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sábado, 2 de dezembro de 2017

À beleza, ainda que não haja concerto

Foto: Leo Drummond

À beleza, ainda que não haja concerto.
Por Gustavo Ranieri.

Há um ano e meio, Matheus Nachtergaele estreou no Rio de Janeiro o espetáculo Processo de conscerto do desejo, tendo circulado depois por muitas outras cidades. Precisava, em suas próprias palavras, consertar seu desejo com poesia. Para isso, propôs uma peça simples, como o teatro é em sua essência, e profundamente íntima. Em cena, apenas o ator, dois músicos – Luã Belik no violão e Henrique Rohrmann no violino – e os poemas de sua mãe, Maria Cecilia Nachtergaele, que, em 1968, aos 22 anos, se suicidou, deixando no berço do filho, com três meses de idade, uma carta e pouco mais de duas dúzias de escritos, os quais foram entregues a ele quando já estava com 16 anos. “É uma pequena grande obra”, enfatiza.

Do contato inicial na adolescência com esses textos até a estreia da peça, que volta ao cartaz neste mês, em São Paulo, no Teatro Raul Cortez, foi necessário tempo, mais precisamente 30 anos. Tempo para que os versos fermentassem naturalmente, para que a dor pudesse ser vista de fora, ainda que as raízes estivessem dentro; tempo para que a beleza na vida iluminasse o que era morte, para se compreender o que é de difícil compreensão, mas também para Matheus Nachtergaele se construir na ausência e na presença da arte e da vida em si. Tempo, acima de tudo, para trazer Maria Cecilia ao palco – e publicar um livro dela com as poesias, intitulado A mariposa (Polvilho Edições) –, e como ator e como filho recitar os poemas da mãe em uma ordem que segue sua dramaturgia. “Estou aqui em minha pequena dimensão tentando fazer um espetáculo sobre a ternura de transformar o que era triste em alegria”, conta.

Com 49 anos e uma lista enorme de trabalhos como ator, do reconhecimento a partir de sua próspera passagem pela companhia Teatro da Vertigem, nos anos 1990, passando por trabalhos em novelas e minisséries da Rede Globo, aos premiados papéis no cinema – além de ter dirigido o filme A festa da menina morta e estar a escrever novo roteiro –, o artista acredita que seu ofício, ou melhor, o ofício de todo ator, é o de ritualizar o cotidiano das pessoas, a experiência do ser humano.

Vivendo no Rio de Janeiro, mas também em sua chácara na mineira Tiradentes – onde o ensaio fotográfico que você vê nestas páginas foi feito –, Matheus Nachtergaele concede a entrevista a seguir como um rito. Tem pausas profundas e ideias encadeadas; te envolve como se estivesse a revelar um enigma. Quero saber se o tempo – mais uma vez ele – com o espetáculo em cartaz consertou o seu desejo. Mas a resposta, como se vê, tem muitas outras camadas.

O Processo de conscerto do desejo nasce e está na poesia da sua mãe. Ser poeta é um dom ou é uma ausência?
Ser poeta é uma ausência das leis naturais. É a única criação genuinamente humana. É uma ausência se você imaginar o destino traçado pela natureza, mas é um dom se você imaginar a possibilidade da construção da fé humana. A poesia é a característica mais bonita, talvez a única que valha a pena.

E ser ator?
Eu vou escolher ausência de novo, do ponto de vista das leis naturais. Acho que o ator é esse ser que tenta ritualizar a vivência cotidiana ou a vivência natural a cada encontro com comunidades. Ele tem por vocação, por dom, a obsessão de tentar transformar em ritual a experiência humana, cotidiana. Muito parecido com o que acontece com o poeta, um desejo de procurar dar uma forma subjetiva ao que seria uma lei, uma norma natural. Ser ator é um pouco isso, é esse animal humano que tenta entender os processos de ser homem.

Mesmo consciente de que talvez nunca se entenda?
É, acho que ele também é um instrumento da comunidade. Eu entendo vocação muito por aí, como os instrumentos possíveis para a humanidade se elaborar. Tem as vocações para a cura, então são os médicos, tem as vocações da coletividade, tem as vocações profundamente políticas, de organizar a sociedade; enfim, tem algumas vocações bem claras para mim e que precisam ser cumpridas. Alguns seres humanos são utilizados para que esse processo rumo a uma humanidade possa ir acontecendo. Isso é a vocação. Acho que a sociedade precisa dos atores para ver ritualizada a sua experiência, seus mitos, seus tabus, para se horrorizar e para rir da condição humana.

