Foto: Bruno Veiga.
Publicado originalmente no site da Livraria Cultura.
O Futuro Existe.
Por Gustavo Ranieri.
Durante os 64 anos de vida e as quatro décadas dedicadas ao
jornalismo, em especial ao econômico e político, Míriam Leitão testemunhou um
Brasil que se transformou enormemente – em alguns dos períodos, como durante os
21 anos de ditadura militar, viu e sentiu esse processo de mudanças de forma
traumatizante –, em boa parte das vezes para melhor, mas que nem por isso
conseguiu se libertar de determinadas condutas e desigualdades assombrosas que
imperam nesta terra desde os tempos coloniais. Celebrou a reconquista do regime
democrático, pós-1985, acompanhou de perto governos trôpegos e registrou
grandes acertos que trouxeram o país ao século atual. Mas, do que experenciou,
daqueles que entrevistou e de todos os rostos que conheceu, sobrou uma
pergunta: por que o Brasil, sejam os governantes, sejam os governados, não
pensa no futuro?
A inquietação a motivou a se debruçar por quatro anos sobre
o assunto, até publicar, em 2015, o livro História do futuro – O horizonte do
Brasil no século XXI, pela editora Intrínseca – também são de sua autoria A
verdade é teimosa, Tempos extremos, Saga brasileira, além de três títulos para
crianças. Reeditada agora, é essa publicação que fez Míriam encarar sua mais
recente e enorme empreitada: levar as temáticas abordadas em 450 páginas para o
formato televisivo.
A série, que leva o mesmo nome do livro, estreou no fim de
outubro no canal GloboNews – onde ela é apresentadora – e pode ser assistida
até 21 de dezembro, sempre às quintas-feiras, às 21h30. Para isso, percorreu
durante seis meses 42.000 quilômetros pelo país, conheceu os diferentes biomas
e suas importâncias, a verdadeira diversidade que marca o povo e encontrou,
principalmente, em cada lugar e pessoa com quem cruzou, o reflexo dela mesma.
“Penso que esse é o momento para se ler ou reler o livro História do futuro,
pois a questão política está chegando a um momento de tomada de decisão. Não
indico uma decisão nem na série nem no livro, vai por aqui, vai por lá. Mostro
as políticas erradas e certas de governos diferentes. Para mim, o que interessa
é a política boa e a política ruim. Política boa, sucesso e fracasso das
políticas públicas, erro e avaliação do Brasil e acerto e avaliação do país. E
não interessa que partido. E meu livro e a série fazem olhar bem para frente.
E, portanto, essa é a contribuição que quero dar. Usei tudo o que aprendi na
minha maturidade profissional e, depois de rodar duas vezes o Brasil, uma para
o livro e uma para a série, pensei: olha, é isso o que tenho para contar, e cada
um tome a sua decisão e forme o seu pensamento.”
Em 2016, o economista Eduardo Giannetti lançou Trópicos
utópicos e a antropóloga Lilia Schwarcz lançou Brasil: uma biografia. Um ano
antes deles, você publicou História do futuro – O horizonte do Brasil no século
XXI, que acaba de se tornar uma série televisiva. E, de alguma forma, sinto
que, assim como na série, há uma mensagem de otimismo que se faz presente
nesses três livros que, de diferentes maneiras, voltam o olhar à nossa nação.
Como lidamos com o ser otimista frente a esse período tão duro que o país
atravessa? Olha, não é exatamente otimismo. É uma posição mais positiva quando
você analisa a questão para além da conjuntura, a qual, de fato, bombardeia
muitas coisas, como a nossa autoestima, a nossa confiança no futuro. Não me
comparo aos livros que você citou, e que são maravilhosos, pois o que faço é um
trabalho de jornalista, e o jornalista tem de fazer perguntas e buscar as
respostas. O que quero é passar as informações que fui buscar ao longo de
quatro anos para fazer o livro e agora mais seis meses rodando o Brasil [para a
série televisiva]. Trabalho o tempo todo pensando no futuro, mas tenho um
fio-terra que me puxa o tempo todo para uma conjuntura muito turbulenta. E a
conjuntura é turbulenta por várias razões: é uma crise econômica, a mais
prolongada da nossa história, uma crise política de contornos muito complexos,
e a mais profunda e corajosa investigação de corrupção com que o Brasil já se
envolveu e que poucos países do mundo teriam tanta coragem de investigar
profundamente. Tudo o que vemos não aumenta o meu pessimismo, ao contrário,
aumenta a minha confiança. Ao avaliar esses especialistas de várias áreas e as
possibilidades do Brasil, fiquei com a visão muito positiva, porque, sim, o
país pode e tem as ferramentas para construir um futuro de sucesso.
