«No consultório, idêntico e banal a todos os outros consultórios, o médico sentara-se e pronunciara a imaginativa frase:
“Então o Sr. começou a consumir a partir de que idade?”
“Bem... devia ter 12-13...”
– respondi, obrigando a memória um esforço mais difícil do que o esperado.
“E começou com coisas leves, não foi? Tem ar de isso...”
– foi a resposta-pergunta autómata do médico. Irritou-me o ar disso, ao q respondi:
“Acha ?”.
“Sim, jovem, você é um caso idêntico a uns poucos que por aqui têm passado”
- disse com uma certeza que nada tinha de arrogante, mas que tudo tinha de certeza.
“Aliás” – continuou –
“começou bem mais cedo... não foi?”.
“huuuu... sim, se contarmos com...”
– mas fui interrompido pela análise certeira –
“...se contarmos com os habituais álbuns aos quadradinhos...os Disney...que no seu tempo chamavam-se Disney Especial ou Almanaques...produto de origem brasileira e com preço em Cruzeiros... Cruzeiros... toda a gente agora julga que isso é uma viagem de barco oferecida pelos hipermercados”.
“Depois”
– prosseguiu com um entusiasmo estranho –
“começou com a enfadonha Enid Blyton e derivados... já apanhou a produção nacional...A Colecção Uma Aventura...meteu-se por aqueles clássicos supostamente para jovens...tem ar de ter lido Os Três Mosqueteiros, O Conde de Monte Cristo, Ivanhoe, A Ilha do Tesouro...”.
Eu, já havia ultrapassado a fase da surpresa e entrara na do tédio. Observara-o durante esse período...o típico médico barbudo, por desleixo, de meia-idade avançada, corroído pelas atitudes contrárias aos conselhos que dava aos pacientes: garrafas cor-de-chá da Escócia e pauzinhos de fumo de Cuba.
Havia parado com a descrição e feito uma pergunta:
“Quando é que você começou a consumir coisas deprimentes? A ficar angustiado com o que consumia?
”Rebolei os olhos na direcção das minhas sobrancelhas, na idiota tentativa de fazer accionar o meu apático cérebro.
“Hummm... comecei a pensar em certas coisas e a ter as minhas primeiras risadas amargas (efeito do produto) com a “inocente” Mafalda... lembra-se dos álbuns da Dom Quixote?”.
“Ó homem”
– interrompeu, novamente, naquele estilo típico das profissões pseudo-liberais –
“... isso não era nada! Ah! Ah! Ah!”
– parou de rir subitamente e disse, com ar sério –
“Agora você está de tal maneira q já há muito q não dá vazão... já só os compra... é bem feito... começou a ler os espessos germânicos... Mann, Hesse, Musil, Remarque ou o larilas do Zweig...e nunca mais os acabou...e meteu-se logo nos russos...Dostoievski, Gorki, Tolstoi, Puchkin, Goncharov, Soljenitsin... por Deus, homem, você só os compra...já nem os consome! Mas sabem o q é q dizem de si, homem? Dizem que você até consumiu os discursos do Andrei Gromiko!!!! Tenha controlo sobre si... E é para isso que eu aqui estou! Para te ajudar, rapaz.”
Apesar de perturbado, incomodara-me mais a minha despromoção de homem para rapaz, do que aquilo que eu já sabia. Mas ele continuava, qual Pe. António Vieirado alto do púlpito, de verve incontrolável:
“ Primeiro umas recomendaçõezinhas: o Sr. não passa em ruas com livrarias!”
Aí saltou-me um incontrolável “Mas”.
“Homem não há mas nem meio mas...”
– havia sido promovido! –
“... o que é que aconteceu da última vez que você passou numa rua com uma livraria?”.
“Bem... olhei a montra... e...”
-interrompido outra vez, pelo Dr. Coito –“
E entrou! E o q é q você disse à empregada? Vá lá diga...”
- e respondi eu de tal forma em surdina, que não se ouviu, pelo que tive de repetir:
“... Perguntei à empregada quanto custava toda uma estante de livros..”.