E há alguma outra vocação sua que a gente desconheça ou atuar sempre foi a principal?
Acho que foi, mesmo quando não sabia. Todos os meus talentos acabaram desembocando na cena. Sempre gostei muito de ler e escrevo bem. Gosto muito de desenhar e até cursei dois anos de artes plásticas na FAAP antes de ser ator; fiz curso de animação quando era menino. Tudo desaguava no ator que sou. Então, talvez a vocação principal seja essa mesma, da ritualização da vida. Mais do que ser ator, mas a ritualização da vida mesmo. E percebo mesmo fora de cena, no meu cotidiano, a minha tendência aos rituais, seja na organização da casa, cuidar dos bichos, regar as plantas, a hora de ler, os momentos de silêncio. Percebo que tenho uma tendência a isso de forma muito organizada, e também uma tendência a uma ritualização orgástica, a exemplo das Bacantes, fases da minha vida que fui a um Carnaval interior incessante, uma coisa muito alegre e muito dolorosa também. Minha vocação é para o rito, não o religioso, mas o teatral. Mas, embora eu seja instrumento e proponha algumas liturgias pagãs, não abarco o todo da experiência. Tenho meus problemas pessoais mesquinhos como todos. Nem tudo o que acabo vivenciando em cena consigo utilizar imediatamente como crescimento para mim.

Mas acaba por estar em você, não?
Aos poucos, isso vai acumulando em você, vai aprendendo coisas. Acredito que o chamamento é para sermos uma humanidade mais humana. E sou atingido por tudo. Além de fruto das minhas experiências cromossômicas, lembranças genéticas, da minha criação familiar, da minha classe social e cultural, também sou fruto das vivências teatrais e cinematográficas que tive. Não passei ileso por Jó [seu personagem no espetáculo O livro de Jó, feito em 1995 pelo Teatro da Vertigem], não passei ileso por [Anton] Tchekhov, não passei ileso por [Ariano] Suassuna. Essas coisas vão me ensinando e mexendo em medidas muito humanas.

Antes de estrear Processo de conscerto do desejo, há um ano e meio, você declarou no texto de divulgação da peça que queria consertar seu desejo com poesia em um concerto. Esse almejo foi alcançado ou as descobertas no tablado abriram uma brecha de busca maior?
Esse desejo vai mudando de lugar. Agora percebo que a peça está muito em uma fase inicial de transformação constante. Não é à toa que as pessoas dizem que é possível ficar anos e anos em cartaz com um espetáculo e aprender todos os dias. A peça te ensina coisas e te derruba algumas vezes. Coisas que você imaginava ser passam a não ser, gangrenam, e você tem de criar mesmo novas expectativas para o seu ritual ficar vivo. E aqui mexo em um material que é a minha dramaturgia primeira: os poemas da Cecilia são o meu primeiro texto, o primeiro que li com uma atenção maior; eram os textos da minha mãe, da mãe que não conheci. Eram bons e agora, em uma certa etapa da minha vida, decidi tentar falar. E a cada dia vou descobrindo nuances, zonas dos poemas que não percebia. E musicalmente também a peça vai se transformando, a partitura vai se ajeitando... Então, diria que o desejo migrou um pouco. Uma primeira expectativa que tinha, de conseguir fazer uma coisa junto com mamãe e conseguir entregar de maneira artística um material muito íntimo meu, isso foi cumprido, isso tem sido cumprido. E agora meu desafio diário é garantir que não seja uma experiência neurótica para nós todos que estamos lá.

De que maneira?
Tocando no universal que nós temos. Dizem que, quando você fala no seu quintal, você fala para o mundo. Confio nisso, acho que desde o início é muito mais do que só os poemas da Cecilia, minha mãe que se suicidou, isso é sobre as mães que se vão, sobre as expectativas que são frustradas, sobre a reconstrução da tragédia em ensinamento. Agora, neste momento, me sinto muito ocupado todas as noites em fazer com que o ritual ultrapasse as minhas questões, que ele seja de todos.