O primeiro capítulo do seu livro, assunto também presente na
série televisiva, é sobre a Floresta Amazônica. Recentemente, Temer aprovou, e
revogou após pressão popular, o decreto que abria a Reserva Nacional de Cobre e
Associados (Renca) para a exploração das mineradoras. Como você observou isso?
A primeira coisa que aconteceu é que ano após ano vinha
caindo a taxa anual de desmatamento, e o governo Dilma inverteu esse cenário,
deixando essa taxa aumentar. E aumentou porque a Dilma fez redução de áreas
protegidas para a construção de hidrelétricas; ela ultrapassou os sinais. É
nessa mesma linha que atua o Temer. Nesse sentido, há uma continuidade entre
Dilma e Temer, porque, se ela reduziu as unidades de conservação para a
construção de hidrelétricas ou hidrelétricas futuras, o Temer foi lá e fez isso
na Renca – ou tentou fazer. O interessante é que a reação das pessoas foi muito
forte e, talvez, ele não esperasse por isso. Houve uma decisão anterior, que
foi muito perigosa, e que não teve a mesma atenção. Trata-se da redução dos
limites da Reserva Jamanxim, no Pará, uma floresta nacional que é vulnerável e
importantíssima para o país. Há um padrão de comportamento nos últimos dois governos
de desprezo em relação à preservação da Floresta Amazônica, que não é só o
pulmão do mundo. Ela é um enorme e importantíssimo regulador do planeta Terra.
Outro dos temas marcantes do livro e que ganha destaque
também na TV é a educação, apontada por todos como o pilar fundamental para um
Brasil melhor e mais justo no futuro. Como foi revisitar esse tópico para fazer
a série?
Para qualquer pessoa que eu entreviste ou converse, costumo
perguntar: o que é mais importante para o Brasil? E eles dizem que é a
educação. Então, o título do capítulo se chama A maior das tarefas. É na
educação que a gente pode perder ou ganhar o futuro, o lugar mais decisivo da
nossa história. Então, posso contar várias histórias para você, posso contar
500 anos de erro, ou posso ter outra forma de olhar. E quem me ensinou sobre
essa outra visão foi o secretário-geral da Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE), José Angel Gurría, um mexicano que
entrevistei para o livro. Ele me disse que o Brasil está com um desempenho
educacional mais baixo do que vários países que têm o mesmo tamanho, mas é um
país que cresce mais rapidamente em relação a si mesmo. E como é que a gente
olha a educação? No livro, fui pelas histórias pessoais de sucesso e, na série,
fui visitar determinadas escolas que superaram desafios e que têm bom
desempenho em lugares improváveis.
E o que você (re)descobriu que possa ser uma luz no fim do
túnel?
Por exemplo, fui para o sertão do Cariri, na zona rural de
uma cidade chamada Brejo Santo, que fica a 500 quilômetros de Fortaleza e a 25
quilômetros do centro da cidade. Estava perdida por ali, estrada de chão,
peguei um caminho com um entroncamento e pensei estar na direção errada. Ao
chegar a um barzinho no meio do nada, perguntei: “Escuta aqui, a escola Maria
Leite de Araujo, onde é que é?”. Aí uma adolescente que estava lá falou: “A
Escola Nota 10? Ela vai estar por ali!”. Então essa escola, no setor rural de
Brejo Santo, é conhecida assim em uma esquina: Escola Nota 10. O Ceará está se destacando
no Ideb [Índice de Desenvolvimento da Educação Básica] do fundamental. E lá há
uma política de que as 150 melhores escolas ganham o título de Escola Nota 10.
E como bônus recebem um dinheiro para investirem na sua estrutura, um dinheiro
a mais para os professores, além da obrigação de ajudar uma das escolas que
estão com o pior desempenho a avançar. Elas criam uma espécie de sistema
tutorial com a outra escola. Depois, no Recife, visitei o Ginásio Pernambucano,
primeira instituição de ensino médio laico do Brasil, de 1825, e que não tem
evasão, que é o maior problema do ensino médio no país. E por que não tem
evasão? Eles não querem sair dali porque se sentem respeitados. No primeiro dia
de aula, os professores não estão, apenas ex-alunos. É uma sessão de
acolhimento. Os ex-alunos recebem os alunos novos e falam assim: “Olha, estudei
aqui e foi legal por causa disso e hoje sou isso”. Então os ex-alunos
permanecem ligados à escola. A participação dos pais é intensa e eles têm um
trabalho de projeto de vida: o aluno é incentivado a pensar sobre o que ele
quer ser e aí ele vai construir o seu projeto para alcançar seus objetivos.