“Pois!”
– atalhou ele novamente –
“mas quem no seu perfeito juízo quer comprar uma estante cheia de livros?!?!”.
“Mas era a estante dos norte-americanos... que mal faz um F. Scott Fitzgerald?”
– argumentei eu.
”Muito já viu o tamanho de Belos e Malditos ou de Terna é a Noite e não me venha falar do dissimulado do Lewis Carroll... mas em frente . Segunda recomendação: não se encontra com outros dependentes. Já foram uns quantos capturados quando conspiravam numa cave soturna para roubar um expositor, como é o caso do meu próximo cliente, dependente em cd’s, e apanhado a empurrar o expositor de música pop britânica pela porta da Valentim de Carvalho a fora... lembre-se disso! Agora a receitazinha: vai tomar a seguir às refeições uma leitura de Jackie Collins e uma de Paulo Coelho. Antes do adormecer leia umas quantas páginas de Susana Tammaro (que tem umas capas bonitas)e ao acordar Margarida Rebelo Pinto.”
“Qual livro Sr. Dr?”
“Homem, Sei lá.”
“Como? Ah! Já percebi, q coincidência!”
“E gradualmente vai deixando de os ler... até passar só a ler os rótulos das garrafas de cerveja...
”Fez-se um silêncio de fim de conversa...ao q me lembrei de perguntar:
“E os pesadelos Sr. Dr.? Que faço com os pesadelos?”
“Os pesadelos?!! E com que é que você sonha?”
“Sonho que ando pelas ruas e encontro antigos colegas de escola...”
“Mas, homem, isso não são sonhos, isso é a realidade!”
“Ah!”
“Mas como estão eles?”
“Quem?”
“Os seus antigos colegas de escola... como estão eles?”
“Bem... elas, estão dando uso aquilo a q a mãe natureza lhes deu em favor da perpétua continuação da espécie e perpetuam-na... se antes pedíamos pelos raios solares para as desnudarem... hoje pedimos pelas mais fortes chuvadas e por uma ou outra cheia... Eles...passam os fins-de-semana a limpar peças de motores de automóveis e matam os tempos livres com Artes Marciais...nunca leram um livro.”
“E fazem bem, homem, porque é que você não se mete numas Artes Marciais tb, no karaté, no aikido?“
A própria expressão Artes Marciais parece-me uma contradição...desde quando é q dar um pontapé em alguém é Arte? E o objectivo do aikido é exactamente fazer o atingido dizer aikidoi...”
“Lá está você a desconstruir tudo... não devia ter lido esses russos e dos portugueses só devia ter lido o Júlio Dinis! Quem o mandou ler Lídia Jorge!? Olhe o que você precisa é duma viagem de férias... pq não vai a Ibiza ou a Cuba?”
“Mas, Sr. Dr. isso não são lugares para onde os finalistas e/ou licenciados dos mais diversos anos de ensino e cursos vão para arranjar sexo mais ou menos grátis, afastado dos olhares e moralismos indiscretos dos vizinhos e familiares? Doc , não passou o Sr. férias em Cuba o ano passado...como a maioria dos seus colegas?”
“Como?”
– interrogou-me o médico ligeiramente embaraçado e depois com confrangedora honestidade prosseguiu –
“Sim, passei férias em Cuba... e sim é verdade: estavam lá mais colegas meus do que na Consulta Externa... mas fui a conselho médico...talvez não saiba mas... eu era viciado em Vergílio Ferreira, já ia na terceira leitura de toda a sua obra, Conta Corrente inclusive...”.
Fez-se silêncio longo. O médico havia-me tocado com aquela confissão... era um de nós... dependentes! Levantei-me, cumprimentei-o e saí. Parei a meio da rua... olhei para trás, para o consultório... respeitosamente.Voltei costas e prossegui... sempre em silêncio...como se estivesse a ler um livro.»
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(Magritte)/
"Quando abarcarmos esses mundos e o conhecimento e o prazer que encerram, estaremos finalmente fartos e satisfeitos?",WW