TATIANA REIS/ESPECIAL PARA O HUFFPOST BRASIL
Do Quilombo à Universidade: As raízes da ativista Givânia
Silva
A ativista denunciou poderosos do agronegócio e até hoje
luta pelo reconhecimento de seus territórios. “A educação é o que pode
realmente transformar a nossa vida."
By RYOT Studio e CUBOCC
Ela nasceu num quilombo no sertão de Pernambuco, a 560
quilômetros de Recife. A história conta que seis mulheres escravas chegaram ali
e formaram uma comunidade em busca de liberdade. Elas fizeram a promessa de que
se um dia conseguissem se tornar donas do território, iriam construir uma
capela em homenagem à santa de devoção. Assim nasceu Conceição das Crioulas em
1802. Assim também começa a história de Givânia da Silva, 52 anos, que se
formou naquele povo, se tornou professora — a primeira da comunidade — e
ativista que nunca se calou para as forças que a tentavam diminuir e que hoje é
referência na luta de condições melhores para os povos quilombolas.
A terra daquelas mulheres que lutaram para conseguir seus
papeis com a venda de algodão que plantavam e colhiam passou por mudanças ao
longo dos anos. A comunidade cresceu, o agronegócio apareceu e os fazendeiros
invadiram parte das terras. Ao lado do quilombo estava o povo indígena Atikum,
onde o pai de Givânia também era descendente. "Sempre me vi, no entanto,
como mulher negra, essa é minha história", aponta. Ela cresceu para tentar
ir além. "Não tive tempo de viver a adolescência, por exemplo, como menina
da roça eu precisava trabalhar e ajudar em casa".Grande parte da
comunidade quilombola só estudava as séries iniciais, Givânia foi atrás, ainda
que o acesso à escola fosse difícil. Fez supletivos e depois começou a ensinar
dentro do quilombo. Foi a primeira a se formar como professora na comunidade.
Pra mim, tudo começa em torno da história dessas mulheres em
busca de um território.
Quando começou a dar aulas que ela passou a tomar
consciência da própria história. "Sentia a necessidade de conhecer melhor
a história de Conceição. Na época, também tinha entrado na pastoral da
juventude e campanha era 'nosso povo, nossa história' então, fui atrás. Comecei
a me perguntar o que tinha acontecido ali, ir atrás dos mais velhos e
entrevistar mesmo", conta. Nessa trajetória começou a tomar consciência de
muita coisa. "Fui descobrindo que os fazendeiros que eram gente boa, que eram
compadres de todo mundo, mas na verdade, tinham usurpado a terra do nosso
povo", aponta.
Para reconstruir a história do seu quilombo, alguns espinhos
apareceram. Por começar a educar seu povo sobre o que estava acontecendo e por
fazer algumas denúncias, ela chegou a ser ameaçada de morte. "Eu ajudei a
tirar algumas máscaras, o povo não tinha ideia do quanto tinham sido enganados.
Sou uma sobrevivente. No dia que Marielle (Franco) morreu eu chorei muito, ela
não conseguiu sobreviver e eu ainda estou aqui. E as forças com que eu lutava
eram muito poderosas", relembra.
Tudo isso tem a ver com esse processo doido de luta, vivi
minha juventude toda ameaçada de morte e sou uma sobrevivente. Só quem
experimenta sabe.
O território sempre foi uma parte forte da trajetória de
Conceição. "Há histórias extraordinárias como a da cabocla Agostinha que
saiu a pé do quilombo pra uma audiência em Recife para conseguir os
documentos". Mas como forma de dominação, a terra foi tomada dos
quilombolas. "É uma luta que tem muitas frentes e você não pode perder a
esperança. Não é fácil lutar contra o racismo, um capitalismo selvagem, para
plantar soja e eucalipto que sequer é consumido no Brasil. E ao mesmo tempo
lidar com um latifúndio, que além de territorial é político. Tem horas que se
não tiver muita perseverança, a gente acorda e não levanta".
Givânia começou a se perceber neste meio social e se
movimentar. A primeira escola, onde ela foi diretora, foi criada em Conceição
em 1995. "Acredito que consegui testemunhar um dos grandes momentos de
revolução daquela comunidade. Começamos a obter o nome dos nossos a contar essa
história de outro jeito dentro de sala de aula. Era preciso revolucionar,
educar o povo", conta. Conceição das Crioulas é o único movimento no
Brasil onde no quilombo, o professor tem que ser quilombola. "Porque nós
acreditamos que queremos conduzir nossa educação. Falo com Deus sempre: 'deixa
eu ficar mais um tempo aqui pra ver outros quilombos experimentarem isso e ver
o que acontece'."
Quando eu conto a minha história tenho certeza do meu lugar
no mundo enquanto mulher.
Para tentar ir além, ela entrou na política e foi vereadora
por dois mandatos em Salgueiro para tentar fortalecer a luta quilombola, a
primeira pessoa do quilombo a ocupar um cargo legislativo. Além disso, foi uma
dos fundadoras da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais
Quilombolas (Conaq), que tem sede em Brasília, para colocar o tema em pauta.
Estima-se que existam mais de 6 mil comunidades quilombolas no Brasil, mas
apenas metade é reconhecida pelo Estado. Hoje ela faz doutorado na Universidade
de Brasília.
Em 2014, ela conseguiu celebrar uma grande conquista.
"Tive a oportunidade de estar no governo e devolver as terras que eu tanto
lutamos para termos de volta. Isso não tem preço. Qualquer dor, qualquer
renúncia nessa hora fica pequena porque eu estou vive e superei muitas
barreiras. Ajudei outras pessoas da minha comunidade a se tornarem
conscientes".
A educação é o que pode realmente transformar a nossa vida.
Apesar de ser uma comunidade criada por mulheres, Givânia
aponta que para "lá também tem machismo, mas nem sei se no céu não tem
também", brinca. "O que tem é uma história de protagonismo de mulheres
que até hoje persiste e um grande pilar onde encontramos um caminho de
resistência é a educação", aponta.
Givânia que é professora no município de Salgueiro e está
afastada por conta de um doutorado na Universidade de Brasília, não para. Não
deixa sua militância de lado e está sempre envolvida nos movimentos quilombolas
e está coordenando um livro sobre o assunto. "Tenho usado esse poder da
escrita que não é ainda de todos nós. Um lugar de poder militar também dentro
da academia e mexer nessa estrutura. Eu brinco que eu acordei linda assim e vim
pra cá, mas isso não é nem extraordinário, não basta só estar aqui. Este lugar
precisa ser mexido e é por dentro dessa estrutura hierarquizada branca e
racista que é a universidade pra ajudar a ser mais humanizado e com
diálogo", reflete.
Ficha Técnica #TodoDiaDelas
Texto: Tatiana Sabadini
Imagem: Tatiana Reis
Edição: Andréa Martinelli
Figurino: C&A
Realização: RYOT Studio Brasil e CUBOCC
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Texto e imagem reproduzidos do site: huffpostbrasil.com