Mostrar mensagens com a etiqueta Vozes do Brasil. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Vozes do Brasil. Mostrar todas as mensagens
MÁRCIO-ANDRÉ
Lisboa nunca existiu para além desse instante
Lisboa nasceu de um terremoto. O mesmo que dizer: nomearam os escombros diante do rio: deram nome ao nome cidade: o nome de outro lugar que coube no mesmo lugar. Essa cidade inventada por um poeta e esquecida por outro. E no meio dela, esse meiopoeta desejando profundamente o sonho mínimo que sonham as tainhas no rio em frente. E que pára para ouvir o canto de pedra desses peixes de pedra e almeja para cimento do próprio corpo o limo das barbatanas [para conhecer a pedra, sê pedra]. Minor queria a palavra perfeita e Dominic Matei refez-se jovem para continuar buscando a origem das línguas, e, no entanto, este rio é uma sentença impronunciável e cabe inteiro na janela. Sem tradução. A Paisagem na janela é a mesma que está lá fora, com seus cargueiros à óleo diesel [todo lugar é cópia de si mesmo – os turistas só conhecem a cópia]. Nem o sucesso nem a razão nem a ruína nem o flagelo das saias das raparigas de pernas grossas subindo as ladeiras da bica e rindo com suas bocas pequenas e bêbadas e mandando sorrisos e beijos aos meiopoetas que passam, nada disso é desculpa para levar essa cidade a sério e acreditar que estamos ali mais do que realmente estamos. Ela só existe enquanto é caminhada. Ela é uma circum-navegação em torno da medula da cabeça e da mão. A cidade é a parte mais encantadora das pessoas. E, assim como esse rio corre sem a porra da bênção dos santos e detém na língua laminada do seu muco-pedra polida o sacro-saber de ser rio, não é preciso querê-lo para sempre. É preciso querê-lo agora, enquanto rio. Como o querem as roupas nos varais quando o chamam balançadas pelo vento. É nesse meiopoeta, que recusa a ser feliz nesta cidade e envelhece sem jamais ter sido jovem, que Lisboa se refaz a cada pisada cambaleante. Da mesma forma que vamos seguindo assim, todos meiopoetas e meiobêbados e meioapaixonados e sem saber afinal para que a vida foi feita e para que se apaixonar ou ser poeta (inteiro ou pela metade). A infelicidade é um vício, mas todo o resto é diversão.
Fonte: http://intradoxos.blogspot.com/2010/09/lisboa-nunca-existiu-para-alem-desse.html
POEMAS
DE MÁRCIO-ANDRÉ
OS PLANETAS
3 batimentos
2 céus do lado esquerdo – malcolados
um campo de parabólicas
para azeite de antenas
e o mar com sedimento de planetas
[o mar fez-se a si mesmo de seu celofane verde
tirou das tripas o ocidente
traçou na pele um autómato de estrelas
– iluminuras no dorso de um dromedário]
no princípio foi o giro
e sua sinfonia de esferas
[só é verdade a parte que se desconhece]
a partitura do architeto
sua planta fotogramétrica
A SOMBRA
teu olho é vidro de morder
e o dorso improvável soprado no gás
queimado a sais de prata
nascido do primeiro sonho
não termina e não começa codificado nos objectos
ainda não existia encaixe entre as coisas
nem as formas nem as cores
siemens
designers for life
tirando tua sombra sobra o mundo inteiro
AS LIBAÇÕES
e depois de orar e polvilhar farinha
degolam e destroncam bois
esfolam touros
coxas cortam pernis apartam
envolvendo em gordura de dupla camada
e talhos crus lançados sobre
velhos queimam a carne na brasa
derramam por cima o vinho agridoce
com garfos moços manejando bifes
pernis tostados
saborear filetes degustar entranhas
o resto retalham em tiras e assam no espeto
peritos
ao fim do trabalho o banchete:
cada um a seu gosto: ancas e nacos
homens se nutrem em farta festa
vertem plenas crateras de vinho
delibam lambendo boca
graxa de tripa nos dedos
e assim pelo dia com cantos e danças
dânaos aplacam Apolo – péã para o guardião
que alegra-se no coração ao ouvi-los
Poemas retirados de Intradoxos, livro publicado por Márcio-André (Rio de Janeiro, Brasil, 1978) em 2007. A sua poesia foi considerada por Boaventura de Sousa Santos (para além de sociólogo, um poeta que Portugal deveria ler com outros olhos mais esclarecidos) como “uma das mais notáveis da sua geração”: “[…] é uma luta permanente com a língua. O seu experimentalismo não é abstracto (ou seja, concretista), é antes a sua maneira de interpelar uma tradição asfixiante e ao mesmo tempo vazia.”
DE MÁRCIO-ANDRÉ
OS PLANETAS
3 batimentos
2 céus do lado esquerdo – malcolados
um campo de parabólicas
para azeite de antenas
e o mar com sedimento de planetas
[o mar fez-se a si mesmo de seu celofane verde
tirou das tripas o ocidente
traçou na pele um autómato de estrelas
– iluminuras no dorso de um dromedário]
no princípio foi o giro
e sua sinfonia de esferas
[só é verdade a parte que se desconhece]
a partitura do architeto
sua planta fotogramétrica
A SOMBRA
teu olho é vidro de morder
e o dorso improvável soprado no gás
queimado a sais de prata
nascido do primeiro sonho
não termina e não começa codificado nos objectos
ainda não existia encaixe entre as coisas
nem as formas nem as cores
siemens
designers for life
tirando tua sombra sobra o mundo inteiro
AS LIBAÇÕES
e depois de orar e polvilhar farinha
degolam e destroncam bois
esfolam touros
coxas cortam pernis apartam
envolvendo em gordura de dupla camada
e talhos crus lançados sobre
velhos queimam a carne na brasa
derramam por cima o vinho agridoce
com garfos moços manejando bifes
pernis tostados
saborear filetes degustar entranhas
o resto retalham em tiras e assam no espeto
peritos
ao fim do trabalho o banchete:
cada um a seu gosto: ancas e nacos
homens se nutrem em farta festa
vertem plenas crateras de vinho
delibam lambendo boca
graxa de tripa nos dedos
e assim pelo dia com cantos e danças
dânaos aplacam Apolo – péã para o guardião
que alegra-se no coração ao ouvi-los
Poemas retirados de Intradoxos, livro publicado por Márcio-André (Rio de Janeiro, Brasil, 1978) em 2007. A sua poesia foi considerada por Boaventura de Sousa Santos (para além de sociólogo, um poeta que Portugal deveria ler com outros olhos mais esclarecidos) como “uma das mais notáveis da sua geração”: “[…] é uma luta permanente com a língua. O seu experimentalismo não é abstracto (ou seja, concretista), é antes a sua maneira de interpelar uma tradição asfixiante e ao mesmo tempo vazia.”
EDMAR GUIMARÃES
Massa Corrida
Ele, encostado agora na parede, perde a janela, mira outras imagens da sala. As mãos espalmadas parecem buscar fendas. O corpo se cola ao concreto, sente a respiração úmida dos tijolos, gosto de tinta. Líquidos se vertem em cimento. Ele sua.
A boca engole o reboco pela nuca; um pouco mais de esforço e postura de homo-sapiens, os calcanhares; as nádegas encostam-se noutro corpo duro; as mãos totalmente enterradas na parede, e, aos poucos, também o abdómen; com um leve tremor de músculos, os úmeros e as omoplatas.
Linhas do rosto fundem-se à superfície, mínimas trincaduras, caminhos de formigas deformam a espessura da massa corrida. Ele tenta dizer… Há uma pastilha de pedra sobre a língua. Os olhos imprensados nas pálpebras só veem arestas do recinto.
Tudo o que via, respirava, o espaço buscado além dos terraços do mundo… uma mácula na parede, uma marca de mofo mais encorpada. – A sombra mais escura lembra restos do esôfago, os dois furos amarrotados, talvez as pálpebras –.
A presença toda de um homem se traduz numa marca de gordura na parede, alguém jogará cal em cima, repintará como se cobre uma nódoa renitente do tempo.
As Coisas
Exaustas de ser, todas as coisas. Não pela natureza intrínseca, sentido o sopro das estações, mas por olhá-las da carne, o homem lhes deu superfície, quis a brisa no laboratório; o aroma dos primeiros instantes do mundo, num punhado de pedras.
O que se passou entre pirâmides, juntas e operários repetem. Do carpete de ouro e ácaros do corpo do faraó, o fugo acende o incenso, espectros do que um dia sonharam acordar de novo na carne que nunca cicatriza, vestida à gala, digo, gaza.
O que se revela é ponta de osso, iceberg que, escavado, expõe o riso de nós mesmos.
Nas escavações de antigos passos, nas grutas do âmago, nuns palimpsestos de desejos, desenhos rupestres, ou no chão mesmo rude do tempo aberto em sítio, o fóssil, punhado de peças, isso só, e fácil.
Tudo está exausto de ser pedra e lâmina cega de laboratório, de ser escavado até sua porção mais severa e insuficiente.
O que se busca traz no bojo algo mais denso que osso.
Textos retirados do mais recente livro do escritor goiano/brasileiro Edmar Guimarães, Cápsulas dos Dias (Editora KELPS / Editora da UCG, 2009). O volume tem um prefácio da ensaísta Wania Majadas e um posfácio do poeta e ficcionista Miguel Jorge, reproduzindo na capa um óleo de José Amaury de Menezes. Micro-contos ou contopoesia? “Em cada nova cápsula deste livro existe um tempo de um dia que enseja códigos de disfarçada loucura e que corre em idas e vindas pelo universo que vai além do real ao imaginário, como se o autor quisesse captar os olhos de seus inúmeros personagens” (Miguel Jorge).
Massa Corrida
Ele, encostado agora na parede, perde a janela, mira outras imagens da sala. As mãos espalmadas parecem buscar fendas. O corpo se cola ao concreto, sente a respiração úmida dos tijolos, gosto de tinta. Líquidos se vertem em cimento. Ele sua.
A boca engole o reboco pela nuca; um pouco mais de esforço e postura de homo-sapiens, os calcanhares; as nádegas encostam-se noutro corpo duro; as mãos totalmente enterradas na parede, e, aos poucos, também o abdómen; com um leve tremor de músculos, os úmeros e as omoplatas.
Linhas do rosto fundem-se à superfície, mínimas trincaduras, caminhos de formigas deformam a espessura da massa corrida. Ele tenta dizer… Há uma pastilha de pedra sobre a língua. Os olhos imprensados nas pálpebras só veem arestas do recinto.
Tudo o que via, respirava, o espaço buscado além dos terraços do mundo… uma mácula na parede, uma marca de mofo mais encorpada. – A sombra mais escura lembra restos do esôfago, os dois furos amarrotados, talvez as pálpebras –.
A presença toda de um homem se traduz numa marca de gordura na parede, alguém jogará cal em cima, repintará como se cobre uma nódoa renitente do tempo.
As Coisas
Exaustas de ser, todas as coisas. Não pela natureza intrínseca, sentido o sopro das estações, mas por olhá-las da carne, o homem lhes deu superfície, quis a brisa no laboratório; o aroma dos primeiros instantes do mundo, num punhado de pedras.