Que o público não vá ver apenas a experiência pessoal do Matheus...
É, acho que esse é o desafio dessa peça todo dia. Mas tenho um bom ponto de partida, que é a piedade, e a piedade é um bom start para o trágico. Na tragédia, a gente está apiedado do herói, somos ele em algum nível. Quando estamos na comédia, a gente está afastado do herói, criticando, negando, a gente está comprometido com o patético da experiência humana, mas negando o herói. É o que todos sentem por Jesus, piedade, um negócio que te compromete, te mistura, te dá medo. Então, acho que, quando começo a peça e coloco a situação “mamãe se matou e esses são os poemas dela, fiquei eu aqui e farei disso um espetáculo”, parto de um pressuposto bonito para a catarse coletiva, as pessoas se apiedam. E tento fazer com que a gira seja de todos, sobre as coisas que se perdem e precisam ser ressignificadas.

Não houve um incômodo, um receio de ser visto com dó em algum momento?
O público deve ter dó, é importante que ele tenha dó do herói. A parte mais complexa aqui é que é uma história pessoal. Mas não tive medo. Fiquei mais observando se seria uma experiência que extrapolaria minha história pessoal ou não. As pessoas ficam apiedadas da minha história com a Cecilia, mas se sentem comprometidas também em muitos outros aspectos. Percebi desde o primeiro dia que as pessoas imediatamente se conectam com dramas familiares e, principalmente, com as ausências bruscas do afeto, coisas que são parte da experiência humana e que não têm jeito.
Faz parte da vida de todos, em menor ou maior grau.
Sim, de todos. Mas sabe qual é a parte bonita, Gustavo? É que, se você não romper com pai e mãe, você também não cresce. Então, o espetáculo tem uma coisa generosa e alegre, no sentido de alguém que sobreviveu bem a uma separação com a mãe e que está fazendo disso um ofício. Então, tem um negócio bacana, luminoso nisso. As pessoas têm de romper mesmo com pai e mãe. Muitas vezes me senti triste com tudo o que aconteceu com a Cecilia e comigo, mas não nego que isso me deu instrumentos bacanas. Sou um órfão e sei sobreviver sem a presença dominadora e extremamente carinhosa de uma mãe. E venho tentando através do espetáculo utilizar o que ela me deixou, que são poemas. Estou tentando transformar esses poucos poemas em muito. É uma peça, é uma vivência, faço alguma coisa com eles, me possibilitaram voltar ao teatro depois de muitos anos e fazer teatro da maneira que acho que deve ser feito, como um ritual, com poucos elementos tecnológicos. Alguma coisa realmente acontece no encontro com as pessoas, a música ao vivo, uma comunhão com simplicidade. Não confio nessa coisa louca tecnológica de hoje, quando a gente mal sabe olhar nos olhos uns dos outros. Mas fica todo mundo no “zap zap” [referência a aplicativos como o WhatsApp].

Você acha que essa tecnologia digital que a gente vive hoje, de alguma maneira, afastou as pessoas delas próprias?
Não sei se delas próprias, mas dos outros. E acho que é difícil a gente ver um mundo melhor se a gente não passar pela tortura de amar o próximo. É uma tortura mesmo, o próximo incomoda. Tem diferenças, mas isso que é o amor, essa tentativa de abarcar a diferença em prol de uma vida mais bacana. E isso é para todo mundo, para nós humanos, para as samambaias, paras a avencas, para as rãs.

E o espetáculo também é de encontro com o outro e vem de um outro, já que é oriundo dos poemas de sua mãe.
Exatamente, e só posso fazer se tiver uma outra pessoa, mesmo que seja só mais uma pessoa, que é o público. Sempre vamos precisar de alguém. Estou sinceramente preocupado com o afeto digital. Primeiro, tenho certeza absoluta de que essa aceleração nos escraviza. Não acho que nos liberta como foi prometido, pois o grande papo era esse, de ganhar mais tempo. Hoje em dia, se você não responde um e-mail ou um “zap zap” na hora, as pessoas ficam preocupadas. E outra coisa é que, com as mudanças dos afetos, pessoalmente não me agradam as relações amorosas e afetivas passando pela internet. Tenho saudade de uma roça afetiva (risos), que você tem de paquerar, tem de ir atrás, ir lá na esquina para ver se encontra de novo, tem de pagar mico, ouvir não na cara. Meu Deus do céu, acho que a gente deu uma ré. E graças a Deus a poesia fica eterna, publicada nos livros, para que a gente se lembre de que, em algum momento, a gente estava tentando dar um voo bonito. Mas não sou pessimista. Senão nem faria essa peça, não me exporia a esse grau. Acho que tenho um encanto pelo encontro humano, pela poesia e pela natureza ao meu redor. Sou encantado pelo mundo, gosto de estar aqui, acho bonito, acho bonito mesmo estar aqui. Gosto de ver beija-flor beijando flor, água corrente, gosto de estar aqui.

