. E está aumentando a expectativa de vida, e aumentará mais ainda. Vou viver mais e farei o que com essa vida a mais que tenho? Por isso, estou falando da expectativa coletiva. Essa sensação de que o Brasil não pensa o futuro, talvez por ser jovem demais, ou por outras coisas, entre qualidades e defeitos, é o que me levou a escrever esse livro. Que tal a gente olhar para mais adiante? Que tal a gente esticar o olhar para o Brasil inteiro? Que tal a gente parar de olhar a última crise de Brasília? Que tal a gente viajar pelo país e ver quais são as outras realidades? A primeira linha do livro e a primeira frase da série diz: “O Brasil está prisioneiro do imediato”. O Brasil está prisioneiro do imediato, e isso impede o país de ver o futuro.

Mas quando você fala sobre o país não olhar o futuro, há alguma divisão entre esfera política, ou seja, os governantes, e a esfera que engloba a população como um todo?
Acho que não tem, tanto na esfera dos governantes quanto na esfera dos governados, uma atitude de pensar no futuro. Sei lá, a Alemanha pensa muito mais. Então estou falando da natureza mesmo, nós somos assim. E a gente está amadurecendo, então a gente não pode continuar assim, achando que o futuro vai ser uma coisa dada. A gente tem muito excesso de confiança em alguns momentos, o que pode ser ótimo, mas há a impressão de que não é necessário pensar sobre o futuro, e é. As pessoas precisam pensar na própria sobrevivência, buscar o projeto delas, é claro, mas estarem atentas, inclusive, ao fato da desigualdade, que é enorme no país, ou ao fato de que muita gente está alheia à tomada de decisão coletiva. O que quero é incentivar esse debate e, como agora estamos em um momento de polarização muito grande, a minha maior preocupação foi tentar sobrevoar o conflito ideológico, ou conflito nem ideológico, mas político, que há hoje no Brasil. No livro falo, porque tenho de falar da crise que viria, peço até desculpa ao leitor, porque vou falar de uma coisa conjuntural, pois preciso para a gente pensar em como construir o depois da crise. Falo um pouco de alguns erros recentes dos governos que estavam nos governando, que eram do PT, mas, nesse caso agora, do livro e da série, eu realmente fiz toda a reportagem de costas para o poder, e de frente para a sociedade. Visitei cidades grandes também, mas fui para lugares completamente remotos para mostrar que tem muito mais gente pensando no futuro do que você imagina, muito mais gente pensando no coletivo do que parece, muita gente preocupada com as questões que a gente não resolveu. Acho que os governantes da democracia também acertaram muito em várias coisas.

Pode citar alguns acertos importantes em sua visão?
O Fernando Henrique mesmo, durante seu período como ministro da Fazenda, e depois como presidente, enfrentou um problema que tinha 50 anos no Brasil, que era o da inflação. O Fernando Henrique começou, também no governo dele, a política de avaliação. Porque você não tinha um único indicador educacional, você não sabia o desempenho, não sabia o que o aluno estava aprendendo, o que os professores estavam ensinando. E agora você tem uma ferramenta, uma quantidade tão grande de dados que estão disponíveis. A estabilização que o FHC fez foi continuada pelos governos do PT, apesar do erro que a Dilma cometeu e que levou a inflação a dois dígitos. E também na época de FHC começou uma política de transferência de renda, e o governo Lula ampliou essa política. O que isso significa? Significa que o Brasil sabia que havia muitos pobres, muitos miseráveis, olhava isso, sofria muito, mas deixava para lá, e tinha de ter uma política pública que dá uma renda do orçamento dos nossos impostos para os mais pobres. É claro que você tem de buscar o depois da bolsa, mas isso aí é avanço do país que resolveu não se conformar em ter miseráveis. Apesar de todos os problemas que estamos enfrentando agora com a crise, a democracia criou uma boa burocracia, a democracia criou quadros, possibilidade de um Ministério Público eficiente, capacidade de investigação. A Polícia Federal, que investiga inclusive o governo, e juízes que estão tomando decisões que rompem um passado do nosso patriarcalismo, de erros cometidos durante séculos. Nós estamos avançando penosamente, cada passo desse foi difícil de dar. E vi os passos, vi como surgiu o amadurecimento dentro do pensamento da academia, as propostas de fazer política de transferência de renda. Vi como surgiram as ideias que levaram à estabilização brasileira. Vi planos econômicos fracassando e vi que o fracasso ensinou o sucesso, e o sucesso depende, às vezes, de olhar exatamente onde foi que errou, onde foi que acertou, para conseguir de novo de outra forma.