O que se passou entre pirâmides, juntas e operários repetem. Do carpete de ouro e ácaros do corpo do faraó, o fugo acende o incenso, espectros do que um dia sonharam acordar de novo na carne que nunca cicatriza, vestida à gala, digo, gaza.
O que se revela é ponta de osso, iceberg que, escavado, expõe o riso de nós mesmos.
Nas escavações de antigos passos, nas grutas do âmago, nuns palimpsestos de desejos, desenhos rupestres, ou no chão mesmo rude do tempo aberto em sítio, o fóssil, punhado de peças, isso só, e fácil.
Tudo está exausto de ser pedra e lâmina cega de laboratório, de ser escavado até sua porção mais severa e insuficiente.
O que se busca traz no bojo algo mais denso que osso.
Textos retirados do mais recente livro do escritor goiano/brasileiro Edmar Guimarães, Cápsulas dos Dias (Editora KELPS / Editora da UCG, 2009). O volume tem um prefácio da ensaísta Wania Majadas e um posfácio do poeta e ficcionista Miguel Jorge, reproduzindo na capa um óleo de José Amaury de Menezes. Micro-contos ou contopoesia? “Em cada nova cápsula deste livro existe um tempo de um dia que enseja códigos de disfarçada loucura e que corre em idas e vindas pelo universo que vai além do real ao imaginário, como se o autor quisesse captar os olhos de seus inúmeros personagens” (Miguel Jorge).
Casé Lontra Marques
Avesso ao monumento, isto que ainda sinto ser esforço dedica seu artesanato à confecção de um instante que, apesar de precário, recusa cair nas engrenagens do espetáculo.
(in A densidade do céu sobre a demolição, 2009)
*
Compartilhamos, como poucos, ligações de rara reprodução:
nossos laços varam veias dos circuitos que
sustentam o combate
à comunicação. Parecemos seres de palavra
fraca, sintaxe
faminta; ruminando rumores,
no entanto, inauguramos
pactos de fala
que consagramos
à inutilidade. Movimentamos - quase digo -
signos sem
função. Não saudamos
nenhuma autoridade,
contudo
celebramos qualquer insuficiência.
(id.)
*
confrontar-se com o real faz trepidar o mundo duplicado que se enuncia como superação da realidade? não perguntar sobre a sua incidência permite que se suspenda o confronto com o real? seria a suspensão um circuito de atrocidades? a ficção construída como recusa constitui tanto um afastamento quanto uma proteção contra a dúvida?
(in Saber o sol do esquecimento, 2010)
*
CONTRACANTO
Não esperamos em vão porque não construímos
o que esperar (porque não
arriscamos
uma mediocridade maior): acreditamos
numa dor sem sofrimento: podemos
confessar
nossas insônias, às vezes com
entusiasmada autoridade, mas calamos
sobre o nosso sono;
calamos
sobre as vozes arrastadas pelos
cômodos que exigimos
cada
vez mais calmos, cada vez
mais nítidos, penso que habito
este corpo; meus músculos, no entanto,
continuam
despovoados: movimento
algum
aprenderei a me despreparar
(id.)
Casé Lontra Marques nasceu no Brasil em 13 de novembro de 1985. Vive no estado do Espírito Santo.
Avesso ao monumento, isto que ainda sinto ser esforço dedica seu artesanato à confecção de um instante que, apesar de precário, recusa cair nas engrenagens do espetáculo.
(in A densidade do céu sobre a demolição, 2009)
*
Compartilhamos, como poucos, ligações de rara reprodução:
nossos laços varam veias dos circuitos que
sustentam o combate
à comunicação. Parecemos seres de palavra
fraca, sintaxe
faminta; ruminando rumores,
no entanto, inauguramos
pactos de fala
que consagramos
à inutilidade. Movimentamos - quase digo -
signos sem
função. Não saudamos
nenhuma autoridade,
contudo
celebramos qualquer insuficiência.
(id.)
*
confrontar-se com o real faz trepidar o mundo duplicado que se enuncia como superação da realidade? não perguntar sobre a sua incidência permite que se suspenda o confronto com o real? seria a suspensão um circuito de atrocidades? a ficção construída como recusa constitui tanto um afastamento quanto uma proteção contra a dúvida?
(in Saber o sol do esquecimento, 2010)
*
CONTRACANTO
Não esperamos em vão porque não construímos
o que esperar (porque não
arriscamos
uma mediocridade maior): acreditamos
numa dor sem sofrimento: podemos
confessar
nossas insônias, às vezes com
entusiasmada autoridade, mas calamos
sobre o nosso sono;
calamos
sobre as vozes arrastadas pelos
cômodos que exigimos
cada
vez mais calmos, cada vez
mais nítidos, penso que habito
este corpo; meus músculos, no entanto,
continuam
despovoados: movimento
algum
lábio; digo que
habito este corpo: meus braços,
no
entanto, continuam
abandonados: preciso
falecer para falar: sem morrer
as mortes que me amordaçam,
não
conseguirei tocar
a
palavra com
que aprenderei a me despreparar
(id.)
Casé Lontra Marques nasceu no Brasil em 13 de novembro de 1985. Vive no estado do Espírito Santo.
POEMAS DE RENATO SUTTANA
TALVEZ
O ouro de amanhã é talvez,
a certeza dos portos é quem sabe.
A verdade de amanhã,
engastada no fundo das minas –
é uma hipótese a que nos confiamos,
mas que não se confirma no vento.
(Que motivo teria para tudo se confirmar?)
De hoje até amanhã tudo é hipótese –
e o vento, que não se esclarece num mapa.
SÃO SEBASTIÃO
(De uma gravura de Egon Schiele)
As flechas que o atravessam
(dardos de sol que o contestam) –
querem passar além dele
(eis a intenção que as impele).
NO MAIS FUNDO
No mais propício e no mais fundo
descobre-se que ter estado escavando
adulterou o sentido da procura:
e que o ouro que nos pôs nas mãos
(quanto irrisório triunfo!)
nos tornou mais pobres a cada vitória
conquistada.
Poemas publicados em Fim do Verão, livro editado pela Virtual Books (Pará de Minas, Minas Gerais, Brasil). O seu autor, Renato Suttana, nasceu em Barroso (1966), sendo professor na Faculdade de Educação da Universidade Federal da Grande Dourados, em Dourados, Mato Grosso do Sul. Como ensaísta, publicou os livros João Cabral de Melo Neto: o poeta e a voz da modernidade (São Paulo, 2005) e Uma poética do deslimite: Poema e imagem na obra de Manoel de Barros (Dourados, 2009). Coordena a página Arquivo de Renato Suttana.
TALVEZ
O ouro de amanhã é talvez,
a certeza dos portos é quem sabe.
A verdade de amanhã,
engastada no fundo das minas –
é uma hipótese a que nos confiamos,
mas que não se confirma no vento.
(Que motivo teria para tudo se confirmar?)
De hoje até amanhã tudo é hipótese –
e o vento, que não se esclarece num mapa.
SÃO SEBASTIÃO
(De uma gravura de Egon Schiele)
As flechas que o atravessam
(dardos de sol que o contestam) –
querem passar além dele
(eis a intenção que as impele).
NO MAIS FUNDO
No mais propício e no mais fundo
descobre-se que ter estado escavando
adulterou o sentido da procura:
e que o ouro que nos pôs nas mãos
(quanto irrisório triunfo!)
nos tornou mais pobres a cada vitória
conquistada.
Poemas publicados em Fim do Verão, livro editado pela Virtual Books (Pará de Minas, Minas Gerais, Brasil). O seu autor, Renato Suttana, nasceu em Barroso (1966), sendo professor na Faculdade de Educação da Universidade Federal da Grande Dourados, em Dourados, Mato Grosso do Sul. Como ensaísta, publicou os livros João Cabral de Melo Neto: o poeta e a voz da modernidade (São Paulo, 2005) e Uma poética do deslimite: Poema e imagem na obra de Manoel de Barros (Dourados, 2009). Coordena a página Arquivo de Renato Suttana.
VIRNA TEIXEIRA
Detox
Enrolou os ferimentos em gaze. Feridas cicatrizam com o tempo. Ainda que restem entalhes. Memórias desenhadas nos ossos, adornos.
Tirou fotografias como registros. Meses após o trauma. Sem sangue nas conjuntivas.
Deixou para trás a câmera. Travesseiro, lençol branco, a água morna do banho. Inverno, lembrança noturna.
A transformação do rosto. Quando retirou as ataduras, as suturas.
No dia da partida, árvores. De perfil no trem, a luz sobre os cabelos, castanhos.
Titan
contava histórias
nos desenhos
da pele
mensageiro do submundo
mercúrio
um vulto
de mãos velozes
na poeira lunar
em trânsito
visões onde
se escondeu
das crateras
sulcos - mofados
na outra
superfície
Virna Teixeira nasceu em 1972 na cidade de Fortaleza, mas vive desde há vários anos em São Paulo (Brasil). Os dois poemas publicados são retirados do seu livro Trânsitos, recentemente publicado na Lumme Editor. Gostei da sua maneira de escrever logo na primeira leitura, acontecida numa antologia da nova poesia brasileira publicada entre nós. Da maneira como lida com uma linguagem elíptica, criadora de segredos e de um mundo suspenso, prestes a acontecer ou ainda acontecendo. Do "quase", do não-dito ou por-dizer. Corpos, os poemas não se abrem; deixam que sejamos nós a abri-los lentamente. Ou permitem a construção de uma relação interactiva, sempre inacabada e, por isso, incessante.
FABRÍCIO MARQUES
Mini Litania de Política Editorial
Me suplica que eu te publico
Me resenha que eu te critico
Me ensaia que eu te edito
Me critica que eu te suplico
Me edita que eu te cito
Me analisa que eu te critico
Me cita que eu te publico
Me publica
(Publicado por Wilmar Silva na página 214 da contrantologia Portuguesia, recentemente editada.)
Mini Litania de Política Editorial
Me suplica que eu te publico
Me resenha que eu te critico
Me ensaia que eu te edito
Me critica que eu te suplico
Me edita que eu te cito
Me analisa que eu te critico
Me cita que eu te publico
Me publica
(Publicado por Wilmar Silva na página 214 da contrantologia Portuguesia, recentemente editada.)
WILMAR SILVA
arranjo de gaivotas e pampulha, dia 31
eu-menino-do-campo, te faço conviva
e digo que a palavra que escrevo é
origem, invento gaivotas no sertão
ilha é meu corpo de encontro ao teu
aqui, longe, após o inverno da tempestade
verto o amálgama da pampulha veleiro
arco-íris que choram de solidão, eu
agora impávido e celeste, anjo de fogo
eu-espelho d' agua, narciso e orfeu
flautas e flores, eu-pássaro cais e flora -
Creio que este poema é a chave que nos permite entrar na poesia de Wilmar Silva, recentemente publicada em Portugal num volume intitulado Yguarani (Edições Cosmorama). Autor de uma obra invulgar e inclassificável no espaço lusófono, Joaquim Palmeira (outro dos nomes com que assina os seus textos) nasceu a 30 de Abril de 1965 em Rio Paranaíba (Minas Gerais, Brasil) e coordena o projecto Portuguesia, cuja primeira contrantologia foi lançada no passado mês de Julho em Seide, no Centro de Estudos Camilianos. Conhecer melhor o seu trabalho é possível através do seu blogue Cachaprego.
