Foto: Reprodução/Reuters
Publicação compartilhada do site SELECT ART, de 9 de janeiro de 2023
A Arte está em jogo
Historiadora da arte analisa as cenas da insurreição fascista em Brasília: o ressentido não cria; apropria-se e esvazia de sentido
Por Daniele Machado
Ontem, nas primeiras horas, em meio às imagens estarrecedoras da massa destruidora, destacava-se um indivíduo: um homem, com a cara pintada, vestindo uma peruca loira, sentou-se sobre o tablado do plenário da Câmara dos Deputados para escorregar. A aparente tranquilidade de seu gesto apontava para o ressentimento que move a este e a todos os outros terroristas ressentidos que invadiram a capital do país, Brasília – e, também, a todos os outros que, à distância, seguem apoiando os criminosos.
O ressentido não cria. Se apropria e esvazia de sentido. Coloca, no lugar, o nada. Não sabe o que é horizonte, utopia ou desejo. Ele quer, mas não sabe o quê, nem o porquê. Almeja a vingança, mas não sabe o que fazer depois. O ressentimento não tem uma imagem em si. Ele opera mecanismos imagéticos. No mais alto nível de desinibição, copia e não se envergonha. A ele não importa a História, nem a autoria. Como os mentirosos mais habilidosos, acredita nas próprias mentiras. No fundo, o ressentido quer é se vingar das frustrações pessoais, de suas insatisfações familiares, econômicas, sociais e sexuais. O ressentido quer que todos fiquem infelizes, tal qual ele é. Isso ficou explícito na invasão ao Congresso: sem encontrar resistências, um “brincou” de escorregar, outros encenaram os gestos dos deputados que ocupam a mesa diretora.
Os dois quadros pertenciam a um único, capturado pela câmera de outro ressentido. A composição histórica da pior qualidade tornava-se estridente diante das outras imagens das massas protagonizadas pela destruição material. A partir dela, é possível refletir sobre a destruição específica das obras de arte. A sequência de ataques terroristas, realizados na Praça dos Três Poderes, incluiu os Palácios do Planalto, do Congresso e do STF, todos projetados por Oscar Niemeyer, e seus respectivos acervos – como o esfaqueado óleo sobre tela Mulatas (1962), de Di Cavalcanti, e a escultura em bronze Bailarina (1920), de Victor Brecheret, possivelmente roubada.
Não houve sentido para esfaquear, roubar, pichar, quebrar, urinar ou defecar nas obras. Mas houve uma mensagem clara: para os terroristas, nada daquilo era arte. O que não é uma novidade, pois, nos últimos anos, há uma força fascista crescente para tentar deslocar a arte do lugar social infantilizado e passivo, para o ativo, pervertido e criminoso, que deve ser punido com a censura, no mínimo. A novidade está na energia catalisada que, em poucas horas, foi capaz de destruir décadas e, até, séculos de trabalho.
Nas últimas décadas, profissionais do mundo da arte vêm articulando estratégias em prol de desierarquizar, de “furar a bolha”, de deselitizar o campo artístico. Nenhuma dessas ações seria capaz de superar os lugares de poder que perpassam as relações sociais. Como reconhecer o valor e a função dos profissionais que fazem a arte acontecer, todos os dias, e, ao mesmo tempo, não corroborar a retórica moderna purista dos “especialistas” e a elitização desse campo de produção humana?
Os eventos criminosos desse fatídico 8 de janeiro de 2023 entram para a História sob diversos aspectos. No caso da arte, escancara que a arte nunca saiu de jogo e tentar se omitir ou escapar de seus aspectos políticos é alimentar o nosso próprio fim.
Texto e imagem reproduzidos do site: select.art.br