Você consegue enxergar a beleza dos detalhes, né?
Vejo a beleza e o horror com espanto. Mas já disseram que o horror tem também sua beleza, a beleza na doença, nas catástrofes naturais. Mas continuo sendo aquele que queria que a gente desse uma ré em direção a uma coisa mais humana e poética. Não sei se é possível. E sinto isso e acho que conquistei isso na minha vida. Meu trabalho é assim. Foi uma luta, viu? Tive de dizer muito não para uma aceleração, para uma dinheirama, para um chamamento de aceleração louca, histérica.

Que poderia te levar para um patamar mais rico materialmente...
Conquistei o maior luxo de todos: tempo. Realmente consegui ter tempo e, quando me aceleram demais, freio as pessoas. Não vou cumprir essas coisas nessa meta louca. E olha que sou supercapricorniano, pontual, organizado. Acho que o ser humano não precisava mais viver assim, nesse desenfreio de cumprir uma tarefa.

A primeira vez em que teve contato com os poemas de sua mãe, você tinha 16 anos. De que forma os 30 anos que se passaram até a estreia do espetáculo foram necessários?
Foram absolutamente necessários, não deu para queimar etapa nesse sentido. Desde o início, imaginei que alguma coisa deveria ser feita com os poemas para além da minha apreciação individual. As poesias tinham uma qualidade para além da minha experiência com elas. Eu teria de publicar um livro em algum momento... Mas fui cozinhando isso enquanto estava me formando como ator, como pessoa, porque tudo é uma coisa só, até sentir que conseguiria criar um ritual coletivo e não expor isso de maneira neurótica. Precisei de tempo sim, de novo o luxo do tempo, e em certo momento a coisa eclodiu. As minhas gestações são lentas mesmo. Lembro que fiquei dez anos fazendo o roteiro de A festa da menina morta [filme que dirigiu e foi lançado em 2008] e a Vânia Catani, produtora do filme, queria tanto filmar e eu adiava, dizendo que não estava pronto para começar a envolver as pessoas (risos). Mas percebo que produzo bastante mesmo como ator. É uma conquista realmente ferrenha para ganhar tempo e fazer as coisas realmente bonitas, mas sempre encantado com a ritualização do cotidiano brasileiro. Eu tenho tido uma chance bacana de fazer personagens que investigam o que é brasilidade e me entrego a isso com muita paixão, me misturo com eles, vou para os lugares, fico neles tentando amar as pessoas. Não digo que consigo sempre, mas que eu tento, eu tento (risos). Até a mim mesmo. Nós todos somos uma tentativa. O êxito nunca será pessoal, sempre do coletivo, e nossas cagadas são de todos também.

Somos uma tentativa com objetivo final ou sem a obrigação de um?
Acho que é um objetivo de uma vida melhor, é isso que ela quer. Esse amorzão bonito, essa coisa que algumas pessoas chamam de Deus, esse fluxo, movimento, tentativas para a vida ser melhor, mais bonita, mais fácil. Somos uma tentativa arriscada da vida, a qual nós mesmos ameaçamos hoje. Quem sabe dá certo.

A cada nova apresentação de Processo de conscerto do desejo, você se sente reconstruindo sua história, a ligação com sua mãe, vendo novas versões de você mesmo?
Me apresenta novas versões, ao mesmo tempo me reafirma aquilo que sou todas as noites. Tenho tentado ser muito sincero na exposição dos meus limites e no que eu trago de bom. No oferecimento dos talentos da mamãe também. Herdei esses poemas e, meio que sem pedir licença para ela, estou dizendo: “Olha, é tão bonito que vou mostrá-los. Você quis ir embora, mas não conseguiu não. Está aqui”. E essa dúvida constante também está no palco. Tem dias em que sinto que joguei luz sobre alguma coisa sombria de algum poema ou de alguma zona nossa sobre o suicídio ou sobre a ameaça da tristeza. E outros dias me sinto fracassado, percebo que perdi a batalha e que chorei como Matheus diante um público que estava lá para assistir a um espetáculo de arte; dias em que de repente caí de joelhos ali e falei: “Mamãe, cadê você, mamãe? Volta para eu não ter de fazer essa peça” (risos). Mas é muito gostoso tudo, adoro fazer o que faço.