CILADA
Wilmar Silva
a
sayonara
flautas e agreste
flauta agreste I
esculpo minha boca dentro de teus ouvidos
onde ninfas e duendes cometem o sonho
trilham o caminho da vertigem e vivem
à beira da estrada comendo verde poeira
as cores sobradas da última festa campestre
bichos e lendas no ermo dos seres
o olhar de ceres rompendo o teu abandono
cansada de tanto cuidar dos campos
dos cereais e do gado que se perde
flauta agreste II
envergo meus olhos e desfolho os deuses
encontro na enchente o bico sibilar
de um pássaro vindo de muito longe
voando nesta primavera onde nascem
floradas tão ímpias que não me calam
pétalas que se arvoram ao encanto do sol
gasto meu tempo mirando esse pássaro
no crepúsculo onde fadas gelam no inverno
insones sôfregas e úmidas por mim
flauta agreste III
canto esta quimera como quem se despe
e desnudo alça a godiva da fantasia
deságuo meu corpo em busca do teu
febril e descalço meu faro é de lobo
e a floresta e a selva entre árvores a cilada
mesmo de longe é por ti que espero
anseio uma noite e verdejo entre ramagens
meu disfarce é virar camaleão o bicho delicado
e picar teu sexo com meus tentáculos
flauta agreste IV
disperso abelhas e marimbondos em nevoaças
um réptil de puro veneno para espantar
aquele que vier contigo cantar-me
levo um tigre atado em minha pele
para assustar esse cúmplice sempre notívago
que te persegue pelas noites adentro
desenho em minhas mãos o rumo das setas
que irão mirar o coração de teu amante
sim eu serei bálsamo e lanço os dardos
flauta agreste V
guardo agora a sombra da lua e do medo
nuvens que debruam olhos e cabelos
dissipo a legião de andarilhos que me caça
sou pássaro e as penas de safira e rubi
errante e de músculos viris risco
esse amor tão doentio que me estrangula
eu pinto os meus lábios de carmim
e esqueço o meu orquidáceo em tua língua
serei mais ou serei menos basta o ópio
flauta agreste VI
orvalho as maçãs maduradas de vermelho
e ofereço fálicas papoulas que matam
afoito em teu motim armo orgias e festim
deslumbrado por ti minha avícula é ave
em teu ermo o esboço é um bote de áspide
árido mas esperando que se umedeça
o clima que invento é mais do que ruminar
é uma matança é uma carnificina é uma vingança
onde medra o meu pânico todo vândalo
flauta agreste VII
varo entre eclipses os meus olhos de jade
escamas e cactos em minha boca o meu sexo
a oferenda eu perfaço e amarelo
de tanto mirar teu corpo primavera
teus músculos que suam vertem fisgam
teu quadril onde afogo minha insânia
tuas coxas que ventam em meus lábios e cílios
o susto a culminar em vindima a vigília
e todo ardor enseada de montanha
flauta agreste VIII
habito a mesma noite em que habitas
como o mesmo pasto que ruminas
mas sou todo insônia e amálgama de heras
desejo apenas adivinhar o que escondes
ouvir o modo como respiras e as pausas
que tanto me crispam de gelo e paixão
a noite onde dormimos tem uma constelação
ela orna teu semblante e recria em mim
esse medo visceral de me entregar
flauta agreste IX
levo árvores flutuadas sobre cerrados
para o fundo da memória onde guarneço
divindades e a fome e a sede por ti
não esta fome cotidiana de cada ser vivo
mas a fome que é pranto rito fixação
fome de amor fome de carne fome de meter
a tua boca quando vergasta sons
é uma cadência que me iça doidivanamente
misturado a terra careço de adubo
flauta agreste X
arrumo mil disfarces à beira do instante
inverto o gume da ventania
mas o que seria o instante que anseio
o talhe de teu corpo que me doura
sim eu furto as palavras eu fuço as cores
e falo apenas no sangue que me escorre
meu disfarce é o simples ato de colorir
teu baile tão longe de ficar em mim
eu me ofereço após a incidental floração
flauta agreste XI
floresço na selva noturna que me espanta
onde aninham serpentes e estrelas
floresço prisioneiro em ti e os girassóis
são objetos servidos de adorno e pasto
mais do que florescer esse poema
floresço meu sexo no meio da chuva
no ápice da tempestade brenha e escuro
onde empunho armas de fogo e visgo
esse cúmplice a desbravar os descaminhos
flauta agreste XII
anoiteço e uivos dentro dos ouvidos
onde as corujas delatam os invasores
as axilas plenas de suor calor e deserto
rasgam-me a pele até o incêndio
caço teu corpo misturado de verdes coágulos
e receio não alçá-lo antes do amanhecer
emendarei os meu dedos aos teus
e calarei teus gemidos com os meus gestos
a noite é um segredo e estás dentro dele
flauta agreste XIII
durmo povoado de imagens que me escapam
sobre essa relva onde passeiam insetos
também sonho lamber os teus meandros
tuas coxas de outono quase orfeu
sonho deter tua ânsia tão estranha
e balbuciar nos ouvidos o que me consome
eu ávido caminhante dilacero o meu sangue
e desenho um oásis no céu
que purifique os meus pulsos de lâminas
flauta agreste XIV
vivo por ti o floral devaneio do vento
sopram teus quadris cedros quadrantes
como águias no espaço imitam sombras
revelo em tua direção alvo e flecha
e todos os ritmos que hajam em setas
junto a ti esse impávido minotauro de abril
aborígene e andrógino alado e condor
minha boca tem marfim e tem azul
eu ensurdeço teus ganidos até o clímax
flauta agreste XV
azulo por inteiro as ancas vindas de ti
os músculos que escondem meus semens
eu gralha a foragir agonia e agouro
azulo os cabelos a dourar este pássaro
não somente a miragem mas o que houver
falo por mim o que jamais diriam
canto a junção entre bambus e flautas
sísmico e fixo devoro eu narciso em eros
e todo o afogamento será ausência e mar
flauta agreste XVI
amadureço o verdor que brota dos dedos
uníssonos caminheiros de vertigens e ilhas
sulcam a direção de uma messe
vértebras fisgam meu olhar de falcão
virilhas derretidas de pêlos e suor
eu sigo a vertente das cabras e longe
uma camponesa atravessa ladeiras
o vadio está desnudo e mais uma vez afoga
em ti o pênis a verdejar até a raiz
flauta agreste XVII
ouço as batidas que aceleram e sobram
no domínio agreste a desmantelar o hímem
retido pelo aluvião e varado a muque
não somente a forma de miná-lo e ferí-lo
mas esdrúxulas disformas alinharam neles
ouço falos que me açoitam nesse outono
quebro as folhas coladas em meu ventre
e endoideço a lembrança da água no umbigo
eu vejo o mapa sem plexo e sou fatigado
flauta agreste XVIII
domino as retinas e flexos flautins
nu e ávido com o meu arco e flecha
espanto-me entre árvores as aves de rapina
armo a cilada e por completo o que falta
salto como tigre os laços de seiva e sangue
eis que esparge em meu sexo um oceano
ele eriçado vem escampar-me como fera
de tocaia ruge e arma o bote
sobe em meus ombros e vira amazonas
flauta agreste XIX
atravesso fauna e flora antes do inverno
o sol entre as folhas vara as montanhas
e inunda o córrego com o seu fulgor
descubro sargaços que me enleiam à água
e arremedo a dança que salta do verde
vívidos comemos nácares vivemos em tríade
a essência em nós é um laço ou cipó
nascidos da terra somos nós a passarada
e o amante assassinado também sou eu
flauta agreste XX
escondo em ânforas a paisagem das papoulas
e o que vislumbro é sempre emboscada
andarilhos do mato somos os herdeiros
e remoemos os cabelos vindos dos jasmins
sim içamos os pêlos até emergi-los na água
remoemos a alcatéia que foge pela lonjura
eu guardo em mim a derradeira cilada
fisgarei os olhos que me seguem afoitos
e prestes ao orgasmo o meu pênis é todo seu
Wilmar Silva
a
sayonara
flautas e agreste
flauta agreste I
esculpo minha boca dentro de teus ouvidos
onde ninfas e duendes cometem o sonho
trilham o caminho da vertigem e vivem
à beira da estrada comendo verde poeira
as cores sobradas da última festa campestre
bichos e lendas no ermo dos seres
o olhar de ceres rompendo o teu abandono
cansada de tanto cuidar dos campos
dos cereais e do gado que se perde
flauta agreste II
envergo meus olhos e desfolho os deuses
encontro na enchente o bico sibilar
de um pássaro vindo de muito longe
voando nesta primavera onde nascem
floradas tão ímpias que não me calam
pétalas que se arvoram ao encanto do sol
gasto meu tempo mirando esse pássaro
no crepúsculo onde fadas gelam no inverno
insones sôfregas e úmidas por mim
flauta agreste III
canto esta quimera como quem se despe
e desnudo alça a godiva da fantasia
deságuo meu corpo em busca do teu
febril e descalço meu faro é de lobo
e a floresta e a selva entre árvores a cilada
mesmo de longe é por ti que espero
anseio uma noite e verdejo entre ramagens
meu disfarce é virar camaleão o bicho delicado
e picar teu sexo com meus tentáculos
flauta agreste IV
disperso abelhas e marimbondos em nevoaças
um réptil de puro veneno para espantar
aquele que vier contigo cantar-me
levo um tigre atado em minha pele
para assustar esse cúmplice sempre notívago
que te persegue pelas noites adentro
desenho em minhas mãos o rumo das setas
que irão mirar o coração de teu amante
sim eu serei bálsamo e lanço os dardos
flauta agreste V
guardo agora a sombra da lua e do medo
nuvens que debruam olhos e cabelos
dissipo a legião de andarilhos que me caça
sou pássaro e as penas de safira e rubi
errante e de músculos viris risco
esse amor tão doentio que me estrangula
eu pinto os meus lábios de carmim
e esqueço o meu orquidáceo em tua língua
serei mais ou serei menos basta o ópio
flauta agreste VI
orvalho as maçãs maduradas de vermelho
e ofereço fálicas papoulas que matam
afoito em teu motim armo orgias e festim
deslumbrado por ti minha avícula é ave
em teu ermo o esboço é um bote de áspide
árido mas esperando que se umedeça
o clima que invento é mais do que ruminar
é uma matança é uma carnificina é uma vingança
onde medra o meu pânico todo vândalo
flauta agreste VII
varo entre eclipses os meus olhos de jade
escamas e cactos em minha boca o meu sexo
a oferenda eu perfaço e amarelo
de tanto mirar teu corpo primavera
teus músculos que suam vertem fisgam
teu quadril onde afogo minha insânia
tuas coxas que ventam em meus lábios e cílios
o susto a culminar em vindima a vigília
e todo ardor enseada de montanha
flauta agreste VIII
habito a mesma noite em que habitas
como o mesmo pasto que ruminas
mas sou todo insônia e amálgama de heras
desejo apenas adivinhar o que escondes
ouvir o modo como respiras e as pausas
