No passado dia 28 de Outubro, tive a honra de ter sido distinguida pelo Rotary das Caldas da Rainha, como Profissional do Ano. Estas são as palavras que tive a oportunidade de proferir na ocasião.
Minhas Senhoras e Meus Senhores:
Caros Amigos:
Desde sempre, tenho tido as palavras por companhia.
De início, as palavras faladas, depois as lidas, recentemente algumas escritas e, só muito raramente, as palavras discursivas.
Por isso, confesso-vos o meu pouco à vontade e peço a vossa benevolência para os próximos, breves, minutos.
Desde já, quero expressar o meu profundo reconhecimento ao Rotary Club das Caldas da Rainha, que me distinguiu com a menção de profissional do ano. Mais do que o desempenho de um ano, sei que a vossa intenção é reconhecer todo um percurso profissional.
Aceitem, por favor, a minha profunda gratidão.
Tirando alguns anos de uma já distante juventude, tempos de muitas palavras lidas a que se seguiram anos de preparação profissional – em que as palavras tomaram um sentido mais técnico – e de uma breve incursão por outras áreas de actividade, tenho-me visto sempre a trabalhar com a palavra impressa.
A minha vida tem sido vivida entre livros.
Mas também como não fazê-lo se atender às palavras de Eugénio de Andrade?
“Os livros. A sua cálida,
terna, serena pele. Amorosa
companhia. Dispostos sempre
a partilhar o sol
das suas águas. Tão dóceis,
tão calados, tão leais.
Tão luminosos na sua
branca e vegetal e cerrada
melancolia. Amados
como nenhuns outros
companheiros
da alma. Tão musicais
no fluvial e transbordante
ardor de cada dia.”
Por razões que a razão desconhece, – traga-se à lembrança a sabedoria de outro poeta – condicionada pelos imprevistos da vida, a minha actividade como livreira e o meu percurso como caldense são quase coincidentes.
Desenvolveram-se em trajectórias paralelas, cruzando-se em acontecimentos e factos.
Certamente não seria uma coisa sem a outra. Os livros e a cidade em que vivo fundiram-se, entranharam-se em mim, e hoje sou como que uma amálgama moldada por essas vivências.
Não vou estar com falsas modéstias: orgulho-me de ter proporcionado aos caldenses a visita dos mais ilustres homens das letras portuguesas. Orgulho-me de ao longo de mais de trinta anos ter partilhado leituras com a cidade.
Não vou enumerar os escritores que trouxe até nós. Uns de maior nomeada que outros, mas todos eles com nome já inscrito na história literária e social portuguesa do século XX.
Repito: não vou recordar os seus nomes; eles estão certamente guardados na nossa memória colectiva. Oferecendo a sua presença à cidade, enriqueci-a na sua história cultural.
O que fiz, fi-lo com a grande satisfação de quem gosta do que faz, e contando sempre com o apoio incondicional daqueles perante quem respondo sob o ponto de vista da gestão comercial. E sempre, mas sempre, com a presença dos amigos…
As Caldas constituíram – sem equívocos – uma fonte de inspiração aos mais diversos escritores.
Fossem eles, cronistas, historiados, aventureiros, políticos, jornalistas, forasteiros, ou simples passeantes, sempre encontraram na nossa terra motivo de interesse, que passaram a palavra escrita. Convido-vos a folhearem comigo, algumas dessas páginas.
Impõe-se desde já a figura incontornável e mui solene da Senhora Rainha D. Leonor, que assim determina:
“E portanto nós, a Rainha D. Leonor, Mulher d’El Rei D. João, meu Senhor, que Santa Glória haja, o segundo que foi de Portugal,
[…]
determinamos e ordenamos em louvor de Deus e de Nossa Senhora A Virgem Gloriosa Maria, sua Madre, e por usarmos de caridade com os próximos, mandar fazer uma igreja da invocação de Nossa Senhora do Pópulo e um Hospital dentro em a nossa vila das Caldas, em que queremos que se cumpram as ditas Obras de Misericórdia espirituais e corporais quando possível for.”
