Publicado originalmente no blog Estante Virtual, em 06.09.2017
O coração selvagem de Belchior em biografia
Por Thayane Maria
O compositor de “Como nossos pais” nos deixou, mas segue
vivo como ícone nacional.
“Para todos os Belchiores: pelo direito de desaparecer” é
isto que se vê escrito em uma faixa de um bloco de Carnaval em Fortaleza,
Ceará, segundo Ednardo, parceiro de composição e amigo pessoal de Belchior. O
frenesi em volta da figura do cantor teve seu auge no ano de 2013, no qual as
principais emissoras do país começaram a noticiar o desaparecimento do
compositor, que viveu afastado da vida pública desde 2008.
O cantor alcançou o sucesso artístico e financeiro nos anos
1970, com o lançamento de seu primeiro LP, Alucinação. Os traços firmes de seu
rosto, o jeans desbotado, os versos cortantes e até mesmo seu inconfundível
bigode já eram grandes conhecidos do público consumidor de música no país. No
entanto, a revolução causada pelo músico nos últimos anos de vida o transformou
em um ícone – e para alguns uma lenda.
No lançamento de sua biografia Belchior – Apenas um rapaz
latino americano, escrita pelo jornalista Jotabê Medeiros, o amigo e parceiro
de composição Ednardo e uma das primeiras intérpretes de suas canções, Lucinha,
falaram com um público repleto de fãs e admiradores de Belchior. Com alguns dos
seus clássicos mais populares tocando ao fundo, o autor começou a falar um
pouco sobre o projeto: ” Eu percebi, após 30 anos trabalhando com jornalismo
cultural, ao revirar os arquivos e recortes de jornais antigos, que Belchior
não foi contemplado pelo jornalismo da época como merecia”, comentou.
Pelo direito de desaparecer
Apesar da importância da obra musical do cantor para a
música popular brasileira, a mídia não tinha prestado, até aquele momento, a
devida atenção ao artista: “O disco Alucinação foi eleito um dos 100 melhores
discos nacionais de todos os tempos, pela revista Rolling Stone. O que me
parece é que os jornalistas naquele tempo não tinham o debruçar crítico para
acompanhar a grandiosidade da obra dele, que é tão híbrida”, apontou o
biógrafo. A concretização da obra Apenas
um rapaz latino americano, para Medeiros, vai muito além de uma realização
pessoal: ” É o pagamento de uma dívida histórica para Belchior”, concluiu.
O amigo e parceiro musical do cantor, Ednardo, entreteve o
público contando histórias de quando ele e o músico moraram, com mais outros
amigos, ao lado de uma construção na capital Paulista – bastante no estilo dos
Novos baianos: “Os estudantes e os pedreiros eram os primeiros a ouvir as nossas
músicas”, contou o amigo, em tom nostálgico. A vida em comunidade trouxe
algumas dificuldades, como alguns problemas respiratórios causados pela poeira
da obra ao lado: ” O que para nós, que somos cantores, foi terrível”, lembrou
Ednardo – mas também rendeu frutos ao grupo. Em pouco tempo, o cenário musical
nacional foi dominado por diversos artistas jovens e cheios de ideias, como
Gilberto Gil, Caetano Veloso e Ednardo, o cantor e compositor Fagner, e claro,
Belchior: “Nós dois e Fagner éramos os únicos cearenses da Tropicália “,
ressaltou o cantor.
Lembranças à parte, para Ednardo, Belchior viveu para
quebrar paradigmas – entre eles, a ideia de que o cantor era apenas um ótimo
letrista, mas com recursos musicais limitados: ” Ele era um grande poeta, fazia
letras e músicas a palo seco, literalmente. O que ele gostava mesmo era de
cantar”, explicou. Outro paradigma era a imagem construída de que o músico
tinha uma personalidade árdua: ” Imaginavam ele como uma pessoa muito dura, por
conta dos versos cortantes das músicas dele. Mas ele era uma pessoa muito doce
e afável”, lembrou o amigo. A intérprete e amiga de longa estrada, a cantora
Lucinha, relevou: ” Todas as suas revoltas e raivas ele colocava nas músicas.
Por isso ele era uma pessoa tão doce, toda a parte pesada ia para a música. Ele
sempre foi muito educado e doce com todos”, completou a cantora.
Ao final da conversa, o autor Jotabê Medeiros conversou
conosco sobre as razões que o levaram a assinar a biografia do artista. Segundo
ele, além da nítida importância social e artística do cantor para o Brasil – o
compositor foi muito censurado por conta de suas letras políticas – o projeto
teve um cunho de realização íntima para o jornalista: “Fui convidado para
escrever uma biografia, mas recusei. A partir de 2013, na histeria ao redor do
sumiço dele, comecei lembrar a importância que o Belchior teve na minha vida,
na minha formação. Era o projeto que estava procurando, algo que me tirasse o fôlego
“, ressaltou.
Sobre as polêmicas que envolveram o nome do músico nos anos
que antecederam à sua morte, Jotabê revelou: “Não tirei conclusões no livro.
Belchior é um mistério. Ele entrou no hall dos grandes artistas, muito
sensíveis e que simplesmente não suportam mais as convenções sociais, as
máscaras, a cara de pau. Ele está junto de outros, como Kurt Cobain e Syd
Barrett, que se declaram incapazes de viver dentro das regras sociais”,
confessou.
Para o jornalista, as
letras de Belchior são atemporais – e um tanto proféticas. Nos versos de sua
canção Todo sujo de batom, de 1974, o músico dizia: “Nesses dez anos passados
(presentes) / vividos entre o sono e som”, Belchior, de alguma forma, cantava
exatamente o que iria acontecer nos últimos anos de sua vida – o seu isolamento
que durou 10 anos, no qual vivia apenas para realizar os seus desejos e as
ilusões, expostos tantas vezes em suas composições, que são tão intensas, cruas,
revolucionárias e selvagens quanto o seu intérprete.
Texto e imagem reproduzidos do blog.estantevirtual.com.br