que tanto me crispam de gelo e paixão
a noite onde dormimos tem uma constelação
ela orna teu semblante e recria em mim
esse medo visceral de me entregar
flauta agreste IX
levo árvores flutuadas sobre cerrados
para o fundo da memória onde guarneço
divindades e a fome e a sede por ti
não esta fome cotidiana de cada ser vivo
mas a fome que é pranto rito fixação
fome de amor fome de carne fome de meter
a tua boca quando vergasta sons
é uma cadência que me iça doidivanamente
misturado a terra careço de adubo
flauta agreste X
arrumo mil disfarces à beira do instante
inverto o gume da ventania
mas o que seria o instante que anseio
o talhe de teu corpo que me doura
sim eu furto as palavras eu fuço as cores
e falo apenas no sangue que me escorre
meu disfarce é o simples ato de colorir
teu baile tão longe de ficar em mim
eu me ofereço após a incidental floração
flauta agreste XI
floresço na selva noturna que me espanta
onde aninham serpentes e estrelas
floresço prisioneiro em ti e os girassóis
são objetos servidos de adorno e pasto
mais do que florescer esse poema
floresço meu sexo no meio da chuva
no ápice da tempestade brenha e escuro
onde empunho armas de fogo e visgo
esse cúmplice a desbravar os descaminhos
flauta agreste XII
anoiteço e uivos dentro dos ouvidos
onde as corujas delatam os invasores
as axilas plenas de suor calor e deserto
rasgam-me a pele até o incêndio
caço teu corpo misturado de verdes coágulos
e receio não alçá-lo antes do amanhecer
emendarei os meu dedos aos teus
e calarei teus gemidos com os meus gestos
a noite é um segredo e estás dentro dele
flauta agreste XIII
durmo povoado de imagens que me escapam
sobre essa relva onde passeiam insetos
também sonho lamber os teus meandros
tuas coxas de outono quase orfeu
sonho deter tua ânsia tão estranha
e balbuciar nos ouvidos o que me consome
eu ávido caminhante dilacero o meu sangue
e desenho um oásis no céu
que purifique os meus pulsos de lâminas
flauta agreste XIV
vivo por ti o floral devaneio do vento
sopram teus quadris cedros quadrantes
como águias no espaço imitam sombras
revelo em tua direção alvo e flecha
e todos os ritmos que hajam em setas
junto a ti esse impávido minotauro de abril
aborígene e andrógino alado e condor
minha boca tem marfim e tem azul
eu ensurdeço teus ganidos até o clímax
flauta agreste XV
azulo por inteiro as ancas vindas de ti
os músculos que escondem meus semens
eu gralha a foragir agonia e agouro
azulo os cabelos a dourar este pássaro
não somente a miragem mas o que houver
falo por mim o que jamais diriam
canto a junção entre bambus e flautas
sísmico e fixo devoro eu narciso em eros
e todo o afogamento será ausência e mar
flauta agreste XVI
amadureço o verdor que brota dos dedos
uníssonos caminheiros de vertigens e ilhas
sulcam a direção de uma messe
vértebras fisgam meu olhar de falcão
virilhas derretidas de pêlos e suor
eu sigo a vertente das cabras e longe
uma camponesa atravessa ladeiras
o vadio está desnudo e mais uma vez afoga
em ti o pênis a verdejar até a raiz
flauta agreste XVII
ouço as batidas que aceleram e sobram
no domínio agreste a desmantelar o hímem
retido pelo aluvião e varado a muque
não somente a forma de miná-lo e ferí-lo
mas esdrúxulas disformas alinharam neles
ouço falos que me açoitam nesse outono
quebro as folhas coladas em meu ventre
e endoideço a lembrança da água no umbigo
eu vejo o mapa sem plexo e sou fatigado
flauta agreste XVIII
domino as retinas e flexos flautins
nu e ávido com o meu arco e flecha
espanto-me entre árvores as aves de rapina
armo a cilada e por completo o que falta
salto como tigre os laços de seiva e sangue
eis que esparge em meu sexo um oceano
ele eriçado vem escampar-me como fera
de tocaia ruge e arma o bote
sobe em meus ombros e vira amazonas
flauta agreste XIX
atravesso fauna e flora antes do inverno
o sol entre as folhas vara as montanhas
e inunda o córrego com o seu fulgor
descubro sargaços que me enleiam à água
e arremedo a dança que salta do verde
vívidos comemos nácares vivemos em tríade
a essência em nós é um laço ou cipó
nascidos da terra somos nós a passarada
e o amante assassinado também sou eu
flauta agreste XX
escondo em ânforas a paisagem das papoulas
e o que vislumbro é sempre emboscada
andarilhos do mato somos os herdeiros
e remoemos os cabelos vindos dos jasmins
sim içamos os pêlos até emergi-los na água
remoemos a alcatéia que foge pela lonjura
eu guardo em mim a derradeira cilada
fisgarei os olhos que me seguem afoitos
e prestes ao orgasmo o meu pênis é todo seu
A LUMINOSIDADE ESTRANHA
DA POESIA DE C. RONALD
"Tendo começado a publicar sua obra nos anos 70 do século passado, é possível que C. Ronald ainda não tenha encontrado o seu público leitor. E não tanto porque essa obra, difícil e reservada em muitos sentidos, pouco acolhedora aos primeiros contatos, mas ao mesmo tempo portadora de uma luminosidade estranha que se oferece de modo aparentemente generoso àqueles que se aventuram a um convívio mais íntimo, esteja ela mesma fechada ao contato. Ocorre que esse modo reservado de ser aponta para alguma instância que nela surge como fundamental, devendo-se admitir que a reserva é ali, também, uma convocação.
[...]"
C. Ronald e a sua poesia já mereciam um ensaio como este, assinado por Renato Suttana.
Pedro Du Bois
ALÉM
Além do pensamento
riscar ao autor
o fósforo
incendiado
no desafio
de se fazer
luz
incinerar a idéia
do autor na velocidade
antecedente.
A consumação estrófica
deixa o desejo ardente
da febre mortal da exceção.
Na luz inconsumida
piora o desentendimento:
rouba ao autor
a solidez da pedra
deslocada: a entrada
ilumina o inexistente.
Outros poemas do autor:
http://www.globoonliners.com.br/icox.php?mdl=pagina&op=listar&usuario=5812
ALÉM
Além do pensamento
riscar ao autor
o fósforo
incendiado
no desafio
de se fazer
luz
incinerar a idéia
do autor na velocidade
antecedente.
A consumação estrófica
deixa o desejo ardente
da febre mortal da exceção.
Na luz inconsumida
piora o desentendimento:
rouba ao autor
a solidez da pedra
deslocada: a entrada
ilumina o inexistente.
Outros poemas do autor:
http://www.globoonliners.com.br/icox.php?mdl=pagina&op=listar&usuario=5812
CASÉ LONTRA MARQUES
Alguns poemas
de Mares inacabados
(2008)
O corpo ultrapassa a parede de argamassa, mas continua
estreito, concreto, como um pulmão trancado
em crise de asma. A liberdade
vendeu as asas em troca de paisagem.
Encontro um detrito
entre as pernas, apesar da velocidade dos afetos.
O pássaro
que inventamos era só mais um pássaro.
*
Através da vidraça trincada, dá pra ver a cara calma
da calçada. Prédios em vez de asas.
Quando escurecer, o corpo edificará sua cota
de argamassa. Algo branco
seduz a cidade com solidez de fumaça.
Depois de respirar, aceito
o sol na medida exata do furo de uma bala.
*
Lá está a esquina prevista, a cidade evidente. Mares inacabados
que o sol do sarcasmo
infeccionou. Dois desempregados cruzam o asfalto, equilibrando pássaros
dentro dos sapatos. Cultivar o corpo como pedras
que o sol do sarcasmo
infeccionou. A violência também exercita nem tão sutil melodia.
*
Móveis novos há tanto depredados. Setembro quase de todo
vertical. Uma gaveta que ninguém ousaria
comparar a um pulmão. Apesar de desfalcar o tórax
do armário. Outubro não virá
até que se abra outro janeiro no colo desta hora.
*
Pouco importa se o fogo voltará. Alguma cabeça
no mais alto degrau da escada. Ainda
o martelar daquele prego
incomodamente mudo. Resta agora a camisa pra lavar.
Alguns poemas
de Mares inacabados
(2008)
O corpo ultrapassa a parede de argamassa, mas continua
estreito, concreto, como um pulmão trancado
em crise de asma. A liberdade
vendeu as asas em troca de paisagem.
Encontro um detrito
entre as pernas, apesar da velocidade dos afetos.
O pássaro
que inventamos era só mais um pássaro.
*
Através da vidraça trincada, dá pra ver a cara calma
da calçada. Prédios em vez de asas.
Quando escurecer, o corpo edificará sua cota
de argamassa. Algo branco
seduz a cidade com solidez de fumaça.
Depois de respirar, aceito
o sol na medida exata do furo de uma bala.
*
Lá está a esquina prevista, a cidade evidente. Mares inacabados
que o sol do sarcasmo
infeccionou. Dois desempregados cruzam o asfalto, equilibrando pássaros
dentro dos sapatos. Cultivar o corpo como pedras
que o sol do sarcasmo
infeccionou. A violência também exercita nem tão sutil melodia.
*
Móveis novos há tanto depredados. Setembro quase de todo
vertical. Uma gaveta que ninguém ousaria
comparar a um pulmão. Apesar de desfalcar o tórax
do armário. Outubro não virá
até que se abra outro janeiro no colo desta hora.
*
Pouco importa se o fogo voltará. Alguma cabeça
no mais alto degrau da escada. Ainda
o martelar daquele prego
incomodamente mudo. Resta agora a camisa pra lavar.
Uma conversa entre poetas
por Pedro Maciel
Gerard Manley Hopkins (1844-1889) foi um inventor que revolucionou a linguagem poética, um dos precursores das rebeldias estéticas dos modernistas. O poeta-jesuíta não conheceu a fama em vida e nem esperou por reconhecimento, já que vivia em plena era vitoriana. Poems of G. M. Hopkins só foi publicado em 1918, vinte e nove anos após o falecimento do autor. O amigo e leitor-crítico Robert Bridges considerou estranha a linguagem de Hopkins e, por não compreender as inovações estilísticas do seu interlocutor, decidiu ignorar vários poemas.
Hopkins escreveu para Bridges alertando-o: “Se o poema lhe parece obscuro, não se atormente muito com o sentido, mas preste atenção às estrofes melhores e mais inteligíveis, como as duas últimas de cada uma das partes e as que narram o naufrágio...” O poeta se referia ao célebre poema “O Naufrágio do Deustschland” (poema místico de 35 estrofes), que narra um fato real, o desastre marítimo do navio “Deutschland”, ocorrido em dezembro de 1875, fazendo muitas vítimas, entre as quais cinco freiras da Ordem de São Francisco, exiladas na Alemanha. O poeta também insistia com seus leitores-críticos que o verso era “menos para ser lido que para ser ouvido”, e prossegue, “ler alto, pausadamente, numa recitação poética (não retórica), com largas pausas, ênfase nas rimas e sílabas marcadas...”