Uma página adiante e pelas palavras de Nicolau Tolentino de Almeida, – lembram-se dele dos velhos tempos do liceu? É nos seus versos que saem colchões de dentro dos toucados… - ficamos cientes que:
“Não há nas Caldas
Melancolia
Dão alegria
Os ares seus.
Negras tristezas,
Adeus, Adeus.”
Avancemos …
Escutemos as palavras de Seixas Brandão, doutor em medicina pela Universidade de Montpellier, que no seu estudo “Análise e Virtudes das Águas Termais das Caldas da Rainha”, escreve:
“Os divertimentos das Caldas não são certos, eles variam conforme o género, a qualidade, o gosto e as posses dos que vêm cada ano; comummente, um pequeno jogo de cartas, a música, alguma coisa de dança, ocupa as noites nas casas que se patenteiam a estas recreações; […] os divertimentos de dia, são de manhã na Copa, de tarde nas partidas de prazer, em cavalgaduras pequenas, ao Senhor da Pedra, a Óbidos, à lagoa, ao Convento dos Padres Arrábidos das Gaeiras, ou em passear na cerca e quinta do Hospital, onde há, além do pomar, horta, jardim e vinhas, um delicioso bosque, cortado de várias e compridas ruas, nas quais, somente se conhece o artifício. Há também outras quintas ao redor da Vila e uma rua de loureiros à entrada dela para os exercícios mais moderados.”
Podia lá eu esquecer “Os Gatos” assanhados de Fialho de Almeida?
Ouçamo-lo:
“O que por agora me traz das Caldas às páginas ásperas e reputadamente hostis deste panfleto, é o desejo de fixar uma expressão do génio de Bordalo, que me parece ainda pouco conhecida, e de fazer a exacta reportagem duma das obras mais estranhamente originais que há muito tempo vêem luz na escultura do pais.”
Contundentes as palavras do caldense Raul Proença:
“As Caldas da Rainha são uma das terras mais banais do pais, (construções de péssimo gosto) mas uma estação de verão agradável (…) e um centro de admiráveis excursões.”
Chamo agora, outro autor caldense: Luís Teixeira.
Escutemo-lo:
“Naquele tabuleiro da Praça, onde, em menino, me entretive a riscar os primeiros desenhos com os rígidos carvões dos arco-voltaicos que outrora a iluminavam, ainda assisti a esse espectáculo alucinante, de desarmónicas estridências em que a música velha discutia, sinfonicamente, com a música nova as suas divertidas rivalidades, num duelo de polcas e mazurcas, competição que esgotava o fôlego dos cornetins entusiasmados e deixava pálidos e ofegantes, tontos de canseira, os pobres mestres que regiam essas fabulosas bandas de outras eras.
[…]
Passava por ali o círio a caminho da Senhora da Nazaré, entre um coroa de loas e gordos cestos de rescendentes petisqueiras, levando o deslumbramento da berlinda doirada e dos pendões coloridos que deixavam nas nossas ruas e na minha imaginação juvenil a imprecisa sensação de que uma estrela cadente rolava sem demoras pelas estradas da vizinhança do termo.”
Obrigatório: ouvir Ramalho Ortigão.
E quem senão ele, para falar sobre a obra de Rafael Bordalo Pinheiro?
“No interior deste edifício, ao longo de balcões ornados de lambéis nacionais, e de chitas da Índia e da Pérsia, acha-se instalada a venda das louças artísticas das Caldas, as mesmas que em Paris, há dois anos, fizeram a reputação artística de Portugal e o inesperado encanto do mundo. […] É toda uma narrativa iconográfica .
Ao longo destas diferentes peças de faiança, passa um largo trecho da história popular da nossa terra, das nossas conquistas e descobrimentos, das nossas crenças, dos nossos usos.
[…]
Assim, quando no século XX hajam desaparecido todos os demais vestígios da nossa actividade nacional, a sobrevivência de uma peça artística da louça das Caldas da Rainha, testemunhará que em nossos dias a terra portuguesa encontrou entre os seus naturais um Lucca della Robia, que, amassando-a em água e modelando-a nos dedos, a fez falar ao mundo em nome da poesia tradicional e do talento hereditário da raça lusitana.”