Enfim, as políticas públicas resolvem o problema. Se você adotar esses
exemplos, se aprender com o que deu certo, o país pode avançar.
História do futuro começou a ser escrito em um outro momento
econômico do país. Você já vislumbrava aonde o Brasil iria em pouco tempo?
Comecei a escrever o livro no momento do crescimento
econômico. Coloquei-me no desafio de pensar o futuro na época em que o país
estava crescendo e eu sabia que haveria uma crise, então, se você pegar o meu
livro A verdade é teimosa, publicado neste 2017, lá estou dizendo sobre a
crise. E no História do futuro digo: “Vamos ter sucesso”. Até parece que foram escritos
por duas pessoas diferentes, mas não foram. Acontece que, neste atual, eduquei
meu olhar para o imediato e, no História do futuro, sou eu dizendo: “Olha, vai
virar uma crise, mas a crise vai passar e a gente tem de pensar em qual é o
nosso projeto, o que nós vamos fazer depois”. O primeiro passo para fazer o
livro, a primeira pergunta que fiz foi a seguinte: por que o Brasil não olha
para o futuro?
E qual foi a sua constatação?
O Brasil não olha para o futuro por várias razões. Entre as
minhas ideias, minhas suspeitas, está a de que o Brasil não olha para o futuro
simplesmente porque é um país de jovens, com quase cem milhões de pessoas com
até 29 anos. E está aumentando a expectativa de vida, e aumentará mais ainda.
Vou viver mais e farei o que com essa vida a mais que tenho? Por isso, estou
falando da expectativa coletiva. Essa sensação de que o Brasil não pensa o
futuro, talvez por ser jovem demais, ou por outras coisas, entre qualidades e
defeitos, é o que me levou a escrever esse livro. Que tal a gente olhar para
mais adiante? Que tal a gente esticar o olhar para o Brasil inteiro? Que tal a
gente parar de olhar a última crise de Brasília? Que tal a gente viajar pelo
país e ver quais são as outras realidades? A primeira linha do livro e a primeira
frase da série diz: “O Brasil está prisioneiro do imediato”. O Brasil está
prisioneiro do imediato, e isso impede o país de ver o futuro.
Mas quando você fala sobre o país não olhar o futuro, há
alguma divisão entre esfera política, ou seja, os governantes, e a esfera que
engloba a população como um todo?
Acho que não tem, tanto na esfera dos governantes quanto na
esfera dos governados, uma atitude de pensar no futuro. Sei lá, a Alemanha
pensa muito mais. Então estou falando da natureza mesmo, nós somos assim. E a
gente está amadurecendo, então a gente não pode continuar assim, achando que o
futuro vai ser uma coisa dada. A gente tem muito excesso de confiança em alguns
momentos, o que pode ser ótimo, mas há a impressão de que não é necessário
pensar sobre o futuro, e é. As pessoas precisam pensar na própria
sobrevivência, buscar o projeto delas, é claro, mas estarem atentas, inclusive,
ao fato da desigualdade, que é enorme no país, ou ao fato de que muita gente
está alheia à tomada de decisão coletiva. O que quero é incentivar esse debate
e, como agora estamos em um momento de polarização muito grande, a minha maior
preocupação foi tentar sobrevoar o conflito ideológico, ou conflito nem
ideológico, mas político, que há hoje no Brasil. No livro falo, porque tenho de
falar da crise que viria, peço até desculpa ao leitor, porque vou falar de uma
coisa conjuntural, pois preciso para a gente pensar em como construir o depois
da crise. Falo um pouco de alguns erros recentes dos governos que estavam nos
governando, que eram do PT, mas, nesse caso agora, do livro e da série, eu
realmente fiz toda a reportagem de costas para o poder, e de frente para a sociedade.
Visitei cidades grandes também, mas fui para lugares completamente remotos para
mostrar que tem muito mais gente pensando no futuro do que você imagina, muito
mais gente pensando no coletivo do que parece, muita gente preocupada com as
questões que a gente não resolveu. Acho que os governantes da democracia também
acertaram muito em várias coisas.
Pode citar alguns acertos importantes em sua visão?