Apenas em 1930, uma edição revista organizada por Charles Williams despertou interesse de críticos. Hopkins se importava apenas com seus escritos filosóficos. Determinou que estes fossem publicados na íntegra, temendo que as suas idéias filosóficas fossem distorcidas. Em relação à sua poesia, escreveu que “poderia fazer algum bem, mas se permanecesse desconhecida, nem por isso faria mal”.
Hopkins antecipa Joyce. Reinventa o idioma inglês, dando preferência ao vocabulário anglo-saxão em detrimento ao de origem latina; recupera a poesia celta, anterior ao início do Renascimento e da influência francesa decorrente da invasão normanda de 1066. Recria termos arcaicos e usa palavras germânicas. Inventa neologismos e redescobre a aliteração, a paronomásia e a assonância. A métrica e o ritmo são absurdamente modernos em Hopkins. “Sprugn rhythm” é o termo cunhado pelo poeta para designar seu novo ritmo. É um ritmo de pés variáveis e mesmo número de acentos. Na poesia inglesa contam-se pés e não sílabas. O pé varia de uma a quatro sílabas, cada um deles com apenas uma sílaba acentuada.
Segundo W. H. Gardner, o “sprung rhthm” de Hopkins revela “uma nova e eficaz fusão de ritmo e textura fônica”. As rimas internas e externas, as vogais, os ecos, as repetições fônicas criam uma orquestração de sons. Em carta de 1878 a Bridges, o poeta diz que “não há dúvida de que minha poesia vagueia sobre o plano da excentricidade... Mas tal como a ária, a melodia, é o que me atrai mais que tudo em música, e o desenho em pintura, assim o desenho, a estrutura ou o que estou acostumado a chamar inscape é o que acima de tudo busco em poesia...”
A Beleza Difícil (Ed. Perspectiva), com introdução e tradução de Augusto de Campos, é um texto musical, composto como uma sinfonia. O que impressiona em Hopkins é a força do ritmo, os sons verbais e as imagens sonoras que criam uma linguagem sintaticamente criativa.
O universo poético de Hopkins desperta a empatia do leitor não só por se tratar de uma revolução estética, mas também por revelar um espírito sensível, aberto às angústias e tormentos dos homens. A poesia de Hopkins é uma fusão incomum de “espiritualidade e sensualidade”. O padre-poeta tinha preocupações sociais, como em sua poesia, e numa carta a Robert Bridges declarou que estava sempre pensando no futuro comunista: “de certo modo eu sou um comunista”.
Segundo o poeta e tradutor Augusto de Campos, os sons e ruídos do seu conflito interno fizeram com que Hopkins desafinasse “o coro do decoro vitoriano para ingressar na modernidade”. Augusto em sua tradução exemplar recupera a alma de Hopkins. Executa uma “tradução-arte”. Para a felicidade dos leitores, A Beleza Difícil apresenta uma afinada conversa entre poetas.
___________________________________________
To R. B.
The fine delight that fathers thought; the strong
Spur, live and lancing like the blowpipe flame,
Breathes once and, quenchèd faster than it came,
Leaves yet the mind a mother of immortal song.
Nine months she then, nay years, nine years she long
Within her wears, bears, cares and combs the same:
The widow of an insight she lives, with aim
Now known and hand at work now never wrong.
Sweet fire the sire of muse, my soul needs this;
I want the one rapture of an inspiration.
O then if in my lagging lines you miss
The roll, the rise, the carol, the creation,
My winter world, that scarcely breathers that bliss
Now, yields you, with some sighs, our explanation.
( G. M . Hopkins, 1889)
A R. B.
A alegre luz que gera a idéia, a força pura,
Viva e voraz, como uma chama de estopim,
Brilha uma vez mas dura pouco, e ainda assim
À mente muda em mãe de um canto que perdura.
Nove meses, ou mais, nove anos ela o apura
E dentro o gesta, gasta, gosta e alenta, enfim:
Viúva de uma visão perdida, vive; com seu fim
Sabido, a mão perfaz, nunca mais insegura.
Fogo maior, senhor da musa _ uma só graça
Pede meu ser: o arroubo de uma inspiração.
Mas, se por minhas lentas linhas já não passa
A vaga, o vôo, a voz, o canto, a criação,
Meu mundo-inverno, onde esse júbilo não grassa,
É, com alguns suspiros, nossa explicação.
Publicado no caderno “Idéias/Livros”, Jornal do Brasil.
Pedro Maciel é autor do romance A Hora dos Náufragos, Ed. Bertrand Brasil
por Pedro Maciel
Gerard Manley Hopkins (1844-1889) foi um inventor que revolucionou a linguagem poética, um dos precursores das rebeldias estéticas dos modernistas. O poeta-jesuíta não conheceu a fama em vida e nem esperou por reconhecimento, já que vivia em plena era vitoriana. Poems of G. M. Hopkins só foi publicado em 1918, vinte e nove anos após o falecimento do autor. O amigo e leitor-crítico Robert Bridges considerou estranha a linguagem de Hopkins e, por não compreender as inovações estilísticas do seu interlocutor, decidiu ignorar vários poemas.
Hopkins escreveu para Bridges alertando-o: “Se o poema lhe parece obscuro, não se atormente muito com o sentido, mas preste atenção às estrofes melhores e mais inteligíveis, como as duas últimas de cada uma das partes e as que narram o naufrágio...” O poeta se referia ao célebre poema “O Naufrágio do Deustschland” (poema místico de 35 estrofes), que narra um fato real, o desastre marítimo do navio “Deutschland”, ocorrido em dezembro de 1875, fazendo muitas vítimas, entre as quais cinco freiras da Ordem de São Francisco, exiladas na Alemanha. O poeta também insistia com seus leitores-críticos que o verso era “menos para ser lido que para ser ouvido”, e prossegue, “ler alto, pausadamente, numa recitação poética (não retórica), com largas pausas, ênfase nas rimas e sílabas marcadas...”
Apenas em 1930, uma edição revista organizada por Charles Williams despertou interesse de críticos. Hopkins se importava apenas com seus escritos filosóficos. Determinou que estes fossem publicados na íntegra, temendo que as suas idéias filosóficas fossem distorcidas. Em relação à sua poesia, escreveu que “poderia fazer algum bem, mas se permanecesse desconhecida, nem por isso faria mal”.
Hopkins antecipa Joyce. Reinventa o idioma inglês, dando preferência ao vocabulário anglo-saxão em detrimento ao de origem latina; recupera a poesia celta, anterior ao início do Renascimento e da influência francesa decorrente da invasão normanda de 1066. Recria termos arcaicos e usa palavras germânicas. Inventa neologismos e redescobre a aliteração, a paronomásia e a assonância. A métrica e o ritmo são absurdamente modernos em Hopkins. “Sprugn rhythm” é o termo cunhado pelo poeta para designar seu novo ritmo. É um ritmo de pés variáveis e mesmo número de acentos. Na poesia inglesa contam-se pés e não sílabas. O pé varia de uma a quatro sílabas, cada um deles com apenas uma sílaba acentuada.
Segundo W. H. Gardner, o “sprung rhthm” de Hopkins revela “uma nova e eficaz fusão de ritmo e textura fônica”. As rimas internas e externas, as vogais, os ecos, as repetições fônicas criam uma orquestração de sons. Em carta de 1878 a Bridges, o poeta diz que “não há dúvida de que minha poesia vagueia sobre o plano da excentricidade... Mas tal como a ária, a melodia, é o que me atrai mais que tudo em música, e o desenho em pintura, assim o desenho, a estrutura ou o que estou acostumado a chamar inscape é o que acima de tudo busco em poesia...”
A Beleza Difícil (Ed. Perspectiva), com introdução e tradução de Augusto de Campos, é um texto musical, composto como uma sinfonia. O que impressiona em Hopkins é a força do ritmo, os sons verbais e as imagens sonoras que criam uma linguagem sintaticamente criativa.
O universo poético de Hopkins desperta a empatia do leitor não só por se tratar de uma revolução estética, mas também por revelar um espírito sensível, aberto às angústias e tormentos dos homens. A poesia de Hopkins é uma fusão incomum de “espiritualidade e sensualidade”. O padre-poeta tinha preocupações sociais, como em sua poesia, e numa carta a Robert Bridges declarou que estava sempre pensando no futuro comunista: “de certo modo eu sou um comunista”.
Segundo o poeta e tradutor Augusto de Campos, os sons e ruídos do seu conflito interno fizeram com que Hopkins desafinasse “o coro do decoro vitoriano para ingressar na modernidade”. Augusto em sua tradução exemplar recupera a alma de Hopkins. Executa uma “tradução-arte”. Para a felicidade dos leitores, A Beleza Difícil apresenta uma afinada conversa entre poetas.
___________________________________________
To R. B.
The fine delight that fathers thought; the strong
Spur, live and lancing like the blowpipe flame,
Breathes once and, quenchèd faster than it came,
Leaves yet the mind a mother of immortal song.
Nine months she then, nay years, nine years she long
Within her wears, bears, cares and combs the same:
The widow of an insight she lives, with aim
Now known and hand at work now never wrong.
Sweet fire the sire of muse, my soul needs this;
I want the one rapture of an inspiration.
O then if in my lagging lines you miss
The roll, the rise, the carol, the creation,
My winter world, that scarcely breathers that bliss
Now, yields you, with some sighs, our explanation.
( G. M . Hopkins, 1889)
A R. B.
A alegre luz que gera a idéia, a força pura,
Viva e voraz, como uma chama de estopim,
Brilha uma vez mas dura pouco, e ainda assim
À mente muda em mãe de um canto que perdura.
Nove meses, ou mais, nove anos ela o apura
E dentro o gesta, gasta, gosta e alenta, enfim:
Viúva de uma visão perdida, vive; com seu fim
Sabido, a mão perfaz, nunca mais insegura.
Fogo maior, senhor da musa _ uma só graça
Pede meu ser: o arroubo de uma inspiração.
Mas, se por minhas lentas linhas já não passa
A vaga, o vôo, a voz, o canto, a criação,
Meu mundo-inverno, onde esse júbilo não grassa,
É, com alguns suspiros, nossa explicação.
Publicado no caderno “Idéias/Livros”, Jornal do Brasil.
Pedro Maciel é autor do romance A Hora dos Náufragos, Ed. Bertrand Brasil
Marco Aqueiva
Alguns poemas
O REAL INIMIGO
Quanto cotidiano cabe em teu crânio?
À luz do dia – a superfície em destroços
cidade e as coisas feitas avançando
e à medida das cascas não bastam olhos
Quanto cotidiano cabe no homem
até os sonhos estalarem vazios por dentro?
De quanta grandeza um oco estalo sem onde
: violência sem contato e ocasião propícia
POEMA PORRADA
Os olhos antes da chegada do corpo
armam-se meticulosos e laterais
chegam de passagem fortemente
insatisfeitos
A sucata do corpo entre rugas e cosméticos
alonga-se aos olhos seviciados pelas pequenas
unhas comprimidas contra a própria mão fechada
O rosto vazio em cada gesto desses olhos
o tremor que desliza pelo corpo
breve tremor injetando-se em torno das unhas
E no meio da rua a mão
cirúrgica contra o real obrigatório e azul
esmurra o corpo que cruza sua trajetória
só de passagem
O ANTROPÓFAGO NAS LETRAS
O chão perco na releitura
um clarão me prolonga
até arder-me em chamas
é o texto me chamando
a esta paisagem urbana
a ponto de principiá-lo
como tua carne minha
me sabe sei que devora
Alguns poemas
O REAL INIMIGO
Quanto cotidiano cabe em teu crânio?