Em sua opinião, em qual ritmo o país está para resolver esse abismo existente que representa a desigualdade social? A gente está parado, em ritmo muito, muito, muito lento. A gente fez políticas de redução da pobreza, mas não conseguiu avançar na redução da desigualdade. A gente está muito atrasado até no trabalho de entender a natureza da desigualdade. Quem tem a história que o Brasil teve, de partição, de desapropriação, de escravidão – a qual foi prolongada por 350 anos e mais cento e tantos anos de discriminação –, acaba por construir uma coisa que chama desigualdade durável. Você tem de lutar contra essa desigualdade de forma muito forte. E é uma luta muito complicada. Então, essa é uma grande tarefa que o país tem de lidar daqui para adiante do seu futuro. O Brasil não pode carregar essa desigualdade como uma bola de ferro amarrada ao seu pé. Não se chega ao futuro com essa desigualdade, com esse racismo, não se chega ao futuro com essas partições na sociedade brasileira, não é desse jeito que se constrói o futuro.

Também não me parece que se constrói com a atual polarização que se vê em extensos debates e manifestações...
Se a gente continuar achando que tem pensamento de direita, pensamento de esquerda, e que o pensamento de direita é concentrador de renda e o pensamento de esquerda é distribuidor de renda. Se fizer essa divisão simplória, você está errando, porque o Brasil é muito mais complicado do que isso. A gente vem de uma outra coisa. As elites se apropriam do Estado, e isso está no nosso DNA. A direita clássica certamente é regressista e defende a desigualdade, acha que é normal por causa da meritocracia. A minha questão é que o pensamento da esquerda sempre foi autoindulgente ao falar algo como: “As minhas políticas são boas”. E, na verdade, às vezes são corporativistas, são concentradoras de rendas, são equivocadas, podem provocar o que as políticas recentes do PT provocaram, que foi o aumento da dívida pública e o aumento dos privilégios para alguns, como por exemplo Eike Batista e Joesley Batista.

Acredita que esse cenário polarizado será superado após as eleições de 2018?

O Brasil vai fazer no ano que vem a escolha do governante, então é da natureza dos anos eleitorais que a gente fique mais polarizado. No ano que vem, pode ser uma eleição muito fragmentada ou pode ser uma eleição muito polarizada, ou pode ser as duas coisas. Acho que a nossa contribuição, ou seja, a contribuição que os jornalistas devem fazer é aumentar o grau de informação e não se envolver na briga partidária. O nosso envolvimento tem de ser na briga das ideias, dos projetos, das coisas. Nessa série, nesse livro, a minha busca é de sobrevoar as divisões. Por quê? Porque nesse futuro do qual falo, essa divisão do país no ano que vem ou aquilo que divide o país nesse momento ou que coloca o jornalista no meio de um ringue, isso terá passado. A briga terá passado amanhã. Esses governantes vão passar. Então posso, de forma absolutamente tranquila, não olhar para Brasília, não olhar para a divisão partidária. O horizonte que estou falando, o horizonte do Brasil no século 21, é uma coisa mais adiante, que não fica nessa briga que, às vezes, não faz sentido nenhum no país.

Texto e imagem reproduzidos do site: livrariacultura.com.br