Dando agora um grande salto, - só possível no mundo imaginado da criação literária, - e a finalizar esta breve incursão pelo vasto universo dos dizeres caldenses, as incontornáveis palavras do prémio Nobel – o único prémio Nobel da Literatura em língua portuguesa – José Saramago:
“Onde se está bem é no jardim. Ao mesmo tempo íntimo e desafogado, o jardim das Caldas da Rainha é, para usar o nariz de cera, um lugar agradável.
[…]
O viajante senta-se por aqueles bancos, divaga ao longo das suas áleas, vai vendo as estátuas, naturalistas por via de regra, mas algumas de boa factura, e depois entra no museu.”
Fico por aqui neste enumerar de citações caldenses.
Muito mais haveria para dizer; algumas simpáticas, outras, menos agradáveis.
Uma questão se me levanta: que escreverão os escritores de amanhã sobre as Caldas de hoje?
Que motivos criámos nós, que os façam sentirem-se rendidos ao tema?
Que inspiração lhes oferecemos?
Limitar-se-ão … … a deixar as páginas em branco?
Faço esta pergunta porque neste momento, preocupa-me o presente e muito mais o futuro.
Esta preocupação é sentida no meu dia a dia de prática comercial.
Temos vindo a assistir a profundas modificações sociais com particular incidência no tecido económico.
Surgem dificuldades motivadas pela existência de factores estruturantes exógenos, sobre os quais não temos qualquer controlo.
Não se considerem estas palavras simples queixas de circunstância.
Afirmo-as com toda a sua carga negativa, absolutamente consciente das imensas preocupações e das dificuldades que actualmente estão a ser sentidas por uma ampla maioria do chamado comércio tradicional ou de proximidade.
Esta situação já foi denunciada em variadas ocasiões, e por diversos protagonistas.
Eu própria, numa Assembleia Municipal já tive a oportunidade de tentar despertar as mais variadas sensibilidades para esta questão.
Estas dificuldades, vêem de há muito e são reais.
Não sei, se será só o peso dos anos, ou o desencantamento com a realidade mas sinto-me a viver numa sociedade triste, numa cidade com poucas perspectivas.
Uma cidade em que as preocupações que se fazem sentir, são ouvidas com um certo ar benevolente e depois, … … rapidamente deixadas cair no esquecimento.
Uma cidade que não se tem renovado, que não se abre a novos ventos de modernidade, e que tem perdido o que de interessante, eventualmente, possa ter tido.
Custa-me, passados que são mais de setenta anos, ter que dar razão a Raul Proença: "Caldas da Rainha é" – actualmente – "uma das cidades mais desinteressantes do país."
Hoje, chamaram-me aqui para me fazer uma festa.
O que aceitei, orgulhosa, e repito, de todo o coração agradeço.
Mas não me sentiria confortável com a minha consciência, se não utilizasse esta oportunidade – e face ao que acabei de afirmar – para sublinhar a necessidade de todos em conjunto analisarmos criticamente a cidade em que vivemos.
Obriguemo-nos a uma atitude mais crítica, e a exigir a excelência.
Há que repensar a cidade, imaginar novas formas de vivência, inovar conceitos, perspectivar metas e estabelecer dinâmicas.
Por hábito, vencem, não os mais fortes, mas os que compreendem mais rapidamente a necessidade de mudança.
E, nunca, mas por nunca, esquecer as pessoas.
Tendo em atenção todo o nosso historial, as nossas potencialidades criativas, porque não uma cidade cujo motor de desenvolvimento seja a cultura?
A cultura, considerada, no seu sentido mais vasto, e nas suas mais variadas áreas de actuação.
E, a fazê-lo, … que seja o mais rapidamente possível.
Diria mais, com urgência.
O poeta – sempre a companhia de um poeta – escreveu:
“Eles não sabem, nem sonham,
Que o sonho comanda a vida!"
Temos uma vantagem sobre …… “eles”.
Sabemos que o sonho pode comandar a vida.
Todos, mas todos, temos que pensar, querer e agir para tornar o sonho realidade.
Muito Obrigada.