À luz do dia – a superfície em destroços
cidade e as coisas feitas avançando
e à medida das cascas não bastam olhos
Quanto cotidiano cabe no homem
até os sonhos estalarem vazios por dentro?
De quanta grandeza um oco estalo sem onde
: violência sem contato e ocasião propícia
POEMA PORRADA
Os olhos antes da chegada do corpo
armam-se meticulosos e laterais
chegam de passagem fortemente
insatisfeitos
A sucata do corpo entre rugas e cosméticos
alonga-se aos olhos seviciados pelas pequenas
unhas comprimidas contra a própria mão fechada
O rosto vazio em cada gesto desses olhos
o tremor que desliza pelo corpo
breve tremor injetando-se em torno das unhas
E no meio da rua a mão
cirúrgica contra o real obrigatório e azul
esmurra o corpo que cruza sua trajetória
só de passagem
O ANTROPÓFAGO NAS LETRAS
O chão perco na releitura
um clarão me prolonga
até arder-me em chamas
é o texto me chamando
a esta paisagem urbana
a ponto de principiá-lo
como tua carne minha
me sabe sei que devora
Pedro du Bois
TRAJETOS
29
As vezes
em que me disse
pronto. Menti a consideração devida.
Alçado ao comando refuguei
a tropa. Descrevi lutas: enfronhado
em tiros retirei do nada a afirmação
de estar apto ao encontro.
As vozes ditam regras inabaláveis
e ao longe escuto a serra cortar
o lastro do meu barco.
Não estou pronto ao descortínio.
A visão embaça enquanto choro
impropriedades.
(inédito)
TRAJETOS
29
As vezes
em que me disse
pronto. Menti a consideração devida.
Alçado ao comando refuguei
a tropa. Descrevi lutas: enfronhado
em tiros retirei do nada a afirmação
de estar apto ao encontro.
As vozes ditam regras inabaláveis
e ao longe escuto a serra cortar
o lastro do meu barco.
Não estou pronto ao descortínio.
A visão embaça enquanto choro
impropriedades.
(inédito)
ATLAS
nem one nem um nem eins nas mãos
nem two nem dois nem zwei nos pés
nem three nem três nem drei nos pés
nem four nem quatro nem vier nos pés
nem five nem cinco nem fünf nos pés
nem six nem seis nem sechs nos pés
nem seven nem sete nem sieben nos pés
nem eight nem oito nem acht nos pés
nem nine nem nove nem neun nos pés
nem ten nem dez nem zehn nos pés
cem eleven cem onze cem elf mil mãos cem mil pés
São Poema
Ão Poema na cabeça
Ão Poema nas costas
Ão Poema nas
Pernas nos
Pés
Ão Poema no meio ao peito
Ão Poema nas mãos aos cãos
ãosãosãosãosãos
Sãonão Poemas os rastos
Sãoão Poemas onde eu
Cê ande
nem two nem dois nem zwei nos pés
nem three nem três nem drei nos pés
nem four nem quatro nem vier nos pés
nem five nem cinco nem fünf nos pés
nem six nem seis nem sechs nos pés
nem seven nem sete nem sieben nos pés
nem eight nem oito nem acht nos pés
nem nine nem nove nem neun nos pés
nem ten nem dez nem zehn nos pés
cem eleven cem onze cem elf mil mãos cem mil pés
São Poema
Ão Poema na cabeça
Ão Poema nas costas
Ão Poema nas
Pernas nos
Pés
Ão Poema no meio ao peito
Ão Poema nas mãos aos cãos
ãosãosãosãosãos
Sãonão Poemas os rastos
Sãoão Poemas onde eu
Cê ande
Menino Jesus É Rei
Alvez eu screva um oema epois do atal
E alvez eu screva um oema epois da assagem
E ode ser que o oema ale de uzes e ão de rzes
E do eregrino que asceu na strebaria e ndou
Luminado elo undo de elém e epois
Orreu na ruz ara alvar os omens Alvez
Eu screva um oema que ale de az Alvez
A az eja um írculo de strelas adentes
Aindo ozinhas ao éu huviscam a oite
Que é iva e ediviva de aga-umes
Leluia, enino esus é ei-
É ei, É ei, Ér Rei.
Arco-
íris
O Cavalo não é olavac
O Pássaro não é orassáp
E
O Menino não é oninem
Mas o menino é um olavac
E quando vira cavalo
V
ira arassáp
Foice
Foi Foiçar e Foiçou os pés e os pés
Ficaram Foiçados sem os dedos foi Foiçar
Os dedos entre abóboras e a abóbada Foiçou
A vista foi Foiçar a vista nas pálpebras no meio
Às retinas As íris é que Foiçaram as estrelas imagin
Árias foi Foiçar o imaginário e o imaginário é que
Foiçou a constelação de pensamentos foi Foiçar
Os pensamentos e os pensamentos é que Foiçaram
Os cabelos foi Foiçar os cabelos e os cabelos é que
Foiçaram a cabeça foi Foiçar
A cabeça e a cabeça Foiçou o Céu
E o Céu O cerebelo.
Poema Branco
Ão assim, assim não.
Ão, sim, assim não. N
ão, sim.
Assim você é. Perfeito.
E você tem que ser é. Puro,
Sendo Im-
Puro.
Ão assim, assim não.
Ão, sim, assim não. N
ão, sim.
Assim você é. Perfeito.
E você tem que ser é. Puro,
Sendo Im-
Puro.
Ão assim, assim não.
Ão, sim, assim não. N
ão, sim.
olhos
Ol
Hei os meus yeux e v e v
I os meus ojos e não os I os yeux
Olhos meus ojos olhos
Ol
Hei os meus yeux e v e v
I os meus ojos e não os I os yeux
Olhos meus ojos olhos
Ol
Hei os meus yeux e v e v
I os meus ojos e não os I os yeux
Olhos meus ojos olhos
laje
e depois de bater a laje vem esse temporal
e depois desse temporal vem os pés sobre a laje
sobre a laje os olhos a verter águas de arco-íris
e cristalino sobre a laje
as íris as membranas as retinas as imagens
os olhos de lince para o lince olhar a laje
os estragos da chuva na laje
e depois a laje pisada e vista
a laje meio a meio e virgem a laje
a laje para o cume
o cume da laje para o meu pássaro rouxinol
sim a casa para a chuva a constelação de sóis e luas e estrelas
a colheita de canários
e o plantio das palmas e plantas
Alvez eu screva um oema epois do atal
E alvez eu screva um oema epois da assagem
E ode ser que o oema ale de uzes e ão de rzes
E do eregrino que asceu na strebaria e ndou
Luminado elo undo de elém e epois
Orreu na ruz ara alvar os omens Alvez
Eu screva um oema que ale de az Alvez
A az eja um írculo de strelas adentes
Aindo ozinhas ao éu huviscam a oite
Que é iva e ediviva de aga-umes
Leluia, enino esus é ei-
É ei, É ei, Ér Rei.
Arco-
íris
O Cavalo não é olavac
O Pássaro não é orassáp
E
O Menino não é oninem
Mas o menino é um olavac
E quando vira cavalo
V
ira arassáp
Foice
Foi Foiçar e Foiçou os pés e os pés
Ficaram Foiçados sem os dedos foi Foiçar
Os dedos entre abóboras e a abóbada Foiçou
A vista foi Foiçar a vista nas pálpebras no meio
Às retinas As íris é que Foiçaram as estrelas imagin
Árias foi Foiçar o imaginário e o imaginário é que
Foiçou a constelação de pensamentos foi Foiçar
Os pensamentos e os pensamentos é que Foiçaram
Os cabelos foi Foiçar os cabelos e os cabelos é que
Foiçaram a cabeça foi Foiçar
A cabeça e a cabeça Foiçou o Céu
E o Céu O cerebelo.
Poema Branco
Ão assim, assim não.
Ão, sim, assim não. N
ão, sim.
Assim você é. Perfeito.
E você tem que ser é. Puro,
Sendo Im-
Puro.
Ão assim, assim não.
Ão, sim, assim não. N
ão, sim.
Assim você é. Perfeito.
E você tem que ser é. Puro,
Sendo Im-
Puro.
Ão assim, assim não.
Ão, sim, assim não. N
ão, sim.
olhos
Ol
Hei os meus yeux e v e v
I os meus ojos e não os I os yeux
Olhos meus ojos olhos
Ol
Hei os meus yeux e v e v
I os meus ojos e não os I os yeux
Olhos meus ojos olhos
Ol
Hei os meus yeux e v e v
I os meus ojos e não os I os yeux
Olhos meus ojos olhos
laje
e depois de bater a laje vem esse temporal
e depois desse temporal vem os pés sobre a laje
sobre a laje os olhos a verter águas de arco-íris
e cristalino sobre a laje
as íris as membranas as retinas as imagens
os olhos de lince para o lince olhar a laje
os estragos da chuva na laje
e depois a laje pisada e vista
a laje meio a meio e virgem a laje
a laje para o cume
o cume da laje para o meu pássaro rouxinol
sim a casa para a chuva a constelação de sóis e luas e estrelas
a colheita de canários
e o plantio das palmas e plantas
FERNANDO FÁBIO FIORESE FURTADO
Três poemas
ESCREVER POR AGULHAS
E se o menino, na urgência de longes,
do trem separa, aparta-se da gare
para embarcar num tandem de horizontes,
não descura do carvão, mesmo lápis,
com que escreve dias-mapa, cartas-ponte,
como a palavra fosse o desembarque
no qual reúne porquês, quandos e ondes,
enquanto a infância manobra e parte.
Nesta escrita, difícil operar
senão ao modo de, como por agulhas,
sejam as que, entre a hora e o lugar,
decidem se a linha míngua ou demuda
(ao foguista cumpre apenas queimar),
sejam aquelas que emprega a costura
e de viés ensinam a mão a chulear
onde nos punge o poema, suas rasuras.
LINHAS RIVAIS
Trem é texto quando encontra desvio
ou nos surpreende em meio ao pontilhão,
e da origem as pernas se desdão
para o mundo acomodar neste livro.
Mas texto é menos trem que o enguiço
de saber que no verso desembarca
apenas a prosa dessas coisas arcas
com que o menino se salva do olvido.
Seja a prosa como dormir num trem
e a poesia quando a aduana sobrevém:
naquela, até o sonho encontra sua reta,
enquanto nesta, nos sacode e espera
uma voz de si mesma estrangeira
- e como fosse toda ela suspeita,
a bagagem uma outra mão desfaz,
mão que vacila entre linhas rivais.
A MORTE COMO METÁFORA
Talvez outra metáfora ainda possa
antes deste texto descarrilar-se
- ou enfim estacar no livro-gare,
à espera de uma voz que, sendo oposta,
o conduza por avessas passagens
(passagens sem número, sem sintaxe),
para assim desfazer-se na manobra
que realiza entre o desvio e o desastre.
Análoga àquela que assombra o pai
quando dele o trem a altura subtrai,
uma outra morte o poema epiloga.