O Fernando Henrique mesmo, durante seu período como ministro
da Fazenda, e depois como presidente, enfrentou um problema que tinha 50 anos
no Brasil, que era o da inflação. O Fernando Henrique começou, também no
governo dele, a política de avaliação. Porque você não tinha um único indicador
educacional, você não sabia o desempenho, não sabia o que o aluno estava
aprendendo, o que os professores estavam ensinando. E agora você tem uma
ferramenta, uma quantidade tão grande de dados que estão disponíveis. A
estabilização que o FHC fez foi continuada pelos governos do PT, apesar do erro
que a Dilma cometeu e que levou a inflação a dois dígitos. E também na época de
FHC começou uma política de transferência de renda, e o governo Lula ampliou
essa política. O que isso significa? Significa que o Brasil sabia que havia
muitos pobres, muitos miseráveis, olhava isso, sofria muito, mas deixava para
lá, e tinha de ter uma política pública que dá uma renda do orçamento dos
nossos impostos para os mais pobres. É claro que você tem de buscar o depois da
bolsa, mas isso aí é avanço do país que resolveu não se conformar em ter
miseráveis. Apesar de todos os problemas que estamos enfrentando agora com a
crise, a democracia criou uma boa burocracia, a democracia criou quadros,
possibilidade de um Ministério Público eficiente, capacidade de investigação. A
Polícia Federal, que investiga inclusive o governo, e juízes que estão tomando
decisões que rompem um passado do nosso patriarcalismo, de erros cometidos
durante séculos. Nós estamos avançando penosamente, cada passo desse foi
difícil de dar. E vi os passos, vi como surgiu o amadurecimento dentro do
pensamento da academia, as propostas de fazer política de transferência de
renda. Vi como surgiram as ideias que levaram à estabilização brasileira. Vi
planos econômicos fracassando e vi que o fracasso ensinou o sucesso, e o sucesso
depende, às vezes, de olhar exatamente onde foi que errou, onde foi que
acertou, para conseguir de novo de outra forma.
Em sua opinião, em qual ritmo o país está para resolver esse
abismo existente que representa a desigualdade social? A gente está parado, em
ritmo muito, muito, muito lento. A gente fez políticas de redução da pobreza,
mas não conseguiu avançar na redução da desigualdade. A gente está muito
atrasado até no trabalho de entender a natureza da desigualdade. Quem tem a
história que o Brasil teve, de partição, de desapropriação, de escravidão – a
qual foi prolongada por 350 anos e mais cento e tantos anos de discriminação –,
acaba por construir uma coisa que chama desigualdade durável. Você tem de lutar
contra essa desigualdade de forma muito forte. E é uma luta muito complicada.
Então, essa é uma grande tarefa que o país tem de lidar daqui para adiante do
seu futuro. O Brasil não pode carregar essa desigualdade como uma bola de ferro
amarrada ao seu pé. Não se chega ao futuro com essa desigualdade, com esse
racismo, não se chega ao futuro com essas partições na sociedade brasileira,
não é desse jeito que se constrói o futuro.
Também não me parece que se constrói com a atual polarização
que se vê em extensos debates e manifestações...
Se a gente continuar achando que tem pensamento de direita,
pensamento de esquerda, e que o pensamento de direita é concentrador de renda e
o pensamento de esquerda é distribuidor de renda. Se fizer essa divisão
simplória, você está errando, porque o Brasil é muito mais complicado do que
isso. A gente vem de uma outra coisa. As elites se apropriam do Estado, e isso
está no nosso DNA. A direita clássica certamente é regressista e defende a
desigualdade, acha que é normal por causa da meritocracia. A minha questão é
que o pensamento da esquerda sempre foi autoindulgente ao falar algo como: “As
minhas políticas são boas”. E, na verdade, às vezes são corporativistas, são
concentradoras de rendas, são equivocadas, podem provocar o que as políticas
recentes do PT provocaram, que foi o aumento da dívida pública e o aumento dos
privilégios para alguns, como por exemplo Eike Batista e Joesley Batista.
Acredita que esse cenário polarizado será superado após as
eleições de 2018?
O Brasil vai fazer no ano que vem a escolha do governante,
então é da natureza dos anos eleitorais que a gente fique mais polarizado. No
ano que vem, pode ser uma eleição muito fragmentada ou pode ser uma eleição
muito polarizada, ou pode ser as duas coisas. Acho que a nossa contribuição, ou
seja, a contribuição que os jornalistas devem fazer é aumentar o grau de
informação e não se envolver na briga partidária. O nosso envolvimento tem de
ser na briga das ideias, dos projetos, das coisas. Nessa série, nesse livro, a
minha busca é de sobrevoar as divisões. Por quê? Porque nesse futuro do qual
falo, essa divisão do país no ano que vem ou aquilo que divide o país nesse
momento ou que coloca o jornalista no meio de um ringue, isso terá passado. A
briga terá passado amanhã. Esses governantes vão passar. Então posso, de forma
absolutamente tranquila, não olhar para Brasília, não olhar para a divisão
partidária. O horizonte que estou falando, o horizonte do Brasil no século 21,
é uma coisa mais adiante, que não fica nessa briga que, às vezes, não faz sentido
nenhum no país.
Texto e imagem reproduzidos do site: livrariacultura.com.br