Você fala de uma paixão pela existência e ao mesmo tempo faz um espetáculo com os poemas de uma mãe que, por algum motivo, muito jovem, decidiu não continuar nessa vida. Hoje, fazendo a peça, você consegue compreender um pouco do que passou com ela para não querer estar aqui?
Não! (silêncio) Eu consigo, claro, entender o processo de desamor pela vida. Admiro muitas pessoas que desamaram a vida, não só a mamãe, mas grandes poetas, músicos... Observei esse processo e já senti isso em alguns momentos. Gostar da vida é uma batalha diária na série humana. É um braço de ferro, e a vida acontece sob pressão. E cada vez que você encontra um motivo bacana para gostar das pessoas, para viver, para cumprir um ofício, para namorar alguém, para ler um livro, é gol. Não vou te dizer que entendo mais o que aconteceu com a Maria Cecilia do que antes, é um mistério para mim e estou comprometido com isso tudo. E, obviamente, parte de mim fica triste por saber que minha presença não foi suficiente para ter segurado essa mãe na Terra, mas, ao mesmo tempo, venho fazendo uma afirmação pela liberdade plena do ser humano. E acredito que o suicídio é, em última instância, a grande questão humana. Se você tem livre-arbítrio, se você é livre, você tem de decidir se quer ficar aqui, mesmo que haja o chamamento e o desejo de viver, reproduzir-se, ser mais feliz. Mesmo que essa energia, essa força, seja grande, a questão humana é decidir se quer ou não. E a gente faz isso de muitas maneiras. A gente está aqui sendo feliz ou se suicidando? Eu não sei mais. Toda noite vou ali pensar isso com as pessoas. Isso é bonito, né?

É bonito, a beleza da decisão.
Tem pessoas que são muito pela vida, são luminosas em seus objetivos, em seus ofícios, gostam de transmitir o que aprenderam. Os amantes da vida são bravos, porque a defendem. E não conseguem ficar calmos com o que os políticos estão fazendo.

Aliás, como você compreende esse momento político?
Tento evitar falar muito frontalmente sobre política, embora ache que todo o meu trabalho é muito político, por causa dessa tentativa sincera de entender o homem simples brasileiro. Fiz um trabalho muito grande e o faço ainda para o brasileiro gostar do seu cinema, acreditando profundamente que isso é uma boa para todos nós. Sempre tento evitar participar de coisas americanizadas, comédias bestializantes, enfim, trago um elogio a uma brasilidade, porque o país tem uma série de características e motivos para fazer uma vida em que a poesia é a práxis. Temos isso como vocação interior, temos no DNA, não sei se tem a ver com a mistura de origem, com a generosidade natural que cerca a gente, com a libido que toma o brasileiro, que é o tesão pela vida. Mas acho que a gente tem a faca e o queijo na mão para o Brasil inaugurar um novo mundo, mas não fazemos, aceitando ser massa de manobra. E tudo pode estar ficando tarde. Politicamente, é assim que me coloco, preocupado. É como se a gente tivesse vendido quase tudo.

E fosse necessário o processo do zero para construir algo novamente?
Quando aconteceu o impeachment, desanimei do Brasil, não totalmente, porque continuo amando-o, acho chique ser do Brasil. Estou usando um termo jocoso, mas é verdade. Acho muito chique mesmo ser do Brasil do que de outro lugar. É uma honra, um negócio legal. Todo mundo gostaria de nascer aqui. Aqui tem fruta, tem sexualidade, tem muita música, aqui é a melhor sonoridade do mundo. Isso não é pouco.

Apesar de tudo, você então é dos que amam a vida, né?
Sou dos que amam, apesar de ter momentos sombrios como todo mundo e já ter entrado em alguns abismos. Mas amo, gosto de viver e espero dias melhores para nós. Tenho uma consciência clara de que melhor só para mim não existe. Ou é melhor para todo mundo ou não é melhor para ninguém. Não seria feliz em um paraíso artificial, em um tríplex, com ar-condicionado, cheio de tecnologias.

Texto e imagem reproduzidos do site: livrariacultura.com.br