E se digo tratar-se de metáfora,
é porque, com seus modos e manobras,
nela a palavra desvia e me ultrapassa,
tal fosse menos termo do que o mote
o que do autor é um corpo discorde.
Um dia, o trem, livro de poemas publicado recentemente pela Nankin Editorial em parceria com a Funalfa, confirma Fernando Fábio Fiorese Furtado com um dos mais interessantes autores que, neste momento, escrevem poesia no espaço de Língua Portuguesa. Depois de Corpo portátil (2002), este comboio transporta-nos até um verbo que convida à meditação e à viagem, em linhas que tanto levam à catábase quanto à ascensão dos seres que povoam este mundo.
Três poemas
ESCREVER POR AGULHAS
E se o menino, na urgência de longes,
do trem separa, aparta-se da gare
para embarcar num tandem de horizontes,
não descura do carvão, mesmo lápis,
com que escreve dias-mapa, cartas-ponte,
como a palavra fosse o desembarque
no qual reúne porquês, quandos e ondes,
enquanto a infância manobra e parte.
Nesta escrita, difícil operar
senão ao modo de, como por agulhas,
sejam as que, entre a hora e o lugar,
decidem se a linha míngua ou demuda
(ao foguista cumpre apenas queimar),
sejam aquelas que emprega a costura
e de viés ensinam a mão a chulear
onde nos punge o poema, suas rasuras.
LINHAS RIVAIS
Trem é texto quando encontra desvio
ou nos surpreende em meio ao pontilhão,
e da origem as pernas se desdão
para o mundo acomodar neste livro.
Mas texto é menos trem que o enguiço
de saber que no verso desembarca
apenas a prosa dessas coisas arcas
com que o menino se salva do olvido.
Seja a prosa como dormir num trem
e a poesia quando a aduana sobrevém:
naquela, até o sonho encontra sua reta,
enquanto nesta, nos sacode e espera
uma voz de si mesma estrangeira
- e como fosse toda ela suspeita,
a bagagem uma outra mão desfaz,
mão que vacila entre linhas rivais.
A MORTE COMO METÁFORA
Talvez outra metáfora ainda possa
antes deste texto descarrilar-se
- ou enfim estacar no livro-gare,
à espera de uma voz que, sendo oposta,
o conduza por avessas passagens
(passagens sem número, sem sintaxe),
para assim desfazer-se na manobra
que realiza entre o desvio e o desastre.
Análoga àquela que assombra o pai
quando dele o trem a altura subtrai,
uma outra morte o poema epiloga.
E se digo tratar-se de metáfora,
é porque, com seus modos e manobras,
nela a palavra desvia e me ultrapassa,
tal fosse menos termo do que o mote
o que do autor é um corpo discorde.
Um dia, o trem, livro de poemas publicado recentemente pela Nankin Editorial em parceria com a Funalfa, confirma Fernando Fábio Fiorese Furtado com um dos mais interessantes autores que, neste momento, escrevem poesia no espaço de Língua Portuguesa. Depois de Corpo portátil (2002), este comboio transporta-nos até um verbo que convida à meditação e à viagem, em linhas que tanto levam à catábase quanto à ascensão dos seres que povoam este mundo.
Adélia Prado é uma das poetas de língua portuguesa mais consistentes na sua produção. Há poucos dias fez anos e deu uma entrevista ao Cronópios. Pode ser lida aqui. Vale mesmo a pena.
EDSON CRUZ
palimpsesto
toda poesia já
escrita
não se equipara
a toda poesia
inscrita
a poesia jaz
esmero
retocar a canção
chegar até
à imperfeição
de mero José
a impossível João
abulia
quando os homens
se abatem
todo o universo
— misteriosa simbiose —
se esbate
melancolia é soberana
sobre as lápides
samsara
pois tudo se transforma
mesmo o nada que não quer
ser algo vira alguma coisa
que logo vem a ser outra
do feitio que ela vida
quando se desativa
e a chama passa a se
chamar morte naquele des
equilíbrio tênue de quem
precisa e quer renascer
EDSON CRUZ (Brasil, 1959). Editor do sítio web de literatura Cronópios e da revista literária Mnemozine. Entrevistador do programa BITNIKS voltado para literatura na internet. Escritor, editor, revisor e preparador de textos. Revisor pela Ateliê Editorial, Editora Unicamp, Sapienza Editora e Novo Século. Curador do evento Cartografia Web Literária, em parceria com o SESC-Consolação (2008).
palimpsesto
toda poesia já
escrita
não se equipara
a toda poesia
inscrita
a poesia jaz
esmero
retocar a canção
chegar até
à imperfeição
de mero José
a impossível João
abulia
quando os homens
se abatem
todo o universo
— misteriosa simbiose —
se esbate
melancolia é soberana
sobre as lápides
samsara
pois tudo se transforma
mesmo o nada que não quer
ser algo vira alguma coisa
que logo vem a ser outra
do feitio que ela vida
quando se desativa
e a chama passa a se
chamar morte naquele des
equilíbrio tênue de quem
precisa e quer renascer
EDSON CRUZ (Brasil, 1959). Editor do sítio web de literatura Cronópios e da revista literária Mnemozine. Entrevistador do programa BITNIKS voltado para literatura na internet. Escritor, editor, revisor e preparador de textos. Revisor pela Ateliê Editorial, Editora Unicamp, Sapienza Editora e Novo Século. Curador do evento Cartografia Web Literária, em parceria com o SESC-Consolação (2008).
DIÁLOGO INCESSANTE
Ruy Ventura conversa com Wilmar Silva
Não mais esquecerei o nosso almoço no Portinho da Arrábida. Depois de uma sessão de leitura de poemas e duma conversa com gravação em vídeo, depois da troca de livros – dele recebi um belíssimo e invulgar Estilhaços no Lago de Púrpura, assinado por “Joaquim Palmeira” em homenagem ao avô (quanto o compreendo… - a expressão ressuscita), ficámos por ali a degustar palavras e alimentos, lançando pontes e passadiços entre nós, entre Portugal e o Brasil. A conversa com o poeta brasileiro Wilmar Silva, que agora publico, nasceu já posterior. Surgida da necessidade de prolongar um diálogo – serve também para dar a conhecer um poeta cujas linhas de fuga merecem a nossa visita.
Está em fase de conclusão, tanto quanto sei, o teu projecto de cartografia do território poético de língua portuguesa. Que balanço fazes dessa viagem?
É uma das mais belas viagens da minha vida. Imagine, Ruy, trabalhar com a poesia que é a beleza de todas as belezas e é o objeto de prazer de toda a minha vida desde sempre. A exemplo da minha poesia que tem como provocação a sinergia da língua, “Portuguesia: Minas entre os povos da mesma língua, antropologia de uma poética” é um projeto que tem como liberdade pesquisar as diferentes vozes poéticas contemporâneas do mundo português. Pensando em Minas Gerais, Portugal, Guiné-Bissau e Cabo Verde, primeiros lugares objeto de meu olhar, mais de 100 (cem) poetas se tornaram co-autores da mais vasta antologia de poesia em língua portuguesa, em processo de leitura e escolha de poemas.
Saramago admitiu há poucos dias que só ganhou o Nobel porque era conhecido, quando outros mais importantes do que ele ficaram para trás, porque não tinham marketing a apoiá-los. Que pensas da posteridade literária?
Penso que enquanto eu estiver vivo trabalharei com poesia, porque a poesia é a minha vida e o meu mundo. Nasci no interior de Minas Gerais, sou filho de lavradores que não distinguem a diferença entre o a e o z, então, o que desejo é saúde para amanhecer com a boca no sol para continuar fazendo aquilo que é tão imaterial que é
Ruy Ventura conversa com Wilmar Silva
Não mais esquecerei o nosso almoço no Portinho da Arrábida. Depois de uma sessão de leitura de poemas e duma conversa com gravação em vídeo, depois da troca de livros – dele recebi um belíssimo e invulgar Estilhaços no Lago de Púrpura, assinado por “Joaquim Palmeira” em homenagem ao avô (quanto o compreendo… - a expressão ressuscita), ficámos por ali a degustar palavras e alimentos, lançando pontes e passadiços entre nós, entre Portugal e o Brasil. A conversa com o poeta brasileiro Wilmar Silva, que agora publico, nasceu já posterior. Surgida da necessidade de prolongar um diálogo – serve também para dar a conhecer um poeta cujas linhas de fuga merecem a nossa visita.
Está em fase de conclusão, tanto quanto sei, o teu projecto de cartografia do território poético de língua portuguesa. Que balanço fazes dessa viagem?
É uma das mais belas viagens da minha vida. Imagine, Ruy, trabalhar com a poesia que é a beleza de todas as belezas e é o objeto de prazer de toda a minha vida desde sempre. A exemplo da minha poesia que tem como provocação a sinergia da língua, “Portuguesia: Minas entre os povos da mesma língua, antropologia de uma poética” é um projeto que tem como liberdade pesquisar as diferentes vozes poéticas contemporâneas do mundo português. Pensando em Minas Gerais, Portugal, Guiné-Bissau e Cabo Verde, primeiros lugares objeto de meu olhar, mais de 100 (cem) poetas se tornaram co-autores da mais vasta antologia de poesia em língua portuguesa, em processo de leitura e escolha de poemas.
Saramago admitiu há poucos dias que só ganhou o Nobel porque era conhecido, quando outros mais importantes do que ele ficaram para trás, porque não tinham marketing a apoiá-los. Que pensas da posteridade literária?
Penso que enquanto eu estiver vivo trabalharei com poesia, porque a poesia é a minha vida e o meu mundo. Nasci no interior de Minas Gerais, sou filho de lavradores que não distinguem a diferença entre o a e o z, então, o que desejo é saúde para amanhecer com a boca no sol para continuar fazendo aquilo que é tão imaterial que é
meu material de existência. Claro que eu não sou um ingênuo ao ponto de pensar que marketing não existe. Eu acredito na vida e em tudo que nasce da vida. Mas acredito que é preciso, urgente, acreditar que somos diferentes porque somos plurais, e porque somos plurais somos a esfera de um coletivo que tem os infinitos aros de “eus”.
Entre os autores que entrevistaste houve nomes conhecidos e outros quase desconhecidos. Pensas que os primeiros correspondem a uma real importância ou haverá inversão de critérios?
Sim, haverá inversão em todos os sentidos, porque as minhas luas não são as mesmas luas de ninguém. E é também por acreditar na existência de outros poetas e outras verdades que passei a trabalhar em projetos que tem como natureza o entrecruzar de linguagens.
Entre os autores que entrevistaste houve nomes conhecidos e outros quase desconhecidos. Pensas que os primeiros correspondem a uma real importância ou haverá inversão de critérios?
Sim, haverá inversão em todos os sentidos, porque as minhas luas não são as mesmas luas de ninguém. E é também por acreditar na existência de outros poetas e outras verdades que passei a trabalhar em projetos que tem como natureza o entrecruzar de linguagens.
Em comparação com outras poéticas existentes no mundo, que pensas do peso da poesia escrita em língua portuguesa no nosso tempo?
Não conheço o suficiente as outras poéticas existentes no mundo, mas posso afirmar que a poesia que se produz com a língua portuguesa tem poéticas de invenção. E também se faz poética de invenção mesmo quando é verbal. A poesia é a origem da língua e a língua portuguesa são as muitas línguas portuguesas. E a poesia é uma molécula que coloca o homem diante dos seus problemas e diante do próprio homem multiplicado em mineral, vegetal, animal.
Nota-se um crescente interesse mútuo entre portugueses e brasileiros no que respeita à cultura. Pensas que a estratégia seguida é a adequada ou seria desejável outra?
Acredito que é preciso entender o que é política, o que é educação, o que é cultura. Ninguém é apolítico. Educação não é o mesmo que cultura. Cultura não é o mesmo que educação. Compete, sim, aos poderes públicos provocar a emancipação da cidadania. Mas compete a todos entender que somos a semente de um girassol que é o cosmos. E o araçá azul pode nascer entre gabirobas. O cobra norato entre selvagens. O catatau entre bichos preguiça. O discurso da difamação do poeta entre concretos. Galáxias entre verbivocovisuais. Poema sujo fora do Maranhão. Paranóia na Paulicéia. Desvairar é um substantivo dos mais verbais. Eu faço. Tu fazes. Ele faz. Nós fazemos. Vós fazeis. Eles fazem. Vamos conjugar os verbos em nós. E aprenderemos que somos aquilo que pensamos. E sonhamos. Desde que haja trabalho e se persista.
Que poetas brasileiros precisam os portugueses conhecer melhor? E que portugueses seria preciso divulgar mais no Brasil?
Quase todos os poetas conhecidos ou não em Portugal são desconhecidos no Brasil. E quase todos os poetas conhecidos ou não no Brasil são desconhecidos em Portugal. O problema não é apenas entre Brasil e Portugal e Portugal e Brasil. “Portuguesia” é uma política de atitude de chegada ao território dos problemas da poesia. Poesia e poéticas. Poesia e linguagens. Poesia e mercado. Poesia e atitude de poetas. Poesia e atitude de editores entre poetas. Participarei em novembro de 2008 do Fórum das Letras em Ouro Preto com Luís Serguilha e Jorge Melícias onde a provocação é puxar o poeta de suas margens para o centro das atitudes.
Há poucos meses publicou-se em Portugal uma antologia intitulada "Oiro de Minas". Consideras que a poesia mineira tem mesmo um carácter central no teu país?
A antologia “Oiro de Minas a nova poesia das Gerais” apresenta 10 (dez) autores em atividade no Brasil. É claro que existem muitos outros poetas em Minas Gerais e no Brasil. E poetas de altas voltagens que dariam para fazer mais que 10 (dez) “Oiro de Minas” ou de Goiás, e talvez do Triângulo que é um estado que não existe. A poeta Prisca Agustoni mostrou um dos olhos do girassol.
O acordo ortográfico tem causado muita polémica em Portugal, nomeadamente porque muitos o consideram pouco explícito e revelador de pouco respeito pela diversidade da língua. Que pensas disto? Achas que o acordo irá melhorar as relações entre os povos de língua portuguesa?
Nenhuma língua existe parada em si mesma. As línguas vivem em estado de sexo. Metamorfose. Liberdade. Fotossíntese. Mas nem um acordo mudaria a lingüística de Patativa do Assaré. Porque o Brasil inventou uma dicção friccionada pelo vapor dos trópicos. Mas eu sou a favor do acordo ortográfico porque a supremacia de uma língua se deve ao poder que o povo de uma língua tem diante do mundo. Por que não se fala quase nada de guarani no Brasil? Por que o latim perdeu sua hegemonia?
Na tua poesia, nomeadamente em "Estilhaços no Lago de Púrpura", nota-se um ritmo xamânico à procura do transe e da alucinação de um corpo em metamorfose. Concordas com esta leitura? Que penso têm na tua obra as culturas indígenas do povoam/povoaram o Brasil?
A minha poesia tem a devastação dos vendavais. Sejam “Cachaprego” ou “Estilhaços no Lago de Púrpura”. “Arranjos de Pássaros e Flores” ou “Anu”. Os originais “Z a Zero”, “O beijo de Rimbaud”, “Salmos Verdes”, etc. “Yguarani”, no prelo pela Cosmorama Edições, Portugal, apresenta as culturas de margem que existem no Brasil de onde vim que são materiais de minha linguagem. Difícil assimilar a minha língua poética porque a minha poesia é a poesia viva de uma pessoa em estado de infância. “Estilhaços no Lago de Púrpura” é “Jadis, si je me souviens bien, ma vie était un festin où s`ouvraient tous les coeurs, où tous les vins coulaient.”
Se o nome é uma síntese da identidade, qual das tuas faces é a mais verdadeira, Wilmar Silva ou Joaquim Palmeira?
Wilmar Silva ou Joaquim Palmeira sou eu. Eu e os eus e o nó e os nós.
De que maneira se estrutura na tua poesia uma figura autoral poliédrica, múltipla, mutante? Haverá nela vestígios de heteronímia?
Ruy, o que posso afirmar é que todos os meus excessos poliédricos, múltiplos, mutantes, são de um camaleão humano que tem dois olhos, um nariz, uma boca, uma língua, muitas línguas, duas pernas, dois joelhos, muitos e infinitos rastros, e uma vontade de inventar a poesia.
Sei que no Brasil ainda estão vivas as heranças da poesia experimental e da arte surrealista. Recebeste algum testemunho destas linhas de fuga do fazer poético?
Devorei essas e outras heranças, experimentais ou não, surrealistas ou não, para eu nascer, para eu ser, para eu chegar ao infinito eu vivo.
Como vês o papel da poesia numa sociedade em que os valores - como referiu Salman Rushdie numa crónica - são o Dinheiro e a Celebridade?
Poesia não tem nada a haver com o dinheiro e a celebridade, mas o problema é não ganhar dinheiro com poesia e não se tornar célebre.
O poeta é sempre um actor?
O poeta é um poeta de si e de outros sis, de outros outros, e de todos os outros outros.
Para quando a edição da tua antologia monumental da poesia de língua portuguesa? Que projectos se seguirão?
“Portuguesia: Minas entre os povos da mesma língua, antropologia de uma poética” tem lançamento mundial em novembro de 2008, em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. E em 2009 partirei para Moçambique. Angola. São Tomé e Príncipe. Timor Leste. Goa. Macau. E a Galiza.
Quase todos os poetas conhecidos ou não em Portugal são desconhecidos no Brasil. E quase todos os poetas conhecidos ou não no Brasil são desconhecidos em Portugal. O problema não é apenas entre Brasil e Portugal e Portugal e Brasil. “Portuguesia” é uma política de atitude de chegada ao território dos problemas da poesia. Poesia e poéticas. Poesia e linguagens. Poesia e mercado. Poesia e atitude de poetas. Poesia e atitude de editores entre poetas. Participarei em novembro de 2008 do Fórum das Letras em Ouro Preto com Luís Serguilha e Jorge Melícias onde a provocação é puxar o poeta de suas margens para o centro das atitudes.
Há poucos meses publicou-se em Portugal uma antologia intitulada "Oiro de Minas". Consideras que a poesia mineira tem mesmo um carácter central no teu país?
A antologia “Oiro de Minas a nova poesia das Gerais” apresenta 10 (dez) autores em atividade no Brasil. É claro que existem muitos outros poetas em Minas Gerais e no Brasil. E poetas de altas voltagens que dariam para fazer mais que 10 (dez) “Oiro de Minas” ou de Goiás, e talvez do Triângulo que é um estado que não existe. A poeta Prisca Agustoni mostrou um dos olhos do girassol.
O acordo ortográfico tem causado muita polémica em Portugal, nomeadamente porque muitos o consideram pouco explícito e revelador de pouco respeito pela diversidade da língua. Que pensas disto? Achas que o acordo irá melhorar as relações entre os povos de língua portuguesa?
Nenhuma língua existe parada em si mesma. As línguas vivem em estado de sexo. Metamorfose. Liberdade. Fotossíntese. Mas nem um acordo mudaria a lingüística de Patativa do Assaré. Porque o Brasil inventou uma dicção friccionada pelo vapor dos trópicos. Mas eu sou a favor do acordo ortográfico porque a supremacia de uma língua se deve ao poder que o povo de uma língua tem diante do mundo. Por que não se fala quase nada de guarani no Brasil? Por que o latim perdeu sua hegemonia?
Na tua poesia, nomeadamente em "Estilhaços no Lago de Púrpura", nota-se um ritmo xamânico à procura do transe e da alucinação de um corpo em metamorfose. Concordas com esta leitura? Que penso têm na tua obra as culturas indígenas do povoam/povoaram o Brasil?
A minha poesia tem a devastação dos vendavais. Sejam “Cachaprego” ou “Estilhaços no Lago de Púrpura”. “Arranjos de Pássaros e Flores” ou “Anu”. Os originais “Z a Zero”, “O beijo de Rimbaud”, “Salmos Verdes”, etc. “Yguarani”, no prelo pela Cosmorama Edições, Portugal, apresenta as culturas de margem que existem no Brasil de onde vim que são materiais de minha linguagem. Difícil assimilar a minha língua poética porque a minha poesia é a poesia viva de uma pessoa em estado de infância. “Estilhaços no Lago de Púrpura” é “Jadis, si je me souviens bien, ma vie était un festin où s`ouvraient tous les coeurs, où tous les vins coulaient.”
Se o nome é uma síntese da identidade, qual das tuas faces é a mais verdadeira, Wilmar Silva ou Joaquim Palmeira?
Wilmar Silva ou Joaquim Palmeira sou eu. Eu e os eus e o nó e os nós.
De que maneira se estrutura na tua poesia uma figura autoral poliédrica, múltipla, mutante? Haverá nela vestígios de heteronímia?
Ruy, o que posso afirmar é que todos os meus excessos poliédricos, múltiplos, mutantes, são de um camaleão humano que tem dois olhos, um nariz, uma boca, uma língua, muitas línguas, duas pernas, dois joelhos, muitos e infinitos rastros, e uma vontade de inventar a poesia.
Sei que no Brasil ainda estão vivas as heranças da poesia experimental e da arte surrealista. Recebeste algum testemunho destas linhas de fuga do fazer poético?
Devorei essas e outras heranças, experimentais ou não, surrealistas ou não, para eu nascer, para eu ser, para eu chegar ao infinito eu vivo.
Como vês o papel da poesia numa sociedade em que os valores - como referiu Salman Rushdie numa crónica - são o Dinheiro e a Celebridade?
Poesia não tem nada a haver com o dinheiro e a celebridade, mas o problema é não ganhar dinheiro com poesia e não se tornar célebre.
O poeta é sempre um actor?
O poeta é um poeta de si e de outros sis, de outros outros, e de todos os outros outros.
Para quando a edição da tua antologia monumental da poesia de língua portuguesa? Que projectos se seguirão?
“Portuguesia: Minas entre os povos da mesma língua, antropologia de uma poética” tem lançamento mundial em novembro de 2008, em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. E em 2009 partirei para Moçambique. Angola. São Tomé e Príncipe. Timor Leste. Goa. Macau. E a Galiza.
(Fotos de Branca de Paula e Ozias Filho.)
Subscrever:
Mensagens (Atom)